Vá que é deserto

At 8,26-39
Otexto narra as primeiras experiências dos diáconos, os antigos garçons daigreja. Com o crescimento dos adeptos à fé cristã, os problemas derelacionamento começaram a surgir, e os apóstolos estavam dispendendo muitotempo com questões domésticas, mais especificamente a divisão das provisões.Uma vez que a igreja primitiva vivia uma espécie de socialismo, onde tudo eraigualmente dividido, algumas viúvas, as que não eram de Jerusalém, estavamreclamando porque recebiam menos provisões que as locais (At 6 1ss). Osapóstolos então, pediram para que a comunidade escolher sete diáconos. Homensde confiança, sabedoria e notória influência do Espírito Santo. Uma pessoainclinada às necessidades do próximo e atenta ao chamado do Espírito Santo.
Enfim,a idéia básica do ministério pastoral, somos todos garçons. Estamos aqui paraservir à mesa, para trazer o alimento, para propiciar que o povo de Deus faça otrabalho que lhe é devido. Qualquer coisa que fugir deste parâmetro é invenção.Para isso fomos chamados. 

O livro de Atos contém alista dos escolhidos: Estevão, Filipe, Nicanor, Timom e Nicolau de Antioquiaque não era judeu, mas um gentio convertido ao judaísmo e, posteriormente, à fécristã. Este último deveria ser o santo padroeiro dos protestantes, SãoNicolau. O primeiro gentio aceito no ministério cristão. É bem provável que, aprincípio, algumas pessoas não tenham ficado satisfeitas por não terem sidoescolhidas. Pouquíssimo tempo depois, já estavam dando graças a Deus por teremficado de fora. É só lembrar que primeiro mártir da fé cristã foi exatamente oprimeiro nome da lista dos escolhidos: Estevão, Filipe era o segundo.

Maso texto fala da conversão do eunuco, segundo a tradição o tesoureiro mor, ouseja, o ministro da fazenda de Candace, rainha da Etiópia. Eu gostaria decomentar algumas idéias aparentemente controversas contidas no texto.

Oprimeiro problema surge exatamente no primeiro versículo do texto: vá para aestrada que vai de Jerusalém a Gaza, porque é deserta. Muito embora eureconheça que existe uma ligação profunda entre História da Salvação e odeserto, confesso que ia ter muita dificuldade para cumprir esta ordem. Vá pralá porque não passa ninguém. Jesus havia dito que a seara era grande e que ostrabalhadores eram poucos, então porque iria enviar alguém tão qualificado parair a um lugar deserto, onde não passava ninguém? A minha cabeça é muitoracional para entender algo assim. Mas esta é uma lição fundamental para ocristão em todos os tempos. A idéia é trabalhar onde não há ninguémtrabalhando, de fazer a obra no terreno estéril, onde não nasceu nada ainda. Hápouco tempo as igrejas tradicionais faziam a sua “pesca” entre os católicos.Por sua vez, as igrejas pentecostais, “pescavam” nas igrejas evangélicastradicionais. Mas aí vieram as igrejas neopetencostais, que meteram a mão numacumbuca que igreja nenhuma jamais se atreveu. Elas resolveram bater, e baterforte nas religiões espiritualistas, principalmente nas mais primitivas. É bemverdade que usando praticamente as mesmas armas, superstições e magias,próprias dessas religiões, mas que elas foram, isso foram.

Umaanálise mais acurada vai perceber que os novos convertidos simplesmentetrocaram uma superstição pela outra. Trocaram o pai de santo por um paiespiritual, do qual serão dependentes pelo resto de suas vidas. São elesdeterminaram o que comer, vestir, assistir, e principalmente, onde gastardinheiro. Um outro detalhe peculiar dessas igrejas é que para elas o ecumenismoé um demônio de proporções mundiais. Não admitem diálogo nem mesmo com outraigreja neopetencostal. Aqui nesta igreja é que está a verdade, a salvação, acura, o livramento. Fora daqui não há nada, quem se atreve a sair perde tudoque conquistou. Como disse um recentemente um apóstolo de chapéu: minha igrejaé a menina dos olhos de Deus.

Masparece que há uma luz no fim do túnel. Tanto a igreja católica, quanto asigrejas tradicionais tem mostrado preocupação com o crescimento deste segmento.Já há uma iniciativa de orientar uma catequese especifica para este grupo.Espero que com ética, sem confronto e mais aproximação, como foi o caso deFilipe com o eunuco. Filipe estava lá na hora e no lugar certos, aproximou-sedo carro, e assim, foi convidado a entrar e a opinar.

Estaé a primeira lição do texto, é preciso estar lá, marcar presença, se fazerpresente e atuante, para depois então se aproximar, fazer o contato amoroso daaproximação. Esta é a verdadeira definição de próximo, aquele de que eu meaproximo com amor. Não adianta estar ali como um poste. É preciso interagir,conhecer, saber das suas necessidades, sonhos e esperanças. Não faço a menoridéia do que um praticante do Vudu quer, o que almeja, ou quais são asperspectivas de um muçulmano. Para isso eu preciso conhecê-los no seu estadonatural, não chegar impondo regras e chamando a sua religião de demoníaca.

Asegunda questão é igualmente intrigante. Vamos imaginar aquela situação. Felipevai para um lugar deserto, e já está lá há algum tempo. De repente vê alguém seaproximar e pensa: é esse o motivo da minha presença aqui. Esta é a pessoa aquem eu devo falar de Deus. Mas quando ele olha, quem aparece? Uma pessoa queestava vindo do templo de Jerusalém, lendo o livro do profeta Isaías.Traduzindo para os dias de hoje: uma pessoa vindo da igreja, lendo a Bíblia.Poderia haver desperdício de tempo maior do que esse? A expressão aqui seria:Filipe estava no deserto fazendo chover no molhado. Não é essa a impressão?Sair de um lugar onde a sua presença é necessária e onde há tanta gente queprecisa ser assistida, para encontrar com uma pessoa que está no caminho certo.Será que em outro lugar qualquer não havia alguém mais necessitado?

Existeum hino, que infelizmente é pouco cantado, que diz:
Bem de manhã, embora o céu sereno
Um dia calmo queira anunciar
Vigia e ora, um coração pequeno
Um temporal pode abrigar

Essehino é um verdadeiro tapa na boca dos pretensos peritos em avaliaçãoespiritual. Aquilo que eu disse anteriormente quanto à ação do Espírito Santo.Existe um termo muito usado para quantificar essa ação do Espírito Santo: é ograu de espiritualidade. Eu fico aqui pensando que, como uma coisa tão íntima etão mística pode ser medida em graus? Será que pode haver uma escala. Jápensaram se no exame ao ministério a banca perguntasse ao futuro pastor: qual éo seu grau e espiritualidade? Imagino que o Filipe também deve ter avaliado oalto grau de espiritualidade do eunuco. Não gosto dessa palavra. Melhordizendo, do tesoureiro. Mal sabia ele que aquele homem abrigava um enormetemporal no seu coração. O temporal que o fez empreender tão longa viagem. Otemporal que ainda o atormentava na sua volta. O temporal que não se dissipou,nem mesmo depois da sua visita ao templo. Ir ao templo, ir à igreja, para elenão adiantou em nada. Estava voltando da mesma forma que chegou. Vigia e ora.Um olho na estrada, outro no coração. Um olho na mensagem, outro na pessoa aquem se dirige a mensagem. Essa é a segunda lição que o texto nos oferece.

Aterceira e última lição que consegui tirar desse texto, é uma pergunta que nãoquer calar. É uma pergunta que serve para todos em todas as horas: compreendeso que lês? Essa, sem dúvida é a lição mais difícil. Pode parecer que é umapergunta de alguém que conhece as Escrituras para um outro que não conhece, masna realidade a pergunta de Filipe é também dirigida a si.

Existeum outro hino, também pouco cantado, cuja mensagem fala exatamente sobre isso.
Enquanto, ó Salvador, teu livro ler
Meus olhos vem abrir, pois quero ver
Na mera letra além, o que Senhor
Nos revelaste em teu imenso amor.

Podemos muito bem entender o salmista, inspirado porDeus, escreveu, mas entendemos da mesma forma o motivo daquilo estar escrito?Qual a finalidade última do texto? O cristianismo deu um grande passo parrafora do judaísmo, quando deixou de se preocupar tanto com quem escreveu, comquem compilou e com quem traduziu a Bíblia, e passou a se preocupar mais comquem a estava lendo naquele momento. A quem, naquela hora destina-se amensagem? Basta observarmos a diferença dos estilos literários. Enquanto o ATtem mensagens abrangentes e universais, excetuando-se alguns profetas que deramnomes aos bois. Os outros livros sequer tem endereço. Já o NT foi escrito edirigido para pessoas e comunidades com problemas específicos. Muito emboratenha conseguido repercussão universal, a sua mensagem sempre foi local.Tornou-se abrangente, porque a Palavra de Deus é viva e dinâmica, ela não serájamais um monumento à ação de Deus no passado. Ela é para agora, para a minha epara a sua necessidade momentânea, como foi para Davi, Moisés e Paulo. 
Se alguém está entendendo esta abordagem comodesrespeitosa, deveria olhar a  letra deste hino. Ela vai muito mais alémdo que este arremedo de heresia. Ela tem a ousadia de chamar a palavra escritana Bíblia de mera letra. Isso mesmo, mera letra. O autor tem alguma razão?Particularmente acho que ele deveria estar doido, deveria inclusive ter sidoqueimado. A Bíblia jamais será para nós, assim como para toda a humanidade,mera letra. E é claro que o autor também pensava assim. Ele não chamou a Bíbliade mera letra para causar polêmica, mas sabiamente disse: tudo o que estáescrito ali é imensamente precioso. Porém, diante do que ainda pode serrevelado pelo imenso amor de Deus, é mera letra. Esse deve ter sido um dosúltimos hinos a ser aceito no hinário. Até alguém entender o que a mensagemquis dizer deve ter levado um tempinho.
Estamosacostumados a tentar ler o que se passa com o personagem do texto, e dalitirarmos conclusões para a nossa vida. Observem o que o etíope diz em relação aesta pergunta: de quem oprofeta está falando, dele ou de outro? Embora aflito, ele está interessadono que aconteceu com o profeta. O que Filipe faz é simplesmente pular por cimadessas questões, questões que facilmente prenderiam a nossa atenção, e começa amostrar no livro que o eunuco está lendo, para quem o profeta está falando,fazendo-o entender que aquela boa notícia era para ele. 
SeFilipe tivesse atendido o seu apelo imediato, o tesoureiro sairia dali beminstruído, mais culto, profundamente conhecedor, mas não teria sido convertido.Não teria aprendido e nem acreditado no que realmente importava. Ele jamaissaberia que o que está ali, fora escrito para ele, na sua hora de aflição eangústia. A pergunta que fica para nós é: você compreende o que lê, diante danecessidade do próximo? Você compreende que o que lê, isso vai ao encontro dossonhos, das esperanças, de quem ainda está calcado em superstições e crendices?Você compreende que Deus é infinitamente poderoso, e que pode fazer muito doque tudo aquilo que o seu próximo precisa? Você compreende que o que lê podepreencher o vazio do coração e dissipar de vez o temporal que há nele?
Outrodado importante. Filipe não disse pra ele: dê a volta e vamos pra minha igreja.Dê a volta que você precisa servir a Deus lá em Jerusalém. Vamos para lá, quelá é que está a bênção, a salvação. Ele deixa o tesoureiro e a sua comitivaseguir seu caminho. E a Bíblia diz que o etíope seguiu viagem cheio de alegria.Naquele contato rápido, porém oportuno, o eunuco trocou um temporal deansiedades por um mar de alegrias.

Filipeera um jovem arriscando-se na primeira viagem missionária, com o pensamento voltadopara Estevam, que havia sido executado. Filipe, como todo mundo, gosta de verseu trabalho reconhecido, e muito provavelmente seu trabalho não seria somenteadmirado, como também bem recompensado. Com toda certeza o tesoureiro ia abriros cofres e dar-lhe um presente que expressasse a sua gratidão. Mas Deus nãopermitiu que Filipe experimentasse o sabor dessa vitória. Não permitiu que eleusufruísse das vantagens daquele encontro. Que fique para nós também essalição. O único presente que Filipe ganhou, foi ouvir da boca do evangelizado aconfissão de fé no mesmo Deus que ele professava. Eu creio, o que impede que eu sejabatizado? 

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