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Parábola do rico e de Lázaro de Leandro Bassano (1557-1622) |
Vamos rever a parábola. O campo de certo homem, que já era rico, produziu com muita abundância. Diante de tamanha fartura, quais foram suas providências imediatas? Destruir os antigos celeiros, fazer celeiros novos ainda maiores, armazenar bens para os muitos anos do restante da vida, e assim poder dizer à alma: descansa, come, bebe e regala-te. Em resumo, um projeto de vida que, mostrando-se egoísta em última análise, é baseado em elementos palpáveis, factíveis e dentro da razão e da expectativa humanas. Mas como cristãos, aprendemos que projetos levados exclusivamente nestes termos não tem muita chance de ter finais felizes. O desenrolar dos fatos não seguem necessariamente a sequência dos nossos planejamentos, por melhor que estes possam ter sido feitos. Nós cristãos, julgamos ser inevitável este desencontro entre projeto e realização, porque entendemos que por trás de tudo o que acontece existe um Deus que é Senhor da História.
Entendemos também que qualquer projeto de vida fundamentado exclusivamente na satisfação pessoal, não pode contar jamais com o aval de Deus. Diante da incerteza da vida surge a pergunta: Louco, esta noite pedirão atua alma. E o que tens guardado para quem será? Antes de prosseguirmos, devemos afastar de vez a idéia de que há por aí um Deus matando pecadores que o desagradam. Aliás, uma leitura mais detalhada do texto, isenta completamente Deus como suspeito da morte do homem rico. O texto diz claramente: esta noite pedirão a tua alma. O sujeito que está no plural na parábola não é Deus e sim os bens acumulados. Ou seja, os próprios bens que acumulou requisitarão a sua alma. Melhor dizendo: seus bens não necessitam requisitar nada, a alma do indivíduo já é confessadamente deles.
Esta parábola serve muito bem para tratarmos de um assunto muito controverso e problemático nas igrejas cristã de hoje, e, pelo que se conhece da História, nas igrejas de sempre: a escatologia. O que vai acontecer no fim? Não se trata aqui de uma aula de apocalípitica, de datar e localizar do Armagedom ou mesmo da segunda vinda de Cristo. Mesmo porque, não existe e nunca existiu ninguém que tenha competência para tratar desse assunto. A palavra é justamente esta, competência. Jesus disse: Não vos compete saber tempos ou épocas que o Pai reservou exclusivamente para si. Vamos tentar aqui de refletir sobre a única escatologia da qual realmente deveremos dar conta, a única que realmente interessa, a única para a qual somos chamados a ter competência: a nossa própria escatologia. Vamos meditar cada um de nós sobre o nosso próprio fim.
Como é que eu estou me preparando para a minha escatologia? Como é que eu estou me preparando para o meu fim? Não vamos de antemão tirar conclusões preconceituosas e concluirmos que tal assunto interessa apenas às pessoas idosas, que, na sequência natural da vida, estão mais perto do fim. Não, desde muito cedo na nossa vida cristã, tomamos decisões que influenciam objetivamente toda a sua trajetória, incluindo o seu fim.
Como ponto de partida para a análise da escatologia pessoal, vamos utilizar a parábola que Jesus contou. Jesus estava falando sobre a riqueza e o uso que se dá a ela. Para se fazer um juízo justo, há de que se ter em mente uma visão mais ampla da palavra riqueza, que não se resume apenas à posse excessiva de bens materiais, embora esta também figure da lista. A riqueza, neste caso, abrange os vários aspectos da tentação humana, como: o poder, o prestígio, a fama e, particularizando o meio evangélico, algumas tentações bastante bizarras, como: o poder para determinar bênçãos, condição única de espiritualidade, exclusividade na salvação, conhecimentos e revelações adquiridos de forma mística e, até mesmo, uma forma soberba de humildade.
Diante do que se pode observar do mundo de hoje, podemos chegar à conclusão que a confiança no futuro com Deus enfraqueceu-se no decorrer da História. A pergunta que atualmente sacode o meio evangélico é esta: Você tem certeza da sua salvação? Para nós que aprendemos que a fé é baseada na esperança e não na certeza, essa mudança de ênfase é no mínimo trágica. O exercício da fé que deveria redundar na esperança de que, embora eu esteja perdido, errante e carregado de culpa, sou amado por Deus e, unicamente por isso, aceito por ele. Hoje, isso se transformou na certeza de que eu posso obter, por meio de ritos religiosos e coreografias da fé um atestado de bons antecedentes, e ser capaz de conquistas meritórias maiores do que a própria salvação. Este elemento me credencia não só a reivindicar por justiça esta salvação, como também, amparado na minha propensa retidão, questionar a fé do meu próximo. Tratando do assunto salvação, Paulo no capítulo 8, verso 24 de Romanos deixa claro que: ...na esperança, fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? João do Apocalipse desafia a igreja de Esmirna que se julgava excessivamente rica a rever seus conceitos e avaliar o quanto era de fato pobre.
Voltando à parábola: a vida de uma pessoa não consiste na abundância dos bens que possui, sejam estes bens de qualquer ordem. Se pudermos fazer a transposição para a nossa escatologia, podemos concluir que a vida cristã não consiste em acumular bênçãos e sim em regozijo na esperança em que fomos salvos. Paulo, em uma fantástica conclusão da questão dualista entre bênção e provação, deixou para nós um dos trechos mais objetivos do propósito da vida cristã, quando fala que a experiência na vida do cristão que não pode deixar dúvidas: ... gloriamo-nos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado” (Rm 5,2-5).
Outro dado que influencia bastante a visão da escatologia pessoal é a interpretação que se faz da escatologia bíblica. Nos três primeiros séculos, quando a igreja sofreu intermináveis perseguições, a pergunta que circulava na época era: o que Deus fará com os perseguidores da igreja e com os incrédulos? Não há o menor indício na literatura da época que nos faça pensar que o cristão primitivo duvidasse da sua própria salvação. Até mesmo a literatura apocalíptica, com suas imagens horripilantes de juízo e de castigo, não visava aterrorizar a mente cristã. Pelo contrário, pressupunha dois objetivos claros: primeiro, dar sustentação à abalada fé do crente perseguido e martirizado e, em segundo lugar, intimidar o perseguidor à conversão pela ameaça de um fim trágico. Ao que perece, ao longo do tempo o intento não surtiu o efeito desejado. O perseguidor não se converteu e as imagens horripilantes que permaneceram hoje se constituem em ameaça à própria igreja, que trocou, desta forma, a mensagem da Boa Nova pela ameaça do fogo eterno. Vivemos mais intensamente o medo do Inferno que a alegria da salvação.
A escatologia em vigência resume-se num guia de preparação para se fugir do juízo e não para o glorioso encontro com o Salvador no dia do grande banquete. Ninguém que tenta traçar ao longo da existência uma estratégia para fugir do fogo eterno, pode ao mesmo tempo gozar da bênção do Reino. Wesley dizia que quem não viver o Reino de Deus aqui na Terra, não o viverá em outro lugar. Uma leitura coerente da Bíblia é de importância capital para o entendimento do propósito de Deus para as nossas vidas. A Bíblia fala o tempo todo em liberdade, em transformação, em lançar fora o medo, em descansar em Deus, em aquietar-se na sua presença. Como é que, diante de tantas e tamanhas promessas, vamos fundamentar a nossa fé, fazendo a projeção da nossa escatologia analisando dois ou três trechos isolados? Quando o assunto salvação foi colocado à luz da vontade de Deus, Paulo ensinou a Timóteo de forma clara, concisa e objetiva: a vontade de Deus é que todos sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (I Tm 2,4). O binômio fundamental da matemática de Deus é este: salvação e liberdade vencem o medo do Inferno.
Para apresentar o terceiro argumento precisamos voltar novamente à parábola. Quem é rico para si não é rico para Deus. Não foi por poucas vezes que Jesus confrontou-se com a soberba durante o seu ministério. Se por vezes advertia as pessoas contra o perigo da confiança na riqueza material, por outras alertava sobre ao risco que a falsa religiosidade e a soberba espiritual fatalmente conduzem. Quando falava das pessoas que se auto exaltavam nos vários aspectos da vida, Jesus dizia simplesmente: Já receberam a sua recompensa (Mt 6,2). É bom que se observe que Jesus fala de objetivos almejados. Para onde nos leva esta riqueza? A uma efêmera satisfação pessoal e não a conquistas relevantes. Não foi à toa que Deus fez com que Paulo caísse literalmente do cavalo. Aquele irrepreensível líder religioso, formado com louvor na escola do mais proeminente rabino da época, havia alcançado o topo da religiosidade. Em termos humanos, o mais alto escalão que o esforço pessoal pode alcançar. De que lhe serviram o acúmulo de riqueza cultural e a excelência moral, quando se deparou frente a frente com Deus? Quando viu a história da sua vida passar como um filme diante dos seus olhos e avaliou qual seria o verdadeiro propósito da sua vida, quando se deu conta de onde vinha, onde estava e para onde ia e dimensionou a sua própria escatologia, parece que lá na estrada de Damasco Paulo estava ouvindo Jesus perguntar: louco, o que tens acumulado, para quem será?
Não precisamos comentar o que aconteceu depois desse encontro, mas o que se deve destacar é que, o que passou a nortear a sua vida não foi mais a milenar e sólida tradição rabínica, que mais tarde chegou a chamar de esterco. Suficiente pra ele foi o passo dado por Deus em sua direção, apenas isso, o que mais tarde chamou de graça. Não se trata aqui de se fazer um elogio à ignorância porque, como diz um pensador: a ignorância rara vezes é uma bênção. Não se pode desprezar o valor do ensino de Gamaliel, mas o que se questiona é o que Paulo estava fazendo com aquilo que havia aprendido, de como estava se utilizando do poder do conhecimento para perseguir, prender e matar.
O saber, os bens materiais e outros tipos de riqueza são dons que Deus nos dá não somente para suprir as nossas necessidades, porque ele nos dá com abundância muito além do necessário. São as ferramentas apropriadas para a construção do Reino, e isso sim carece de urgência. Como insistia a pregação de João Wesley: Nada fazer senão salvar almas. Não há tempo para se ficar pensando no fim dos tempos, nem para se vangloriar das nossas virtudes em praça pública. Toda essa inquietação com relação ao que vai nos acontecer no futuro é o resultado imediato da nossa falta de fé na providência. Ficamos separados de Deus e aí não sabemos de onde viemos, onde estamos e nem para onde iremos. Ficamos separados do mistério e da grandeza da nossa própria existência. Tornamos-nos incapazes de aceitar o amor gratuito de Deus porque entendemos que de uma forma ou de outra precisamos pagar por ele. Aí acumulamos virtudes e riquezas para tentarmos ser aceitos no seu Reino. Esquecemos-nos de que a vida não consiste no acúmulo abundante de bens, porque, ao contrário do que o mundo quer nos fazer crer, quem é rico para si, não é rico para Deus.
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