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O beijo de Judas de Giotto (1266-1337) |
Dentre os doze aparece um cujo nome se transformou no símbolo máximo da traição, Judas Iscariotes.
Quem foi este tal de Judas?
Onde nasceu?
Quais eram suas convicções políticas?
Por que traiu seu adorado mestre?
Dentre este universo de questões levantadas nestes quase dois mil anos, apenas uma pode ser respondida com certeza. Judas era um judeu do primeiro século e discípulo de Jesus. As demais tentativas de respostas transitam no campo da especulação. Seu sobrenome, por exemplo, não tem paralelo na Bíblia e nunca se entendeu o que realmente significa Iscariotes – se é um nome de família, de um lugar, se é um apelido ou se descreve suas ações. Alguns dizem que Iscariotes vem de um ramo dos zelotes que significa SIC RIOS – assassino. A facção “xiita” dos zelotes. Teria sido ele um assassino que renunciou às armas para seguir Jesus?
Os estudiosos concordam que Judas, assim como Jesus, nasceu na Judéia. Poderiam ter sido parentes? Ou mesmo irmãos? Sabemos que Jesus teve um irmão chamado Judas (Mc 6.3). Nas listas de Mateus e Marcos há somente um Judas, o Iscariotes. Apenas nas listas posteriores é que apareceram dois discípulos com este mesmo nome, sendo que um deles é identificado como filho de Tiago (Lc 6.16). Assim sendo, o outro só poderia ser filho de José, o carpinteiro, irmão de Jesus. Porém, o que efetivamente aconteceu foi que, daí em diante, passamos a ter dois Judas: um bom – irmão de Jesus, e um mau – Iscariotes.
Irmão ou não, Judas não foi menos leal que os outros, senão, o mais confiável deles. A ele eram entregues as finanças do grupo. Teria Judas sido tentado pela pequena quantia que o grupo dispunha para suas necessidades básicas, quando já havia deixado para trás tudo o que possuía para seguir seu mestre? Teria sido a ganância o motivo da traição? Por que somente João o chama de ladrão? Por que nunca o havia denunciado anteriormente? Teria sido uma interpretação pessoal feita após a releitura dos fatos?
Estamos na época da Páscoa, a de maior tensão entre os judeus e os romanos. Celebrava-se a libertação do poder imperial do Egito, durante a opressão cabal do Império Romano. Foi neste clima que Jesus chegou a Jerusalém. A profecia dizia que o Messias entraria em Jerusalém chefiando um poderoso exército. Que expulsaria os opressores e daria início a uma nova era de glória em Israel sentado no trono de David. Quando Jesus se anuncia como Messias e se diz ser rei dos judeus, não divino mas humano, Messias era um título humano. Ainda assim a entrada triunfal não iniciou um levante armado, nem os romanos se sentiram ameaçados. Se os discípulos estivessem esperando um Messias guerreiro em Jesus, eles não poderiam se sentir traídos por esta entrada pacífica em Jerusalém? Jesus era o Messias e se esperava que agisse como tal. Mas Jesus não falava em reaver um trono, mas em amar os inimigos e bendizer os perseguidores.
Os sacerdotes viam Jesus no templo pregar a paz e amor incondicional de Deus, até que um dia mostrou um lado violento até então desconhecido. “Chegaram, pois, a Jerusalém. E entrando ele no templo, começou a expulsar os que ali vendiam e compravam; e derribou as mesas dos cambistas, e as cadeiras dos que vendiam pombas” Mc 11.15. Será que, por este ato, tanto eles quanto Judas acharam que Jesus havia profanado o Templo, ou terá sido uma mera coincidência a traição acontecer naquela mesma noite?
Pessoas diziam que Jesus era um herege se dizendo ser filho de Deus, anunciando precocemente sua morte e ressurreição. Outros o consideravam realmente divino. Esta ambiguidade existe desde o primeiro século. Judas a expressou em toda a sua inteireza. Poderia Jesus ter sido considerado um falso profeta, nocivo ao povo judeu merecedor, portanto, de ser entregue aos sacerdotes? Até hoje alguns dedos-duros são considerados heróis.
Uma questão que chega a ser curiosa, é a condenação precoce de Judas nas traduções dos textos bíblicos. A palavra grega “paradwswn” somente é traduzida por trair quando se refere a ele, em todos os outros casos sua tradução é entregar, como podemos ver abaixo.
Mt 17.22 - paradidosyai = entregue
Mt 20.18 - paradoyhsetai = entregue
Mt 26.2 - paradidotai = entregue
Mt 26.45 - paradidotai = entregue
Mat 26.24 - paradidosyai = traído
ICo 11.23 - paredidoto = traído
A Páscoa foi realizada em um ambiente de tristeza e apreensão por tudo que Jesus havia dito sobre sua morte. Judas estava sentado bem perto dele, a ponto de partilharem o mesmo prato. Enquanto comiam Jesus lhes passava um ensinamento cheio de simbolismo: “isto é o meu corpo...”, e deste modo foi ministrado o primeiro sacramento da ceia. Discute-se até hoje como Judas pode ter participado da comovente cena, e logo após sair para trair Jesus. Lucas tenta resolver este mistério dizendo que o demônio entrou nele após a ceia.
Todos, inclusive Judas, ainda mostravam aversão quando Jesus anunciava a sua morte, e mais ainda quando Jesus afirmara que o traidor estaria entre eles. Um a um os discípulos se perguntavam qual deles o iria trair. “É aquele a quem eu der um pedaço de pão molhado” (Jo 13,26). Jesus não só antecipou a época da sua morte como também viu o rosto do traidor. Por que, quando Jesus identificou sem dúvida o traidor, os outros não o impediram de alguma forma? Não estaria João escrevendo teologia no lugar de história, e desta forma afirmando: “Jesus está no controle. Não Judas”?
Qual era a intensão de Jesus naquela hora? Estava aceitando passivamente o seu destino e a sua iminente traição? A interpretação tradicional assegura que foi tudo feito às claras, Judas saiu e o motivo da sua saída foi previamente discutido. Em sua última análise, Judas foi fazer o que Jesus previamente tinha denunciado. Deveríamos nós pensar que Jesus apenas o liberou por que sabia que Judas o faria de qualquer maneira? Nunca saberemos o que se passou entre ambos naquela noite, contudo, Jesus amaldiçoou aquele que o traíra (Mt 26.24).
Quanto ao preço da traição existe outra controvérsia. Trairia ele a Jesus por tão pequena quantia? Aquelas trinta moedas de prata não pagavam um mês de salário de um operário. Não foi por dinheiro, isto está claro. Além do que, Judas não entregou Jesus a Pilatos e sim ao Sinédrio. Caifaz o fez. Naquela época, a suspeita de uma profanação deveria ser imediatamente relatada às autoridades do templo, no caso um sacerdote, sob pena de cumplicidade. Este era um ato louvável, previsto na lei judaica e recompensado com 30 moedas de prata. Denunciar um judeu a um poder estrangeiro, aí sim, constituía-se em uma séria traição.
Judas tem remorso quando se dá conta de que Jesus estava diante de Pilatos, e tenta inocentá-lo, chamando para si o pecado por ter infringido um mandamento maior do que aquele pelo qual acusara Jesus – falso testemunho. O que se havia feito com muita tranquilidade, através de um beijo, transformou-se em uma tragédia incontrolável. Quando viu seu mestre diante de Pilatos, seu mundo desmoronou. Quanto às suas atitudes posteriores, somente Mateus se manifesta. Segundo um teólogo do século XIII, Judas tentou chegar a Jesus para pedir-lhe perdão, mas foi impedido pela multidão. Na esperança de sofrer o mesmo destino de Jesus, enforcou-se.
A imagem de Judas no mundo cristão tornou-se cada vez mais negativa. Veio num crescendo. No princípio somente Mateus e Lucas no livro de Atos o citam rapidamente. Paulo, que escrevera anteriormente, nunca se deteve neste assunto. Com o passar do tempo, houve a necessidade de se associar a morte de Jesus a uma intervenção efetiva do mal, e Judas foi o escolhido. Seria por que ele pessoalmente era o traidor? Ou seria pelo nome Judas ser muito parecido com judeu, povo que na Idade Média foi infamemente responsabilizado pela morte de Jesus. Judas – Judeu. Se Jesus e seus discípulos eram também judeus, por que somente Judas foi associado? E por que esta associação gerou tanto ódio?
A transformação de Judas de discípulo fiel na encarnação do mal serviria para vários propósitos, principalmente para atingir o povo judeu, alvo principal da excomunhão papal. Esta correlação se deu não pelas Escrituras, mas por uma intensa propaganda anti-semitista. Neste caso, Judas representa todos os judeus, e Jesus, todos os cristãos. Fica, deste modo, estabelecido o bem e o mal, cristãos e judeus, Jesus e Judas. Condenar Judas, até mesmo à malhação no sábado de Aleluia, tornou-se um serviço a Deus bem recompensado.
A condenação de Judas ainda está vigente hoje. Será que não nos damos conta de que Jesus, em seus últimos momentos, pediu perdão para todos os envolvidos, e Deus os perdoou a todos. Por que motivo ainda mantemos viva e presente esta condenação? Por que a aversão a este nome ainda perdura ao incondicional perdão de Deus?
1) Seria a dor definitiva na vida de uma pessoa ser traído por alguém a quem ama?
2) Ou, assim como Dante, classificamos a traição como o único pecado imperdoável?
3) Não nos damos conta de que a traição a Jesus se dá a cada momento das nossas vidas?
4) Não percebemos que o fato que levou Jesus à morte foi o meu e o seu pecado?
5) Ou seria que Judas, em meio a uma sucessão de fatos polêmicos, esteja sendo, até hoje, condenado por um crime que não cometeu?
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