Apostasia: como, quando e onde.


Bezerro de ouro, Cosimo Rosselli (1439-1507)
A palavra apostasia, de onde deriva o verbo apostatar que é muito traduzido por renegar a fé, recebe significados diferentes de acordo com a época. Não havia ateus no AT, nem mesmo entre os povos estrangeiros, por isso, apostatar não era simplesmente renegar seu deus, era seguir outro deus que não o seu. O contexto da apostasia no AT estava sempre relacionado à quebra da aliança. Aliança entre Deus e seu povo. Uma ruptura, a troca de um deus por outro, era um fenômeno realmente raro naqueles tempos, e a Bíblia quer nos fazer acreditar que só acontecia
com o povo de Israel. Acaso trocou alguma nação os seus deuses, que, contudo não são deuses (Jr. 2.11). Pelo menos Jeremias não tinha notícia de que fato semelhante acontecia entre os povos pagãos, a não ser, e com bastante frequência, com o seu próprio povo. Sem intenção de querer dizer que os fins justificam os meios, o AT nos mostra que num momento crucial da vida de Jó, sua mulher sugere que ele renegue Deus amaldiçoando-o, o que levaria Jó a se livrar definitivamente do seu mal. Os teólogos chamam a atitude sugerida pela mulher de Jó de eutanásia teológica, pois segundo a crença da época, quem amaldiçoasse Deus morria fulminado em seguida.
Mas apostasia não era somente renegar Deus amaldiçoando-o, era atentar contra tudo que estava contido nas prescrições da aliança. Nas páginas do AT uma aliança com Deus era que algo responsável que era comparado ao matrimônio, e o rompimento desta era considerado adultério. Mas é no NT que a quebra da aliança torna-se complexa e muito mais sutil. Embora o cristão possa deliberadamente de várias maneiras apostatar, infringindo qualquer dos fundamentos do evangelho, é muito mais difícil se detectar tal atitude. Não é uma palavra pronunciada ou uma intenção levada a cabo que joga de imediato uma pessoa nas trevas da apostasia. Talvez seja por isso que a apostasia se tornasse um dos sinais mais alarmantes da literatura escatológica. João, o visionário, desdobra-se em argumentos, imprecações e ameaças para dizer à sua igreja que não é somente sob o rigor da perseguição romana que a fé deles será posta à prova, mas principalmente nas sutilezas. Paulo já tinha feito esta advertência anteriormente: Tende cuidado para que ninguém vos engane com suas filosofias e sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo (Cl 2,8-9).

 

Ex 16

Temos aí uma denúncia clara contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada? Neste caso o povo não faz exatamente uma troca de deuses, não existe a intenção de se seguir outro deus, nem de adorar a Ged, Rah ou Anubis, etc. A apostasia, neste caso, se dá pela subversão do projeto libertador de Deus pela escravidão egípcia. A liberdade traz consigo responsabilidades, as quais o povo escravo não estava acostumado. Eles eram forçados ao trabalho vil, mas seu sustento material era providenciado pelos seus opressores. Quando o povo se vê no deserto, tendo que contar apenas consigo mesmo, é tentado a voltar e subjugar-se novamente a Faraó. O povo não queria saber do pão minguado, que é tudo o que a liberdade podia oferecer no momento, mas isso não é tudo. Temendo uma retaliação violenta dos opressores, eles pedem a Deus que os acompanhe na sua volta à escravidão.
Eles tinham saudade das panelas de carne e da aparente segurança que o Egito representava, mesmo que para isso fossem reprimidos e tivessem que abrir mão do exercício da vontade própria. Para eles era melhor a fartura na opressão que a miséria na liberdade. Eles não queriam servir ao Deus Libertador, queriam sim um deus que os servisse na escravidão. Esta é uma apostasia bastante evidente em nosso meio também nos dias de hoje. Aceitar o mau acordo em detrimento de uma boa briga, como diz o ditado popular. Assim como o povo recém liberto, temos verdadeiras ânsias de voltar à escravidão, seja ela de qualquer tipo. Basta que detectemos a perda de alguma mínima vantagem para que a liberdade nos é proposta suma pelo ralo.
Este é um pecado contra o caráter libertador de Deus. De um deus que não se deixa levar por barganhas, que não aceita conchavos, que não se manifesta através de meias mediadas, mesmo quando essas se mostram eficazmente benéficas. Estas são características dos ídolos, dos falsos deuses que recebem oferendas para desviar o olhar da iniquidade do povo. Deuses que não se importam com a moral, apenas com sacrifícios. Amós dizia: Também se deitam junto a qualquer altar sobre roupas empenhadas, e na casa de seu deus bebem o vinho dos que têm sido multados (2,8).Estranhamente ele escreve Deus co m “d” minúsculo, porém está se referindo ao Deus verdadeiro, mas que se sente como um simples ídolo, quando é adorado com ofertas que são fruto da exploração e da injustiça.

Ex. 32.1-7

Este é o conhecido texto do bezerro de ouro. E as perguntas são as mesmas: Temos aí uma denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada? Logicamente que os hebreus não eram burros. Eles sabiam muito bem que aquele bezerro construído há dez minutos não era o deus que os libertara do Egito. É bem mais provável que o bezerro representasse Moisés, que havia subido ao monte e os havia abandonado num vale de incertezas. Até então, eles não se importavam de não terem visto Deus, eles tinham Moisés. Aquele povo estava recém liberto de um longo período de escravidão de uma nação onde o que mais importava era o visual. Quando se fala em Egito nos lembramos imediatamente de pirâmides, e cada Faraó queria fazer maior e mais vistosa que o seu antecessor, da esfinge. Até o mundo dos mortos para eles era visível, eles o faziam através das múmias. O povo hebreu é desafiado a uma nova realidade. É chamado a cruzar o deserto onde não há nada para se ver. Uma realidade onde aquilo que é mais real, que é Deus, é invisível.
O pecado aí é contra a transcendência de Deus. Neste caso, não importa tanto a questão visível-invisível, ou mesmo se tratar de um culto a outro deus. O que prevalece é que o bezerro foi fabricado em ouro, símbolo máximo do poder, para representar a sede do poder de Deus. Eles estavam circunscrevendo o poder de Deus aos limites da influência da estátua e ao seu valor em ouro. Este é um sinal de que apostasia pode muito bem se dar no culto ao Deus Verdadeiro, desde que considerados apenas os atributos de Deus que nos são convenientes. 

I Rs 12.26-33

O cenário é o cisma. A divisão do povo hebreu em dez tribos do norte e duas tribos do sul. Ao morrer, Salomão não havia preparado devidamente o seu sucessor. Roboão, seu filho, fez um governo que conseguiu oprimir ainda mais o povo, que aquela altura já estava sobrecarregado de impostos. As tribos do norte, que há muito estavam esgotas financeiramente, rebelaram-se contra essa injustiça lideradas por Jeroboão, deixando deste modo de se subjugarem ao rei em Jerusalém. Estabeleceram sua capital em Samaria e ali coroaram Jeroboão seu novo rei. Mas ainda havia um problema a ser resolvido. O templo ficava em Jerusalém, e segundo o seu antigo costume, o povo tinha que ir constantemente a Jerusalém para adorar a Deus. Assim voltamos às mesmas perguntas de sempre: temos aí uma denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada?
Esse não era de forma alguma um problema de cunho religioso. Havia ainda nas tribos do norte a consciência do seu compromisso com a aliança com Deus, o problema era político. Jeroboão viu que se o povo continuasse a ir ao templo em Jerusalém, fatalmente iria reconhecer o rei de Jerusalém como seu rei. Não querendo perder o seu poder político, lançou mão de um artifício religioso. Em vez de lutar contra a divisão do seu país, preferiu garantir a coroa. Para evitar o seu drama, construiu dois altares, um em Dã e outro em Betel para que o seu povo, nesses lugares, fizesse sacrifícios a Deus. Através dessa arremedo dividiu o povo, e o povo dividido virou presa fácil na mão dos impérios vizinhos. O cisma aconteceu em 931 a.C., logo depois, em 722, o reino do norte foi varrido do mapa pelos assírios. O povo foi sacrificado no mesmo altar que havia construído.
Existe aí uma inequívoca tentativa de manipulação de Deus. Mas para tanto eles precisam antes torná-lo material, porque é impossível se manipular um espírito, ainda mais o Espírito de Deus, que de forma alguma emprestaria seu nome a tal arranjo. Esta é apostasia que se revela quando tentamos através de artifícios religiosos contornarmos situações as embaraçosas da nossa vida secular.

Jo 20.19

Temos aí uma denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada? O evangelista João fez questão de registrar uma falha no comportamento de todos os discípulos denunciando a sua covarde reclusão por medo dos judeus, ainda que o próprio Jesus já os tivesse alertado quanto a este perigo: Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo. Seria esse medo uma forma de apostasia?
Primeiramente nós não devemos confundir ter medo com apostatar. A situação para os cristãos se apresentava perigosa tanto por parte dos judeus quanto por parte dos romanos. A violenta e injusta morte do seu mestre ainda estava latente em seus pensamentos. Mesmo depois do derramamento do Espírito, havia temor entre eles, e temor muito bem fundamentado em virtude das perseguições que se seguiram. O Espírito Santo os dava coragem, mas não os anestesiava, ou alguém pensa que eles não sofreram com as dores das mutilações e violências narradas no capítulo 11 de Hebreus. A exigência da fé era de ser fiel mesmo diante da morte, mas em momento algum os encorajou ao suicídio ou à morte prematura e voluntária.
Existem muitas falhas de nossa parte quando julgamos as atitudes dos nossos irmãos do passado. Variamos entre ser complacentes demais, buscando exaltar somente os seus melhores momentos, ou os executamos sumariamente pela primeira impressão que a leitura de um texto sem qualquer aprofundamento no contexto, nos causa. Talvez seja porque estejamos sempre querendo competir com a fé de deles, para nos tornarmos, aos olhos de Deus, heróis na fé. O rev. Forsyth tem muito a nos ensinar sobre isso. Ele disse: Seria muito bom se nos libertássemos da ideia de que fé é uma questão de heroísmo espiritual, que apenas alguns cristãos seletos conseguem ter. Existem os heróis da fé, é verdade; mas a fé não é apenas para heróis. É uma questão de maturidade espiritual; é para adultos em Cristo.

At 5.1-10

Talvez este seja o mais enigmático de todos os textos do NT justamente pelas diversas interpretações que lhe são sugeridas. A ruptura abrupta desta narrativa colabora mais ainda com a confusão geral, e é por isso que devemos nos concentrar exclusivamente nos aspectos que nos interessam para o momento.
O final do capítulo quatro do Livro de Atos narra o cotidiano dos cristãos no começo da igreja: viviam em comunhão, eram um só coração, uma só alma. A narrativa desce aos detalhes da vida econômica da igreja primitiva: vendiam o que possuíam e entregavam aos apóstolos, e repartiam tudo em comum. É bom frisar que esta é uma característica da Igreja de Jerusalém, e não um paradigma para as demais igrejas cristãs. Também não devemos nos esquecer que a expectativa da volta de Cristo era urgente, naquele mês ou, no mais tardar, no mês seguinte. Tudo colaborava para a firme convicção no final dos tempos, onde Jesus voltaria e resgataria do mundo a sua igreja.
Dentro deste quadro aparecem Ananias e Safira que são contados entre os discípulos dos apóstolos. Depois do deu-não-deu, vendeu-não-vendeu, voltamos às nossas perguntas pertinentes: Temos aí uma denúncia contra a apostasia? Qual seria o tipo ou a forma de apostasia praticada? Para darmos resposta a essas questões vamos investigar as outras questões que o próprio texto levanta: Enquanto o possuías o terreno, não era teu? E se fosse vendido, não estava o valor em teu poder? Por que é que combinastes entre vós provar o Espírito do Senhor? Provar aí não é sinônimo de experimentar, mas sim de testar, de colocar a prova. O casal quis pagar, ou no caso, não pagar para ver. Eles queriam saber o quanto eles poderiam estar dentro, estando fora.
Percebe-se que neste conjunto dos capítulos quatro a seis deste Livro dos Atos dos Apóstolos essa interação entre a comunidade cristã e o povo de Jerusalém. Já nesta altura, passados os confrontos do Pentecostes, aquelas acusações de que estavam bêbados, os cristãos haviam conquistado o respeito e a estima dos habitantes de Jerusalém. Em Atos 5 lemos: E muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos dos apóstolos. E estavam todos de comum acordo no pórtico de Salomão. Dos outros, porém, nenhum ousava ajuntar-se a eles; mas o povo os tinha em grande estima; e cada vez mais se agregavam crentes ao Senhor em grande número tanto de homens como de mulheres, a ponto de transportarem os enfermos para as ruas, e os porem em leitos e macas, para que ao passar Pedro, ao menos sua sombra cobrisse alguns deles.
Ou seja, não somente a comunidade cristã respeitava e tinha compaixão do povo, como, da mesma forma o povo os considerava pessoas de bem. Ananias e Safira talvez estivessem ainda no grupo dos admiradores, ainda se sentiam discípulos, mas, ao mesmo tempo, queriam fazer parte do grupo seletos dos admirados pelo povo, e escolheram conquistar esse status por outro caminho. Se eles tivessem pregado a Bíblia nas praças, ou se prostrassem nos altares dos templos fazendo orações intermináveis, ou ainda se autointitulassem profetas, bispos, apóstolos e posassem frente às congregações como enviados exclusivos de Deus, tudo bem. Estariam eles enganando a si mesmos e a alguns incautos. O que eles não podiam, e ninguém deve tentar, é enganar ao Espírito Santo de Deus.  
Estas não são simplesmente apostasias, não se trata de abandonar uma religião e transferir-se para outra, ou mesmo trocar de denominação. Estas são tentativas sórdidas de negar o caráter de verdade e de justiça de Deus, de querer fazer dele um ídolo cego, surdo e, principalmente, mudo, de esconder a verdade debaixo de doutrinas e regimentos. Mas do que nunca precisamos reconhecer que somos carentes da graça mais do que realmente imaginamos. Pois só ela pode nos fazer enxergar de onde viemos, onde estamos e que caminho temos seguindo. Para mim, o rev. John Newton, autor de Amazing Grace, tem a oração que encerra e resume tudo o que foi dito em apenas uma frase: Não sou o que devo ser, não sou o que quero ser, não sou o que um dia espero ser; mas graças a Deus não sou o que fui antes, e é pela graça de Deus que sou o que sou.

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