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Sansão e Dalila de Peter Paul Rubens (1577-1640 ) |
Será que existe ou existiu sobre a face da Terra uma pessoa que nunca tenha motivo sequer para agradecer a Deus? Não estamos nos referindo ao agradecimento pelas coisas essenciais, como a própria vida, o ar que respiramos e todo esse conjunto de coisas que se atribui a Deus como dádivas universais da sua misericórdia, as que Wesley chamou de graça livre. Trata-se de se reconhecer que, em uma avaliação pessoal, o indivíduo julgue, considere o resultado e diga: Sim, tenho motivos para agradecer.
E nas Escrituras, será que existiu alguém que no julgamento de si mesmo, tenha considerado uma perda de tempo a sua própria existência? Sem querer manipular respostas, e considerando exclusivamente os aspectos biográficos encontrados na própria Bíblia, mais especificamente no Antigo Testamento, conseguimos identificar três sérios candidatos ao título de eternamente não gratos.
Gostaria de advertir que este comentário não é o resultado de um julgamento sumário dessas pessoas, mesmo porque, delas muito pouco se sabe delas, e o que se sabe não é suficiente para um juízo mais consistente. Trata-se somente de fazer uma análise superficial de alguns aspectos do seu caráter, acrescentando-se umas poucas conclusões que podem ser extraídas de uma leitura menos ortodoxa.A primeira pessoa que na Bíblia se encaixa no rol dos que não tem motivos para agradecer é Matusalém. Muito embora pese o fato que no Gênesis ele é homenageado como o campeão da longevidade, do mesmo modo o texto não nos fornece qualquer aspecto minimamente positivo no decurso da sua exagerada existência. Pelo contrário, diz apenas: Matusalém viveu 969 anos e gerou filhos e filhas. Julgando-se simplesmente por este aspecto, não parece ser ter existido outra pessoa, que apesar de ter uma vida tão longa, tenha vivido sem acrescentar ao seu currículo qualquer fato que marcasse a sua passagem por este mundo. Viveu tanto e a Bíblia tem tão pouco a dizer deste homem.
Já imaginaram se, num futuro, que espero que seja distante, alguém se levantasse para fazer a minha retrospectiva da sua vida, e dissesse algo assim: Esta pessoa viveu trocentos anos, e depois de alguns segundos de reflexão muda completasse: e teve um filho ou se aposentou no serviço público. Eu me levantaria da tumba e o expulsaria do velório. É sob este aspecto que Matusalém entra na nossa meditação, como um homem desprovido de qualquer realização minimamente relevante. Alguém cuja vida foi tão inexpressiva a ponto de não encontrar um motivo sequer para agradecer a Deus.
Sem querer fazer julgamento póstumo, Matusalém nos é apresentado como o protótipo de uma vida sem aventuras, sem riscos, sem conhecer o sabor do inusitado, sem sentir o calafrio da dúvida. Uma daquelas pessoas cuja vida Francisco Otaviano considerou assim: passou pela vida em branca nuvem e em plácido repouso adormeceu, e foi por ele assim definido: foi espectro de homem, não foi homem, só passou pela vida, mas não viveu. Seria possível que uma pessoa que vive uma vida completamente vazia ainda encontrasse algum motivo para agradecer a Deus além do ar que respira e da água que bebe?
Uma das denúncias que os profetas faziam dos cultos era justamente contra as ladainhas e as orações repetitivas que transformavam Deus em um ídolo mudo, que somente tinha que balançar a cabeça em aprovação ao que estava repetidamente acontecendo. Eles diziam que de nada adiantavam as ofertas, os manjares, os cânticos se ninguém dentre o povo tinha uma experiência nova para ser compartilhada, um fato novo para contar, para agradecer ou pedir orientação. Eu sei que foi pago um alto preço, diz a letra da música. Este preço foi pago pela nossa liberdade. Foi pago para que não devêssemos absolutamente nada a ninguém. Foi pago para que fôssemos livres para reinventar novos caminhos. Porventura pode passar pela cabeça de alguém que Deus fez este incomensurável sacrifício para que voltássemos a levar o mesmo tipo de vida que tínhamos antes de termos consciência desta liberdade?
As associações que o evangelho faz, são com a novidade, com o nunca antes visto, com o nunca antes experimentado, com o jamais sonhado. Disse Paulo certa vez: Nem os ouvidos ouviram nem os olhos viram o que Deus tem preparado para os que o amam. A conquista de um novo céu e de uma nova terra, não se faz com as ferramentas antigas do passado sem Deus. Mas fica a pergunta: como viver estas novas experiências? Esta é uma pergunta muito se assemelha àquela que Nicodemos fez a Jesus: como um homem pode nascer já sendo velho?E Jesus lhe responde: o vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes para onde vem nem para onde vai. Assim é todo aquele que é guiado pelo Espírito. Diz coisa semelhante ao jovem que queria segui-lo onde quer que fosse: as aves do céu têm ninhos, mas filho do homem não tem a certeza de quando e nem para onde voltar. Esta é a resposta de Jesus aos que querem receber as bênçãos do evangelho vivendo uma vida tranquila, programada, definida, sem incertezas e sem desafios.
Mas temos um segundo nome que, ao que perece, não tem motivo algum para ser grato. Ele é o terceiro filho de Davi, Absalão. Diferentemente da minúscula biografia dedicada a Matusalém, a Bíblia registra várias páginas da vida desastrosa deste rapaz, que mesmo vindo a morrer muito cedo deixou atrás de si um enorme rastro de ódio, vingança, adultério, insubordinação e assassinatos. Mas também não podemos julgá-lo sumariamente, mesmo porque as circunstâncias que o lançaram à vida criminosa são bastante suspeitas. Portanto, vamos aqui analisar apenas as suas reações, sem irmos diretamente às causas.
Seu nascimento e sua infância ocorreram justamente no período sangrento da vida de seu pai. Muito embora, a Bíblia não coloque Davi diretamente na cena dos crimes na sua trajetória até o trono de Israel, não temos como inocentá-lo. Foram seus homens que mataram, ele foi o principal beneficiado, todas as vítimas eram potenciais obstáculos para a sua subida ao trono. Esta foi uma excelente escola para o menino se formasse na criminalidade. E assim, Absalão começa sua carreira criminosa dentro da própria casa, assassinando o seu meio irmão, primogênito e preferido de Davi, Amon.
Indignado com a complacência de Davi diante do estupro de sua irmã Tamar por Amon, tramou durante dois anos fazer justiça com as próprias mãos. A isso se seguiu uma série de trapaças e mentiras para obter o perdão do rei, com intuito único de continuar a vingança pela morte da sua irmã. Desde o dia do estupro de Tamar até a sua morte, Absalão não teve um único dia de paz em sua vida, nunca mais conseguiu um mínimo de tranquilidade. Sua vida era uma empreitada consistente de ódio e vingança. Seu nome ainda hoje é proscrito em Israel. Um dos atrativos dos moradores de Jerusalém, mesmo passados três mil anos, é jogar pedras em seu túmulo para que ele não tenha, nem mesmo em sua morte um repouso tranquilo.
Penso que a marca de incapacidade de ser grato cabe-lhe como uma luva, pois como pode uma pessoa que vive uma vida de constantes sobressaltos encontrar um momento para de paz para refletir e agradecer? Como pode uma pessoa cuja vida se resumiu a tentativas frustradas de reparação de erros sucessivos com erros maiores ainda, ter no coração um lugar para a gratidão? Esta é a inconsequência do ativismo que não leva em conta os desígnios de Deus.
Outra referência negativa que se pode extrair da experiência de Absalão, é do carinho superficial que alguns pais tem para com seus filhos. Davi foi extremamente carinhoso e meticuloso quando escolheu seu nome: Aba Shalom, meu pai é a paz. Isto parecia querer dizer o quanto o pai o amava e quanto ele era bem-vindo ao mundo. Paralelamente ao tempo em que criava uma expectativa de amor, de segurança e paz, Davi concorria com atitudes e exemplos que em nada favoreciam a formação de um bom caráter no seu filho. Davi determinou de uma vez que este filho, ao longo de sua vida, não viesse a encontrar motivo algum para ter alegria, para ter paz e nem para ser grato a Deus.
Por mais macabra que possa parecer, esta é a história de muitas pessoas que vivem entre nós hoje. É a história de crianças que recebem nomes de celebridades, mas nenhum carinho ou atenção e vivem abandonadas nas ruas da nossa cidade. A história de doentes e idosos que são deixados em hospitais e asilos, sem receber uma única visita de seus familiares e que caminham para o fim de sua existência sem encontrar uma razão pela qual viveram. Esta é a história de mulheres cujas vidas são sufocadas pelo vício e adultério de seus maridos, e vislumbram a morte como única saída para o seu desespero. A gratidão pela bênção da vida nem sempre é tão óbvia como pensamos. A bênção quando mal usada fatalmente se transforma em maldição. Em uma maldição tão grande que a morte, mesmo sendo um mal aos nossos olhos, se torna uma dádiva bem vinda ao fim de uma existência marcada pela dor, pelo desespero e pela desesperança.
Enfim chegamos ao terceiro e último nome da nossa lista. O nosso querido e velho Jó em seu lamento: Pereça o dia em que nasci, e a noite em que se disse: Um menino foi concebido. Que esse dia se torne em trevas, que Deus não se ocupe dele e que a luz não brilhe sobre ele. Por que não morri ao deixar o seio materno ou pereci ao sair das suas entranhas?
Quem procurou conhecer a história deste patriarca bíblico, sabe muito bem que seu grito angustiado possui motivo pleno e justificável. Além de perder tudo o que representava a razão da sua vida, é condenado a viver na podridão, coberto de chagas incuráveis, de julgamentos intermináveis e de dúvidas indissipáveis. Deus jogou-me no lodo. Tenho aspecto de poeira e cinza. Clamo a ti e não respondes, [...] bem sei que me levas à morte, ao lugar para onde vão todos os mortais. Esta é a análise fria e cruel que Jó faz de si mesmo. Mesmo sem questionar as verdadeiras causas desta tragédia, ficamos com a certeza de que ele não viveu na omissão como Matusalém e também não permitiu que o ódio guiasse a sua vida como fez Absalão.
Jó era uma pessoa que além de ter uma participação ativa na sociedade, era reconhecidamente um homem bom, justo e generoso. Então, por que uma pessoa que era uma referência, de repente se encontra em uma encruzilhada da vida tão desfavorável que maldiz até o dia do seu nascimento? Por que ele chega a desejar algo ainda pior que a morte: o nunca ter nascido? Mais importante ainda, como pode ser que em meio a tanta desgraça Jó ainda encontre motivos para dar uma virada em sua vida que não apenas agradecer a Deus, mas afirmar irrestrita confiança na sua providência.
Estamos diante de um destes porquês da vida, por que pessoas boas e inocentes sofrem. O livro de Jó é mais procurado pelos que buscam razão para o seu sofrimento, mas, ao lerem, irão compreender que Jó não pôs fim a sua busca porque recebeu de Deus uma resposta convincente, mas quando declarou sua incompetência para julgar os seus desígnios, e quando depositou a sua esperança exclusivamente nele. Então por que Jó está figurando na lista dos que não têm motivos para agradecer a Deus? Porque Jó atravessa as mesmas fases que Matusalém e Absalão. Primeiramente sua vida era a expressão do marasmo religioso de uma vida sem desafios. Posteriormente, após se ver envolvido em uma série de tragédias, se empenha em uma trajetória de questionamentos e indignações, para finalmente converte as suas dúvidas em confiança, seus temores em gratidão, seu desespero em esperança.
As leituras descontextualizadas do livro de Jó tem resultado em uma doutrina totalmente oposta à mensagem que o livro encerra. Por dois ou três versículos as pessoas obtêm as mais diversas opiniões sobre Jó. Contudo, para efeito da nossa meditação, concluímos que Jó é aquele que não tem motivos para agradecer, mas mesmo assim agradece; não tem razão para esperar, mas insiste em continuar esperando; não encontra lógica no seu sofrimento pela perda de tudo que lhe é caro, mas conserva firme a sua fé. Jó serve para nós como um modelo de uma vida que oscila entre: choro e riso, altos e baixos, bênção e infortúnio, entre o pecado e a graça. Se a tônica do livro de Jó é o sofrimento, convém lembrar que a mensagem que permanece é que Deus é soberano tanto na riqueza quanto na miséria, tanto na saúde quando na enfermidade, tanto nas nuvens da glória quanto na lama da humilhação.
Jó é o exemplo de perseverança, de resistência e de luta contra o sofrimento. Seu hino final exalta o quanto a dor e o sofrimento podem nos fazer chegar tão próximos e tão íntimos de Deus a ponto de podermos vê-lo face a face.
A lista dos filhos de Deus que não encontram razões concretas para louvá-lo e agradecê-lo não é pequena não. Deus sabe muito bem disso. Deus está atento a isso, mas não para castigá-las ainda mais pela não gratidão, mas para desafiar os outros filhos que tem motivos para agradecer, para que sejam testemunhas de que ele não fará pleno o seu Reino enquanto perdurar esta situação. A estes cabe uma responsabilidade maior do que simplesmente marcar presença nos cultos, do que cantar louvores, do que exaltar Deus acima dos deuses.
Que Deus aceite a nossa gratidão e nos perdoe quando temos tantos motivos para agradecer e nos permitimos conviver lado a lado com pessoas que nunca conseguiram enxergar único motivo de gratidão que não seja o ar que respira. Conta-nos a história que um grupo de cristãos indignados com a escalada da maldade e do sofrimento no mundo, resolveu fazer uma vigília de oração, e decidiram que só parariam no dia em que Deus enviasse ajuda. Logo na primeira vigília Deus lhes respondeu: Eu já enviei ajuda. Enviei vocês.
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