Cumpre a ti dominá-lo

Portões do Paraíso de Lorenzo Ghiberti (1378-1455)
Gn 4, 1-9
Do que exatamente trata este texto? Seria apenas uma narrativa fria e parcial do primeiro homicídio? Parcial porque a intenção do crime é algo inconclusivo, e fria porque relata mais um caso de morte por motivo torpe e banal. Mas se o texto tratasse somente disso não mereceria estar na Bíblia, naquela que acreditamos ser a Palavra inspirada por Deus. Visto deste ângulo, esta narrativa figuraria melhor na capa de um jornal sensacionalista. Contada desta maneira fica parecendo um filme de ficção, um fato que aconteceu há muito tempo numa galáxia distante.
Mas alguém poderia perguntar se esta é uma abordagem válida. Penso que sim. Afinal, não há nada de errado em colocar as coisas nos seus lugares, em dar nome aos bois. O assassino foi mesmo Caim e ele matou por motivo vil. A partir dessa premissa podemos desenvolver todo um processo de condenação, cujo crime, embora não estejamos livres, estamos bem distantes de cometer. Depois disso, só precisamos abrir o Inferno de Dante e determinar em que nível do inferno Caim passará a eternidade. A abordagem é fiel, mas ela nos é suficiente? A Bíblia se ocuparia em nos fazer chutar cachorro morto, ou o texto tem algo mais profundo que tenta nos falar mais de perto?
Como ponto de partida temos este pequeno texto para nos servir de base: o pecado está à tua porta, cumpre a ti dominá-lo. Algumas traduções o expõe sob forma de pergunta: o pecado está à porta, podes tu domina-lo? Para que se faça uma leitura séria é preciso perceber que existe uma questão legal por trás dessa história: o direito à terra. Quem tem o direito à terra, o agricultor Caim, ou o pecuarista Abel? Este é um impasse milenar cuja solução está bem longe. Os dois segmentos são imprescindíveis, tanto a agricultura quanto a pecuária. Os dois são legítimos, os dois estão dentro da lei, os dois são interdependentes. Contudo, para a economia selvagem são completamente excludentes. Um depende do outro mas não conseguem conviver, principalmente quando se trata do terreno semiárido da Palestina, onde as faixas de terra fértil são escassas.
Tanto hoje como naquele tempo é uma disputa constante entre os grandes latifundiários e os pequenos pastores. Essa luta tem a idade da humanidade. Desde que, segundo a arqueologia, este ser se chamou humano, a luta pela terra existe, e é por isso que desde que o homem é homem, o mundo jamais experimentou um único dia de paz.
Alguém pode alegar que não era o caso específico dos dois irmãos, afinal, eles tinham o mundo todo. Porém, mesmo que aceitemos a versão literal, que entendamos a história como fato, temos que nos lembrar que o texto foi escrito tardiamente, quando o conflito era real, quando pessoas se matavam por muito menos que um pedaço de terra. A Bíblia não está simplesmente contando uma história, está fazendo uma denúncia das atrocidades que aconteciam e continuam acontecendo. Porque mesmo que não venhamos a matar, esta morte é um problema que podemos sentir de perto. Este é o pecado que podemos chamar de universal. Desde muito cedo ele espreitou à porta de Caim e continua a espreitar à porta da humanidade, e como diz a Bíblia: cumpre a nós domina-lo. Será que podemos?
Seria preciso identificar de antemão contra quem é esta luta. Quem são os promotores da guerra os profetas denunciavam há tempo. Isaías 5,8 diz: ais dos que ajuntam casas a casas, juntam campos com campos, até não deixar lugar, e viver só eles no meio do país. Miquéias 2,1 é muito mais enfático: Ai daqueles que planejam iniquidades e tramam o mal em seus leitos. Ao amanhecer eles o praticam, porque o poder está em suas mãos. Se cobiçam os campos, eles o roubam, se casas, eles as tomam. O culpado é sempre o poder, porque o poder sempre se achou no direito de ter qualquer coisa e de fazer qualquer coisa para que isso aconteça.
Voltando à nossa história, na cultura semítica, o filho mais velho representava esse poder. Ele era o sucessor imediato do pai, aquele que recebia a maior parte da herança, quem mantinha os demais irmãos sob a sua autoridade. Na sucessão patriarcal o irmão mais velho sempre representou ameaça ao irmão mais novo. A predileção de Deus por Abel em detrimento de Caim vem trazer à tona essa questão. A Bíblia repete sistematicamente este tema. Foi assim com Jacó e Esaú, com Ismael e Isaque, com Raquel e Lia, assim também é com Abel e Caim. Estes textos tentam focar a predileção pelo mais fraco, pelo oprimido, pelo filho mais novo, pelo caçulinha, como dizemos.
Mas será que Deus como um Pai justo toma partido do mais fraco no sentido de ter um carinho especial por ele, ou será que quer dar um sinal da sua repulsa por aquilo que mundo considera natural e válido? Não poderia também ser a sua sentença sobre aquilo que o mundo julga ser imutável? Em suma: existe a tal opção preferencial de Deus pelo mais fraco em detrimento do mais forte? Não se trata aqui de predestinação, não é uma escolha definitiva de um povo em detrimento de outro, ou de uma religião em desprezo da outra. A história de Israel é a prova mais cabal desta realidade. Quando Israel era escravo das nações vizinhas, Deus vinha em seu socorro, para libertá-lo. Mas quando era Israel quem oprimia e escravizava outros povos, Deus também vinha, mas dessa feita como juiz, para puni-los.
A questão não para por aí, ela está mais próximo de nós que imaginamos. Podemos comprová-la na realidade mais atual. Existe em paralelo com a questão da terra um modismo, uma tendência cultural de época. No Brasil, a propaganda, os meios de comunicação e algumas pessoas influentes, tentam inculcar em nossas cabeças alguns dogmas. Os ambientalistas são muito bons nisso. Eles tentam fechar a questão em favor de um dos lados, e nos induzem a pender para um lado específico, sem questionar as razões para tal. Para os ambientalistas brasileiros, todo agricultor carrega uma enxada nas costas, ao passo que todo pecuarista tem centenas de milhares de cabeças de gado. É estereótipo do Jeca Tatu na sua luta inglória contra os latifundiários. Sei que muita gente não sabe o que é isso. Mas o cinema brasileiro por muito tempo bateu nessa tecla, da luta do pequeno lavrador rural contra os megaprodutores. Pouca gente sabia que eram os próprios pecuaristas que financiavam os tais filmes para dar um tom de vingança a uma causa que já estava perdida.
Os menos jovens vão se lembrar da Política do Café com Leite. Em São Paulo, nos anos de 1930, a classe dominante eram os cafeicultores, ao passo que em Minas, eram os pecuaristas. Esses dois grupos elegeram e depuseram presidentes. Mas para nós hoje o modismo segue outro modelo. A política agrária aceitável é essa: aumentar o rebanho, desde que não interfira na agricultura. Incrementar a produção agrícola, desde que preservem as florestas. E é uma política aplicada a todos os estados, não importando o grau de desenvolvimento nem o nível social.
Jesus conheceu bem de perto esse modismo. Sempre teve na sua mira o os saduceus, que ao lado dos fariseus, eram partidos políticos que existiam em Israel. Eu vou deixar que o mestre Clodovis Boff fale por mim quem eram os saduceus. Nesse partido se encontravam a classe rica, o alto clero, os proprietários de terra (anciãos como eram conhecidos). Como dá para desconfiar, era um partido totalmente “capacho”, pró-romano. Não tinham nenhuma posição crítica frente ao poder imperial. Por quê? Ora, porque ele era mantido sem nenhuma perspectiva messiânica. Eles não acreditavam na ressurreição e nem na vinda do Messias, porque o Messias significava mudanças e a ressurreição, nova vida. Eles se opunham a qualquer mudança, porque se beneficiavam da situação tal como ela era, e mantinham a ideologia da conservação. Eram extremamente conservadores e reacionários. Este partido se concentrava em torno do templo, tinha os papéis principais do governo colegiado do Sinédrio e detinha o todo poder político abaixo de Roma.
Ao sistema imposto pelos saduceus, deu-se o nome de legalismo, porque exigia o cumprimento rígido da lei. Como eram eles próprios que criavam algumas leis, e interpretavam as existentes com exclusividade esotérica, o sistema servia apenas para acobertar as iniquidades dos poderosos e manter o povo sob dominação. Como a sociedade em Israel era teocrática, isto é os governantes eram representantes de Deus na terra, vamos descobrir que não se tratava de uma dominação simplesmente política, era religiosa também. Jesus pregou com veemência contra isso: ai de vocês, escribas e fariseus hipócritas, que sequestraram as chaves da casa do conhecimento. Não entram e não deixam ninguém entrar.
Eu tenho um amigo que dizia que, quando a inflação acabasse no Brasil, dois segmentos iriam perder muito: os economistas, que não iam mais ser chamados para dar entrevistas, e os banqueiros. Ele estava só 50% certo. Só quem perdeu foram os economistas, os banqueiros ganharam mais e muito mais. E com essas leis ambientais, quem realmente ganha e quem realmente perde? Estamos falando do pecado que está à nossa porta como um animal feroz. Será que temos condição de dominá-lo? Quando é o caso de uma família que está precisando desmatar uma pequena área para sobreviver, para criar duas cabeças de gado ou para plantar uma rocinha? Diante desse fato o que as cartilhas ambientalistas mandam fazer? Rezar com os conservacionistas? Será que a solução é não desmatar e deixar esta geração morra de fome para que as outras sobrevivam? Há vários casos de pessoas que foram presas, e estão presas ainda, porque pescaram três peixinhos ou caçaram um gambá em reservas ambientais simplesmente porque estavam com fome. O que conta neste modismo é ser do partido do jacaré do papo amarelo, do boto cor de rosa ou do mico leão dourado, qualquer coisa fora que fuja deste contexto é crime inafiançável.
 Vamos terminar trazendo o problema para dentro de casa. Já falamos do pecado universal, do pecado nacional, agora vamos falar do pecado pessoal. Esta disputa territorial ocorre também dentro da nossa casa. O mundo moderno coloca frequentemente pais contra filhos, irmãos contra irmãos, cristãos contra cristãos. O pecado já não está mais à porta e sim dentro de casa, quando dois irmãos trabalham para firmas concorrentes que disputam o mesmo mercado, ou o mesmo cliente. Pais e filhos que advogam causas entre adversários. Para não comentar situações mais degradantes que envolvem sexo e drogas. Como pais, como mães e como irmãos, o que fazer nessa situação? Não vou mutilar o meu irmão, mas vou fazer o diabo para enfraquecer os seus argumentos. Não vou assassiná-lo, mas vou desqualificar a sua empresa para que a minha seja a preferida. Não seria isso uma forma de matar também? Em nome de uma competição absurda, coloca-se em jogo a sobrevivência. Nas situações de pecado anteriores é uma questão de vida ou morte. Ou o meu gado morre de fome ou a sua plantação vinga. Aqui é de morte ou de vida.
Essa deveria ser a decisão de Caim: escolher o lado para o qual pendeu a vontade de Deus, mesmo que lhe resultasse em perda imediata. A sua oferta, a oferta do poder foi rejeitada. Cumpria a ele acatar e mudar de lado, mas infelizmente ele preferiu o lado em que lhe era imediatamente benéfico, e assim fazendo declarou guerra contra a vontade divina eliminando sumariamente qualquer oposição a si. Notem que o texto nem fala da existência de um pecado anterior. O pecado de Caim não foi matar Abel, isto foi a consequência da escolha que fizera anteriormente. Deus ainda o advertiu: se você tivesse escolhido certo, agora estaria feliz e não irado como está agora. Assim fazendo, não deu a Deus outra possibilidade de escolha. Esta é também uma escolha nossa? Claro que é. Podemos até não ter influência para grandes decisões, mas é nas pequenas coisas que as nossas escolhas são reveladas. Quando escolhemos ficar do lado do poder, e nos assustaríamos em constatar as inúmeras vezes que isso acontece, quando esta opção nos é conveniente. O pecado também está à nossa porta, cumpre a nós dominá-lo. 
Deus sempre foi enfático em desprezar o poder; contra reis e sumo sacerdotes, enviou profetas, contra exércitos poderosíssimos, enviou sua Palavra, contra um mundo hostil, enviou uma criança. É exatamente este aspecto da natureza humana que Deus quer sensibilizar: a compaixão pelo mais fraco que existe dento de cada um de nós. Para isso ele nos diz que o improvável vence o inexorável, que a incerteza triunfa sobra a convicção, de que o fraco vence o violento e de que o humilde faz o exaltado morrer de vergonha. Diz-também nos para estarmos atentos, porque nem sempre somos os humildes, que nem sempre somos os mais fracos, que nem sempre somos os oprimidos. Podemos até levar a vida com ares de Abel, mas na realidade somos Caim na maioria das vezes. Muitas vezes não percebemos que a nossa oferta está sendo rejeitada em favor de outras que julgamos infinitamente inferiores. Por um lado, é até bom quando não percebemos, porque vamos nos flagrar em um sentimento profundo de irritação e de abatimento. Olha aí o pecado à nossa porta. Cumpre a nós dominá-lo. Será que podemos?

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