A disciplinapessoal, também conhecida como conduta cristã, sempre foi associada aos usos e costumes que variavam segundo regras estabelecidas pelas igrejas. Asexigências de comportamento e as ênfases doutrinárias que o membro de igrejasegue, estão baseada na tradição dessa igreja, ou, no caso das igrejas queainda não possuem tradição, exclusivamente pela liderança dessa igreja. Nãofaz muito tempo, quando podíamos, com alguma facilidade, distinguir quemera membro desta ou daquela igreja, observando somente algumas características. Batistas,metodistas e presbiterianos tinham marcas próprias que os identificavam. Mashoje, mesmo as igrejas de conhecido rigor fundamentalista, permitiram queinfluências externas modificassem de tal forma a sua identidade, a ponto fazeremsuas marcas simplesmente desaparecerem.
Hoje é difícil dizer se uma igreja é essencialmentecarismática, tradicional ou que possui convicção liberal. É raro encontrarmos denominaçãoque se molde cem por cento pelo padrão que a sua tradição determinou. Hoje emdia temos presbiterianos carismáticos, metodistas fundamentalistas, batistasliberais e por aí a fora. Diante dessa mudança radical podemos nos perguntar: seráque guiados apenas pelos aspectos comportamentais e doutrinários, podemos chegara um consenso do que seria hoje o perfil ideal do discípulo de Jesus? Será que apenasisso seria suficiente para qualificá-lo como tal? Sem apologias ao saudosismo, entende-seque se os padrões antigos eram mais rígidos e mais impactantes, os atuais são maisuniversais, e, portanto, mais abrangentes. Ninguém, na época passada, estavapreocupado com clonagem, com transplante de células tronco, muito menos com piratariadigital. Dizer-se cristão e não frequentar regulamente uma igreja, seria umaaberração. Se assim fosse, hoje, como avaliaríamos aspessoas que não estando ligadas à igreja, e servem a Deus segundo critériospróprios, às vezes até mais rígidos que os nossos?Sem querer tomar partido de uma ououtra denominação, muito menos exaltar qualquer característica ou forma deculto, o que se pretende ao analisar esse emaranhado de usos e costumes que setornou o cristianismo, é simplesmente fazer uma avaliação pessoal. Sempre é horade perguntarmos a nós mesmos: que tipo de cristão nós somos? No meio dacrise de identidade que assola as igrejas, essa pergunta é bastante pertinente.
Antes de traçarmos qualquer meta, devemosrecorrer à fonte de toda a doutrina e fundamento da fé cristã, a BíbliaSagrada. Recorrer mais especificamente aos evangelhos. Neles vamos encontrar oponto de partida, pois ali estão narrados não somente os indícios do que o querealmente Jesus queria dos seus discípulos, como também os motivos que olevaram a se fazer carne entre nós? Se perguntássemos o que Jesus veio aqui, amaioria de nós responderia: salvar o mundo. Essa pode ser a resposta que justificaa sua paixão, morte e ressurreição, mas não traduziria de forma integral o que foio seu ministério. O confronto vitorioso e definitivo de Jesus contra o mal sedeu efetivamente na cruz, mas foi nos caminhos da Judéia e da Galiléia, onde andoufazendo o bem, que ele anunciou a chegada da boa nova do Reino de Deus.
A sua obra fundamental foi a vitóriacontra o mal, mas não devemos nos esquecer de que este confronto deu-se exclusivamente pela sua pregação transformadora e libertadora. A pregação que mostravaclaramente ser possível e imprescindível estabelecer uma nova ordem social, nãomais baseada no direito legal, nem no poder, mas na justiça que está acima ealém de todo poder, e de tudo aquilo que aprendemos a chamar de direito. Nacruz está a redenção para uma nova oportunidade de vida, mas na mensagem deJesus estão os desafios para fazê-la plena. Caso aceitemos isso como fato, podemosvoltar à pergunta inicial: que tipo de cristão nós somos? E também acrescentarmais um item: que postura de fé devemos priorizar? Os evangelhos nos dão contade que ser cristão nos primeiros séculos era muito mais arriscado, mas era bemmenos complexo. Neles, a resposta para muitas questões atuais não está explícita,porque no tempo de Jesus não eram essas as preocupações. Não havia uma igreja organizada, e porisso não se estabeleceu princípios para o seu bom funcionamento.
Os apóstolos, mais tarde, vão se ocuparem definir quais seriam as funções principais e secundárias. Mais tarde ainda,Paulo iria delinear as características necessárias para cada função, o que deu onome de dons espirituais. Ele não somente se deu ao trabalho de defini-los,como estabeleceu uma hierarquia entre eles. Colocou em primeiro lugar oapostolado seguido da profecia, do ensino e da operação de milagres. Logicamenteque ele não anteviu as derivações modernas dessas práticas. Unção do Espírito, regressão,danças, cai-cai, atos proféticos e as famosas coreografias da fé, que são quesitosessenciais para quem quer ser hoje um bom membro de igreja, não constavam na lista original.
Jesus foi o teólogo do Reino de Deus.Essa era não somente a tônica da sua pregação, mas quase que exclusivamentevocação do seu ministério. Jesus teve como meta básica anunciar que o Reino deDeus era chegado. Se houve umas poucas exortações e algumas cobranças nocotidiano dos seus discípulos, a razão focava unicamente o Reino. Quem meama, segue os meus mandamentos (que priorizam o Reino). Se alguém quer vir apósmim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me (no caminho do Reino).
Em momento algum Jesus chamou parasi a centralidade do culto, do louvor e da adoração. Pelo contrário, exauriu seutempo, suas energias e a própria vida para anunciar o Reino de seu Pai. Então, por queas ênfases nos cultos cristãos de hoje, subvertem radicalmente esta ordem? Jesusnunca disse que deveríamos amá-lo acima de todas as coisas, pelo contrário, sófez confirmar o velho e bom mandamento: amarás ao Senhor teu Deus de todo o teucoração. Nunca disse para que as orações devessem ser dirigidas a ele, mas aoPai que está no céu. Nunca ensinou um cântico sequer de louvor ao seu nome. Em uma das citações maiscontundentes da sua pregação, se apresenta apenas como caminho que leva aoReino, nunca como ponto de chegada e muito menos como consumação desse Reino. Abrindo mão de tudo isso, fez de sua vida um hino de louvor a Deus.
Diante disso, seria errado concluirque as confissões de fé, as manifestações de fidelidade, juras de amor eterno eexaltação acima de todas as coisas, enfim, toda a ênfase nos cultos modernas tendem a cair no vazio, se não forem precedidas de ações concretas em favor do Reino, queJesus veio anunciar, e pelo qual se deixou ser crucificado? Precedida é apalavra chave, porque segundo ele próprio, devemos buscar, antes de tudo, oReino de Deus e a justiça inerente a este Reino, porque as necessidadese expectativas viriam a reboque. Penso que para definir o tipo de cristão devemosser hoje, já temos um ponto de partida: o cristão deve priorizar o Reino deDeus e a sua justiça.
Porém, é mais que sabido que essabusca pelo Reino não se faz individualmente, ou aleatoriamente. Ela se dá emcomunidade. Existe uma igreja por trás daquilo que somos, pregamos e vivemos. Mesmoconsciente de que devo priorizar o Reino, eu sou devedor dessa igreja, e ela exigede mim uma resposta clara quanto àquilo que devo enfatizar na busca do Reino. Eé aqui que cada igreja define as suas ênfases. É aqui que essa definição setorna mais complexa, pois ela é consolidada segundo a relevância que a igreja dá cadauma das pessoas da Trindade.
Os católicos romanos enfatizam afigura do Pai, do progenitor. Muito embora o destaque se dê através da mãe, portrás dessa devoção há um sentido de venerar alguém que vem antes, que propicioue que de alguma forma tornou possível o ministério de Jesus. Para osevangélicos pentecostais, e agora também os neopentecostais, a evidência recaisobre a terceira pessoa da Trindade, o Espírito Santo, que veio depois.Eles entendem que por ser o continuador da obra de Cristo, é ele quem está maispresente, portanto, mais próximo e acessível. E finalmente existe oprotestantismo tradicional, herdeiro da reforma, no qual estão inseridas asigrejas históricas, como Batista, Presbiteriana, Luterana, mais recentemente aMetodista. Estas não escondem a sua predileção pela pessoa do Filho.
Qualquer visão menos informada diriaque estas são três igrejas distintas, e que não há qualquer possibilidade deconvergência entre elas. O que na prática não foge muito à realidade. Diante dessedistanciamento denominacional, qual é o nosso papel como cristãos? Acirrar maisainda esta disputa de entre as denominações? Exaltar cada um a sua denominaçãoacima de todas as outras? Abominar qualquer prática ou manifestação que nãoesteja de acordo com o nosso manual de fé? Alguém poderia acrescentar mais unstrinta itens a essa lista. Mas é a esse fim que o Plano de Salvação nos induz? É para isso que eu fomos chamados?
A força que nos une: católicos, evangélicose protestantes, sempre será muito maior e infinitamente mais relevante do queas forças que concorrem para nos separar. Por isso é que diante de nós se apresentam doiscaminhos: o que leva a exaltação de uma denominação em detrimento dasoutras, e, consequentemente a nossa promoção pessoal, o nosso status acima detodos os demais cristão; e o caminho que nos leva a colocar a denominação, e aprópria igreja local debaixo e a serviço de um apelo à unidade da qual o Reino deDeus hoje se faz extremamente carente.
Neste sentido temos dois exemplos pelosquais deveríamos ser constantemente avaliado. O primeiro, que diz respeito ao valorque se deve dar à denominação. Este exemplo foi dado por João Wesley, mascaberia na boca de qualquer reformador. Calvino ou Lutero poderiam muitobem dizê-lo, se é que de alguma forma não disseram. No auge do movimentometodista, Wesley diz simplesmente: eu seria a pessoa mais feliz do mundo se onome metodista nunca mais fosse pronunciado na face da Terra. Essa era aimportância que Wesley dava ao movimento metodista no contexto denominacional. Osegundo exemplo a ser seguido, diz respeito à promoção pessoal, e foi dado por outro João, o Batista. Quando o seu ministério atingia o apogeu, e o grande númerodos seus seguidores colocava em alerta o Império Romano, ele fez a seguintedeclaração: importa que ele (Jesus) cresça e que eu diminua.
Aqui se responde asegunda parte da pergunta: o discípulo de Jesus é aquele que coloca sua fé, asua igreja e a si mesmo a serviço de uma igreja maior, uma igreja tão boa, tãogrande e tão abrangente que Jesus ousou chamar reino, o Reino de Deus. Mas é fato que igreja alguma, seja deque denominação for, está isolada no mundo. E qualquer uma delas está longe deser parâmetro entre o espiritual e o profano. Segundo o próprio Jesus Cristo, avocação da igreja é congregar, daí a raiz do seu nome, eclesia. Sua função é investir contra as portas do inferno, o quartelgeneral das forças que dividem os homens.
Mas para que a igreja exerça suavocação plena nesta geração ela precisa atuar eficazmente em uma sociedade emque imperam dois tipos de ética. A ética dos ativistas sociais e a ética da moralpessoal. E esta é uma área de ação bastante complexa, porque ao mesmo tempo que precisa estar ao lado dos que combatem os problemas globais, a igreja tem que alertaro indivíduo quanto ao aperfeiçoamento como pessoa, através do que chamamos dedisciplina pessoal. São faces opostas da mesma moeda. A igrejaprecisa posicionar-se entre ativistas que possuem um elevado censo de responsabilidadesocial, mas levam vidas que em nada valorizam a conduta moral, e aqueles quebuscam a perfeição moral, a honestidade, o caráter elevado, a temperança, mas que nãotem outra preocupação a não ser a sua excelência como cristão.
É muito difícil equilibrar-se sobreesses dois pilares, por isso é que raramente encontramos alguém que sejaminimamente sensível aos dois aspectos. Rigorosamente equilibrado entre eles,até hoje este mundo só conheceu um: Jesus, chamado Cristo. Somente eleconseguiu conciliar completamente a firmeza do caráter, o real sentido dejustiça ao amor e serviço às pessoas. E é com ele que precisamos aprender acolocar os pés nesses dois caminhos. Precisamos aprender a ser igreja nas mais problemáticasáreas do social, como também nas tentadoras experiências na busca da perfeiçãomoral. Aquilo que poderíamos chamar de equilíbrio perfeito entre piedade emisericórdia. Este equilíbrio aponta o verdadeiro caminho do Reino. Eaqui se completa a resposta. O cristão ideal para os dias de hoje, é aquele queprocura por todos os meios equilibrar-se entre o moral e o social.
Por escassos períodos da sua longaexistência a igreja conseguiu ser realmente fiel a estes princípios. Justamente nos períodos em que ela atravessou a maiorescassez de recursos, experimentou seu maior crescimento qualitativo. Foijustamente quando a igreja não tinha ouro nem prata, que ela pôde viver ecompartilhar o que de mais precioso possuía: o Evangelho. O poder de Deus que efetivamentevence o mal, a opressão e a injustiça. Guardadas as proporções populacionais desuas épocas, a Igreja Primitiva dos séculos I e II foi, sem contestação, a maisexpressiva e transformadora campanha evangelística de toda a história da igreja. Emmenos de cinquenta anos, a fé que nascera numa obscura aldeia da Galiléia, játinha seguidores na família dos imperadores em Roma. A única explicaçãopara isso, é que aqueles cristãos, nossos irmãos do passado, entenderam a únicamaneira de aceitar plenamente a mensagem do evangelho, é essa: ou o Reino é pleno, é para todos e abrange osmais intrincados aspectos da vida humana, ou esse reino não é o Reino de Deus.
0 comentários:
Postar um comentário