Quem tenta nos separar do amor de Deus?

Portões do Paraíso de Lorenzo Ghiberti (1378-1455)
No hino encontrado no final do capítulo oito da Carta aos Romanos, Paulo faz uma pergunta que é crucial e definitiva para a avaliação que o cristão faz da própria fé: Quem poderá nos separar do amor de Deus? Esta é uma pergunta que inconscientemente fazemos repetidas vezes, quer estejamos, como Paulo, celebrando o amor de Deus, quer nos momentos em que buscamos forças para superar as provações que nos assaltam. Seja por estas motivações ou por tantas outras que possam haver, a única resposta que o apóstolo espera de nós é: nada e nem ninguém.
Todavia, embutida nas entrelinhas, o texto contém uma segunda pergunta: Quem tenta nos separar do amor de Deus?


Diferentemente do que acontece com a anterior, esta pergunta permite uma série de respostas objetivas, que compõem praticamente um resumo das provações pelas quais o próprio apóstolo passou durante o seu ministério: tribulação, perseguição, nudez, fome, perigo, espada etc.
Paulo enumera uma série de fatores ruins que concorreram para nos separar do amor de Deus. Longe de parecer um otimista inocente, e nem tentando minimizar as consequências da dor e do sofrimento, ele está nos dizendo que precisamos ter cuidado extremo, pois essas coisas realmente tentam nos separar do amor de Deus. Muito embora não consigam, podem fazer um estrago danado na nossa fé. Seria admissível que, diante deste argumento de Paulo, pudéssemos deduzir que as adversidades impostas ao cristão, são os principais fatores que desafiam a sua fé, e que constantemente exigem dele respostas no relacionamento com Deus? Não tão rapidamente assim.
Um olhar mais atento vai descobrir que no mesmo texto há outra lista. Esta composta de coisas boas, com faces angelicais, que com a mesma intensidade que a morte, os principados, as potestades, a profundeza e as coisas do mundo presente, concorrem igualmente para nos separar do amor de Deus. Coisas como a vida, os anjos, os lugares elevados e o futuro. Então este hino não é apenas um alento para as horas de tentação. Ele carrega consigo uma séria advertência contra o perigo real que há nas horas de regozijo e paz. Não são somente os fatores ruins provam a nossa fé, os momentos alegres e os acontecimentos bons são igualmente tentadores, é o alerta que o apóstolo faz ao mundo cristão de ontem, de hoje e de sempre. É o que veremos em uma análise superficial da causa e do efeito destes fatores na nossa vida e, consequentemente, na nossa fé.
Paulo fala que a vida pode nos separar do amor de Deus. Qual é o sentido que nos leva a pensar desta forma? Logo a vida que é aclamada como o dom supremo de Deus, como a coroa da criação, como pode ser nefasta à fé cristã? A morte, e principalmente a morte que acompanha a perseguição, a fome, a nudez, o perigo e a espada, podemos entender bem. Mas a vida?
A psicologia moderna já acusou Paulo de muitas coisas, dentre elas, de possuir uma atração mórbida pela morte. Deduzem isso pelo fato de que em algumas de suas cartas, Paulo, em declarações do tipo “para mim o morrer é lucro”, tende a demonstrar um desapego à própria vida em favor de outros. Mas considerando o seu ministério e o seu empenho na missão, entendemos justamente o contrário. Paulo era um amante da vida, mas não de qualquer tipo de vida, e sim da vida plena, renovada pela fé em Cristo. Uma vida tão excelente, que a morte passa a ser um ganho quando se vive qualquer outro tipo de vida diferente desta. Nesta mesma passagem das Escrituras, quando entoa este hino ao amor de Deus, ele declara que, apesar de todas as mazelas que assolam a nossa vida, jamais podemos perder a convicção de que o amor de Deus é maior. Mas se Paulo ama tanto assim a vida, por que a colocou com um obstáculo ao amor de Deus?
A Bíblia condena de forma categórica a vida egocêntrica, voltada exclusivamente para si. Muito embora a sociedade atual em tese faça coro com esta idéia, na prática o que se vê é o culto ao exclusivo e ao restrito. Todos os apelos da mídia nos induzem a optar pelo que é inatingível à maioria, pelo que é próprio a uma classe, ela ostentação da conquista. O mundo quer nos assegurar de que quanto mais nos distanciarmos social e financeiramente, melhores pessoas seremos, porquanto adquirimos a capacidade de gerir não somente o nosso futuro, mas o das outras pessoas também. Mas a realidade nos mostra que os condomínios exclusivos são os mais visados pelo crime, e que os carros blindados viraram armas poderosas nas mãos dos bandidos. Não adianta querer tapar o sol com a peneira, visto que até os aviões comerciais estão sendo alvejados. Não dá para supor que Paulo tenha objetivado especificamente esta distorção social nesta carta, uma vez que a grande maioria dos cristãos de Roma, não pertencia a nobreza, pelo contrário. O tom da sua advertência é bem mais grave, porque quando se fala em estilo de vida incompatível com a vontade de Deus, não devemos visualizar apenas a tensões entre pobres e ricos. Paulo havia passado por uma experiência em Corinto onde a tensão se deu pela soberba religiosa de alguns. No meio da Igreja de Corinto uma pretensa aristocracia espiritual estava tomando vulto, e rachando de cima a baixo aquela comunidade de fé, o que não parece ser diferente hoje em dia. As novidades nas atuais formas de culto propiciaram a criação uma geração de cristãos de destaque como levitas, intercessores, ministros e adoradores que, ao atingirem este status, se elevaram muito acima dos membros comuns. Os louvores que rendemos a Deus somente são válidos se forem dirigidos por levitas, nossas orações somente "passarão do teto" se forem acompanhadas por intercessores, a ministração da Palavra nos intervalos musicais, vieram para substituir com vantagem os ultrapassados e desnecessários sermões, e a nossa forma de cultuar somente será aceita por Deus se obedecer a inspirada coreografia criada por eles.
Se as elites econômicas estão fazendo o diabo para se promoverem acima da massa popular, ainda ficam a dever, porque os "ungidos" estão fazendo o diabo a quatro com o mesmo intuito. Recentemente num programa de TV uma cantora Gospel da Lagoinha (sei lá o que é isso) engatinhava pelo palco dizendo estar recebendo a unção do Leão de Judá. Muito mais do que a perseguição ou a espada, que muitas vezes nos levam para mais próximos de Deus através da solidariedade e da consolação mútua, essa vida concorre em muito para nos separar do amor de Deus. É o tipo de vida que nos coloca cada vez mais distante daquilo que, aos olhos de Deus, deveria ser o nosso principal alvo de vida, o nosso próximo. Quando perdemos a noção de que somos apenas ovelhas de um único rebanho, e que somos guiados por um único pastor, perdemos junto a bênção que é o grande diferencial entre o evangelho de Cristo e as religiões. A misericórdia de um Deus que ama a todos indistintamente, que faz cair a chuva sobre bons e maus e faz brilhar o sol sobre justo e injusto. Jesus disse que quem se comporta de modo diferente da ovelha é lobo, ladrão e assassino, cujo objetivo na vida é dispersar e separar do amor de Deus.
Mas Paulo fala que os anjos também concorrem para nos separar do amor de Deus. É mais do que certo que quando o apóstolo falava de anjos não estava se referindo às criaturas aladas que povoam a mitologia dos povos. A referência recebe a conotação de algo muito mais próximo do nosso cotidiano. São pessoas que pela bondade e preocupação para conosco acabam constituindo-se em verdadeiros guardiões da nossa vida. Pessoas bem intencionadas, que nos amam, que desejam o nosso bem e contribuem efetivamente para isso. Se tais pessoas são tudo isso que foi mencionado, como podem concorrer para nos separar do amor de Deus? Alguns trechos da vida de Jesus mostram claramente como. Falam de quando a sua família desconfiada da sua saúde mental, invade uma casa com intuito maternal de silenciá-lo. Fala de quando Pedro, temeroso do mal que certamente faria a sua ida a Jerusalém, tenta persuadi-lo a mudar de idéia. Fala da transfiguração, quando Pedro, Tiago e João pedem para que Jesus pare o tempo e eternize aquele momento de glória. Todos indistintamente assumindo o papel de anjos da guarda de Jesus, todos indistintamente intencionados em preservá-lo, querendo o melhor para ele, mesmo que para isso tivessem que desviá-lo da missão maior que recebera de seu Pai.
Estes textos podem ser indícios, mas um em particular nos fala muito mais alto e claro, a primeira tentação de Jesus. Lida no contexto atual, após ter sido desmascarada, fica muito clara a intenção do tentador. Mas a realidade não foi tão simples assim. Jesus estava com fome, não apenas causada pelo jejum prolongado, mas principalmente pelo stress que a escolha das prioridades da sua missão havia provocado. Transformar pedra em pão era um excelente conselho. Afinal, estava no deserto, não lhe restava muitos recursos e já havia vários antecedentes na história de Israel quando o alimento no deserto foi milagrosamente conseguido. Que mal poderia haver em providenciar um bocado de pão? Se ele tinha o poder por que não usá-lo? Qualquer bom amigo aconselharia a mesma coisa. Somente alguém muito convicto de que nada, muito menos a fome, pode o separar do amor de Deus, consegue perceber que naquele apelo de amor intercedente estava a voz do diabo. Este é um sinal forte de que a preocupação de Paulo procede. Os nossos anjos podem muito bem servir de agentes para o nosso afastamento do amor de Deus.
Este apelo recorrente na Igreja de hoje, em que a necessidade precisa ser atendida de pronto, o socorro tem que vir de imediato, e quando a satisfação não é garantida, tem-se o dinheiro de volta, são as vozes intercedentes do diabo. As pregações garantem a solução imediata de problemas, curas irrestritas, causas ganhas na justiça, são sermões do diabo. É dessa forma, temperada de amor inconsequente, que se tenta ludibriar o povo com promessas enganosas e atraí-lo para o nosso “evangelho”, que geramos discípulos mil vezes piores do que nós mesmos. A propaganda de que Deus está de prontidão para nos servir, joga novamente um véu sobre a sua sublimidade, sobre a sua transcendência. Rouba dele aquilo que ele mais preserva, a sua santidade, pois o envolve em escambos, promessas que não são suas e concessões nem sempre lícitas. Este apelo nos separa do amor de Deus, porque cria um Deus incapaz de amar plenamente. Cria um Deus que é somente retribuição, que olha somente pelos filhos prediletos. O amor deste Deus não pode nos alcançar, e aí ficamos separados dele.
Deveríamos falar também dos perigos que o poder, as alturas e o futuro podem nos oferecer no relacionamento com Deus. Mas queimando etapas vamos tratar do elemento mais misterioso de todo o texto, quando Paulo nos assegura que nenhuma outra criatura pode nos separar do amor de Deus. Que outra criatura é essa? Paulo fala que do amor do Deus único, soberano e onipotente, nenhuma outra criatura gerada por ele, pode dele nos separar. No modelo das manifestações de Deus criado pela igreja primitiva, conhecido como Santíssima Trindade, encontramos uma perfeita harmonia de poderes e atribuições entre os três elementos. Nenhuma destas personalidades de Deus tem motivo ou necessidade de se sobressair perante as demais. O Pai não é mais importante que o Filho, nem este maior que o Espírito que emana de ambos.
Durante séculos a fé cristã conviveu muito bem com este modelo, e ele foi suficientemente capaz para superar todos os movimentos que com as mais diversas intenções investiram contra ele. Qualquer idéia que privilegiasse um elemento em detrimento de outro, era, pelos pais da nossa fé, incondicionalmente rechaçado. E assim, a Igreja guiada pelo Espírito Santo se tornou a fé mais difundida em toda a Terra. Contudo, na história recente da Igreja Cristã, passamos a observar uma nítida predileção pela figura do Espírito Santo em relação ao Deus Pai e ao Deus Filho. Isso trouxe uma série de problemas, pois não somente levou a Igreja Católica a se fragmentar em uma série de seitas internas, como também as denominações históricas do protestantismo, sem distinção, foram divididas e re-divididas em grupos restritos, cada um segundo interpretação própria do que chamam de “o mover do Espírito”.
Deste enorme cisma religioso surgiu um sem número de igrejas neo-pentecostais que, a despeito de serem novas, passaram a ser o parâmetro da prática litúrgica da esmagadora maioria das igrejas tradicionais. O que poderia ser até uma renovação bem vinda, caso tais práticas não estivessem atreladas a interpretações equivocadas, tendenciosas e espoliativas em nome de manifestações e revelações particulares estranhas do Espírito Santo em nosso meio. Quando me refiro a revelações estranhas, não quero cercear a liberdade do Espírito de soprar onde e como quiser. Falo de manifestações que contrariam a autonomia que o próprio Jesus conferiu a este Espírito. Duas das limitações que Jesus sabiamente profetizou sobre a ação do Espírito foram: ele só ensinará o que aprendeu de mim e só fará o que me viu fazer.
Em face às atitudes ridículas levadas a cabo em nome do Espírito Santo, devemos perguntar: Teria a terceira pessoa da Trindade assumido, neste pretenso final dos tempos, uma atitude contraditória ao mandamento de Jesus, e a tudo o que vem realizando ao longo destes últimos dois mil anos? Será que o Espírito Santo abriu mão da tarefa de reunir toda a igreja sob o cajado de um só pastor, e agora se deleita com a proliferação de denominações? Diante destes questionamentos podemos chegar às seguintes conclusões: ou o Espírito Santo não atende mais ao propósito para o qual foi enviado, ou este que se anuncia no nosso meio não é o Espírito Santo de Deus e sim uma destas outras criaturas que concorrem para nos separar do seu amor que Paulo tanto nos alerta.
Confesso que é difícil tratar deste delicado assunto sem ferir conceitos de gente bem intencionada, de pessoas que honesta e incansavelmente tem buscado a direção de Deus, e se colocado a mercê do seu Espírito. Mas é necessário que se separe o joio do trigo e que se verifique na realidade, quem está crescendo: o reino de Deus ou as contas bancárias dos muitos que dizem ter recebido revelações particulares. Que se veja também, que tipo de conversão eles estão pregando: a conversão pelo arrependimento que propicia o perdão de pecados ou o convencimento de que a bênção nos vem unicamente através da barganha de uma oferta.
Observemos que tipo de cristão estamos formando hoje: o do tipo Barnabé que responde prontamente com seus bens, seus talentos e com a própria vida ao chamado de Deus, ou o do tipo Simão, o mágico, que vê na fé uma excelente fonte de lucro?  Menos pela falta de perseverança do que pela falta de conhecimento. Menos pelo amor a Cristo do que pelo medo do diabo. Menos pela certeza de que nada pode nos separar do amor de Deus do que pelas constantes decisões e práticas que contrariam este amor. Francisco Otaviano no seu poema Ilusões de Vida nos adverte profeticamente que a expectativa de uma vida calcada exclusivamente na ausência da dor, na negação do sofrimento e na fuga dos desafios gera espectros, não seres humanos, muito menos filhos de Deus que nada temem, a não ser se afastarem do seu amor.
Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,

Só passou pela vida - não viveu

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