Agostinho de Hipona de Botticelli |
Esta é a introdução de um sermão do rev. Bill Garrison sobre o Filho Pródigo que pode ser ouvida no link à esquerda desta página, e deveria ser também o posicionamento do cristão diante dessa questão está sendo levantada entre nós hoje: pode a descoberta
de algum novo evangelho abalar ou mesmo alterar a mensagem contida na Bíblia, principalmente o que aprendemos nos quatro evangelhos?
Muito embora a resposta continue sendo mil vezes não, temos que admitir que existe uma profunda diferença entre não ter dúvidas quanto à suficiência da Bíblia e não estar atento ao mal que este textos estranhos a ela podem causar à nossa doutrina.
Desde sempre, Deus tem capacitado a sua igreja para exercerem um duplo propósito: pregar a sã doutrina e refutar as heresias. É a luta eterna entre o profeta e o falso profeta. Sempre existirão, contudo, pessoas que, tomadas por sentimento de piedade, afirmarão ser uma grande perda de tempo discutir questões como esta, porque não leva a lugar algum, ou ainda, porque não edifica. Seria oportuno então perguntarmos: porventura, temos alguma pretensão de sermos mais espirituais do que os apóstolos? De sermos mais fiéis do que os Pais Apostólicos? Mais zelosos do que os homens e mulheres que, no alvorecer da fé cristã, tão aberta e incansavelmente debateram estes assuntos com suas comunidades, como nos testificam a Bíblia e os escritos dos primeiros séculos?
Está mais do que na hora da igreja colocar em pauta esta questão. E a recente descoberta do evangelho de Judas tem se mostrado bastante apropriada para conferirmos até que ponto essas doutrinas heréticas e nocivas à fé cristã, têm se perpetuado e influenciado o modo de viver o verdadeiro evangelho de Cristo.
Antes de qualquer iniciativa de resposta, vamos rever quem eram, e no que acreditava esse grupo de pessoas para quem o evangelho de Judas foi dirigido. Para que não fiquem dúvidas, há indícios bastante fortes de que o evangelho de Judas é um texto autêntico, do século III, e foi compilado de um original mais antigo ainda. Foi composto por um grupo de pessoas que convivia bem de perto com as igrejas cristãs dos primeiros séculos que se auto denominavam cristãos gnósticos.
Quem eram esses gnósticos?
Em que acreditavam?
O que é vem a ser a sua doutrina, o gnosticismo?
Por que se diziam cristãos em sua época?
Os gnósticos tinham por regra de fé alguns fundamentos: Acreditavam que o mundo, sendo imperfeito e mau como é, não poderia ter sido criado por um Deus supremo e perfeito. Acreditavam que ele fora criado por uma emanação imperfeita desse Deus, um demiurgo ou um deus menor, que nada mais era do que o próprio Deus do Antigo Testamento.
Cristo era uma revelação do Deus supremo, até então desconhecida pelos homens. E por ser uma emanação direta do Deus perfeito, não poderia ter existido entre nós em carne e osso, como qualquer mortal imperfeito. Sua presença entre nós se deu sob a forma de um espírito, que se apossou por adoção do corpo de um homem chamado Jesus como habitação temporária. Cristo veio ao nosso mundo mau para revelar, a uns poucos escolhidos, esse Deus supremo e perfeito, para que eles, exclusivamente através da assimilação deste conhecimento, pudessem ter com ele comunhão e por ele serem salvos. Após a exaltação de Cristo e da sua ascensão ao mundo superior, foi enviada ao mundo uma dispensação especial do Deus supremo, com a finalidade de dar continuidade a essa forma de conhecimento d´Ele.
Os gnósticos afirmavam possuir um conhecimento, no grego gnósis, que, em última análise, não é o conhecimento advindo de estudos, análises e reflexões como entendemos, mas o conhecimento que é adquirido de uma forma sobrenatural, mágica e mística.
Para eles a salvação tinha três níveis. No primeiro e mais alto estavam os espirituais, os únicos capazes de atingir o pleno conhecimento e a salvação deste mundo mau da matéria. Em um nível intermediário estavam os psíquicos, capazes de fé e de certo grau de salvação. E finalmente, no nível inferior, os materiais, sem qualquer tipo de esperança.
O esquema abaixo pode elucidar melhor a exposição.
Deus supremo habita em um mundo perfeito
Demiurgo criou o mundo imperfeito habitado por nós.
Cristo revelação primeira do Deus supremo entre nós.
2ª emanação continuadora da revelação de Cristo.
Gnosis forma única de se alcançar o mundo perfeito.
Espirituais 100% salvos Psíquicos 50% salvos Materiais 0% salvos
Em linhas gerais era esta a doutrina gnóstica.
Um dos fundamentos da fé paulina, que os gnósticos jamais conseguiram entender, é que o Cristo que havia tido uma pré-existência gloriosa e uma pós existência exaltada, teve, por um intervalo de tempo, uma encarnação que se deu de forma humilhante. Mas não se deram por vencidos. Embora não estivessem de forma alguma de acordo com esta doutrina, nem com os outros ensinos contidos nas cartas de Paulo, foram muito habilidoso em manipulá-los. Através do gnosticismo (conhecimento), torceram essas doutrinas e as usaram como argumento, de modo a permitir que seus seguidores não somente se sentissem à vontade nas igrejas cristãs como, também, através de interpretações deturpadas, envenenassem a igreja com a sua doutrina. Estes ensinamentos, embora sejam consensuais na doutrina cristã, olhados por um prisma diferente daquele que foi ensinado por Cristo, podem muito bem iludir alguém aqueles menos instruídos na sã doutrina.
A sabedoria dos perfeitos - I Co 2.6
“Porém, para os que são espiritualmente maduros, anunciamos uma mensagem de sabedoria. Mas não é de uma sabedoria deste mundo nem a dos poderes que o governam e que estão perdendo o seu poder.”
O contraste entre carne e espírito - I Co 15.50
“Isto afirmo, irmãos, que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorrupção.”
O desprezo a este mundo mau - Ef 8.12
“...porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes.”
Cristo, homem do céu – I Co 15.47
O primeiro homem, formado da terra, é terreno; o segundo homem é do céu.
Embora, em certos aspectos, muito parecido com o cristianismo, o gnosticismo foi o seu rival maior e o mais perigoso, pois solapava fundamentos históricos e viscerais do cristianismo, como:
A criação do mundo por um Deus, bom e justo.
A coerência do plano de Deus no Antigo e no Novo Testamentos.
A encarnação, morte e ressurreição reais de Cristo.
A salvação exclusivamente pela graça.
Contra as muitas heresias dos gnósticos, a igreja prontamente se posicionou. João encerra a sua primeira carta afirmando categoricamente: “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo....” (I Jo 4,2-3) Paulo, por sua vez, tentou de todas as maneiras evitar que tais doutrinas criassem raízes: Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados (I Co 15,16-17). Se hoje queremos dar crédito às palavras dos apóstolos, temos que concordar que eles não estavam pregando sobre hipóteses e sim a partir de situações concretas. A igreja estava sendo bombardeada por essas e por outras doutrinas heréticas, e por causa disso precisavam urgentemente tomar posição diante delas.
Esse evangelho gnóstico chegou em boa hora, para nos mostrar duas coisas: o quanto os primeiros cristãos foram zelosos com o ensino de Jesus e dos apóstolos, não permitindo que tais doutrinas vingassem no meio do povo de Deus e, ao mesmo tempo, o quanto estamos despreparados para confrontar o sincretismo, a falsa doutrina e a vã filosofia, não somente as de hoje mas também aquelas de 2000 anos atrás. A perseverança da igreja primitiva em manter-se fiel, mais do que nunca, precisa ser aprendida, entendida e copiada pela igreja de hoje. Baseado nesta triste constatação, o bispo Paulo Ayres afirma com toda razão: “Estamos criando uma geração de crentes nanicos”. Cristãos que têm medo de discutir determinados assuntos, que batem em retirada diante de argumentações filosóficas estranhas e que se acovardam perante as doutrinas que afrontam a nossa fé.
Para que sejamos zelosos como nossos antepassados, alguns elementos básicos devem ser consideradas na abordagem apropriada deste tema:
Em primeiríssimo lugar, nem a autenticidade, nem o tempo são indícios admitidos como provas de canonicidade. A igreja não escolheu os quatro evangelhos, e refutou inúmeros outros que circulavam na época, inclusive o de Judas, simplesmente por pautar-se nesses critérios, e sim porque constatou que somente aqueles quatro expressavam a pureza da mensagem de fé ensinada por Jesus, e testemunhada pelos homens e mulheres que haviam provado o seu comprometimento com o próprio Cristo. Precisamos nos lembrar também que o rótulo de cristão sempre foi aleatoriamente utilizado por diversos grupos, mesmo os não identificados com as suas práticas e doutrinas, como acontece em nossos dias. Cristo nos advertiu: Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus (Mt 7:21). Mas ao mesmo tempo, faz-se necessário que nós, que nos dizemos cristãos autênticos, façamos um mea culpa e identifiquemos alguns resquícios do gnosticismo que ainda sobrevivem e ganham força no meio evangélico.
Quando ouvimos alguém dizer: “O Senhor me revelou tal coisa”, com a velada intenção de autenticar as suas palavras, assegurando assim, possuir visões alucinatórias, lembremos de que contra estes, o rev. Garrison nos advertiu no início do sermão. Se uma pessoa se apresentasse a Wesley, o fundador do metodismo, dizendo ter recebido tais dispensações sobrenaturais, ele simplesmente perguntava: você está querendo se enganar a si mesma ou às demais pessoas. Báez Camargo em seu livro Gênio e Espírito do Metodismo Wesleiano, argumenta: “Wesley criticava a pretensão de receber revelações ou inspirações diretas ou privadas da parte de Deus, como visões, poder miraculoso na oração ou na pregação (no louvor), dons de curar e etc. Condenava a classe de entusiasmo que provém, são suas próprias palavras, de uma desordem mental, e uma desordem tal que interrompe muito seriamente o uso da razão”.O sermão doutrinário de João Wesley, “A natureza do entusiasmo”, fala muito bem sobre isto. Na realidade, o significado antigo da palavra “enthusiasm” é fanatismo.
Nos tempos de Wesley, seria comum haver estes fenômenos de histeria coletiva, devido ao grave problema sócio-cultural que a Inglaterra estava atravessando. Hoje, contudo, o que acontece em nossas Igrejas é uma pura e simples imitação do modo de proceder de grupos neopentecostais, cuja base doutrinária, se é que possamos assim chamar, repousa tão somente sobre revelações alucinatórias, conhecimentos místicos ou poderes mágicos que jamais poderiam constar da lista de dons que Paulo apresentou aos gálatas (Gl 5:22-23), confirmando-os como frutos do Espírito. Esses que andam por aí não são frutos do Espírito de Deus, mas da doutrina gnóstica que ainda insiste em sobreviver ente nós. Lembremo-nos de que eram os gnósticos que diziam possuir este tipo de conhecimento, diferentemente dos cristãos, que humildemente perseveravam na oração, no estudo da Palavra e no ensino dos apóstolos (At 2:42).
Outra vitória do gnosticismo sobre a doutrina cristã se dá quando relevamos o ministério de exaltação de Cristo acima do ministério da encarnação e da sua consequente humilhação. Quando pregamos e cantamos a sua glorificação acima da sua crucificação. Devemos urgentemente rever o nosso cancioneiro para que ao cantarmos hinos como o 106 do Hinário Evangélico: “Oh Rei sublime, em majestade e glória”, e louvores como: “O Rei exaltado entre nós”, o façamos com a firme convicção de que Jesus fez absoluta questão de se revelar entre nós como um servo. Entre profeta, sacerdote e rei, o único atributo refutado de antemão por Jesus foi justamente o de rei, em João 6.15, lemos: “Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei, retirou-se novamente, sozinho, para o monte”. Paulo após uma profunda experiência em Atenas, o quartel general da gnósis grega, escreveu aos coríntios confessando: “Nós pregamos a Cristo crucificado, que para o pensamento judeu é escândalo e para o pensamento grego (onde se fundamenta a gnosticismo) é loucura”, e mais à frente “... aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação.” Ao contrário do que diz o ministério da exaltação, Deus retira força da fraqueza; sabedoria da loucura; honra da vileza e exaltação da humilhação.
Mas existe ainda outra veia do gnosticismo vertendo seu sangue venoso em nosso meio. Acontece sempre quando superestimamos a graça de Deus, enganando a nós mesmos, imaginando atingir um grau de superioridade em relação às outras pessoas, invulnerabilidade diante das tribulações comuns a todos e algum status meritório diante de Deus. O gnosticismo, que é célebre em criar super-homens, por que não criaria também cristãos superiores? Podemos observar com frequência que em muitos cultos evangélicos não há mais lugar para a contrição, para a confissão de pecados e o consequente pedido de perdão. Pensa-se assim: “Para que isto? Somos a igreja verdadeira. Eu já fui salvo pela obra de Cristo. Eu sou o objeto e o portador da bênção. A partir daí, eu posso declarar sobre quem eu quiser bênçãos e nenhum mal sobreviverá a esta pessoa a quem abençoei”. Pelo menos é assim a letra de algumas músicas que cantam.
As violações não terminam aí. Estamos a toda hora colocando Deus a prova, “se tu és Deus faze isto, cura aquilo, restaura aquilo outro”. Confrontamos Deus constantemente com suas promessas. Deus precisa se auto afirmar constantemente como Deus. Até mesmo a fidelidade de Deus se presta para satisfazer os desejos, mesmo os mais obscenos. “Eu vou conseguir tal coisa porque Deus é fiel”, e já não mais importa o quê ou como.
Dietrich Bonhoeffer, falando das tentações pelas quais Jesus passou, escreveu: “Satanás, todavia, tentou Jesus ao exigir dele uma confirmação evidente de ser Filho de Deus. Isto é, não se deu por satisfeito simplesmente com a Palavra e a Promessa de Deus, mas quis mais do que fé. Tal desejo diante de Jesus é chamado tentar a Deus, ou seja por à prova a lealdade, a verdade e o amor de Deus. Isto equivale a transferir para Deus a infidelidade, a mentira e a falta de amor que deveriam ser procurados em nós mesmos”.
Também podemos perfeitamente notar a mudança do foco da ação em nossa hinologia. Não é mais Deus quem age primeiro, eu é que, por minha condição de adorador, ministro ou levita, faço o primeiro movimento. Sou eu quem adoro primeiro, quem louvo primeiro, quem venero primeiro, e Deus passivamente assiste a tudo sentado em seu trono de glória. Não é assim que aprendemos da Bíblia. O meu pai trabalha até agora, e eu também trabalho. Santo Agostinho dizia que se há alguma coisa boa em nós, isto deve ser creditado exclusivamente a Deus. Wesley deixou para o mundo cristão a excelente doutrina da Graça Preveniente. Doutrina que afirma que Deus age antes, antes mesmo de fazermos algo ou termos qualquer intenção de nos movermos em sua direção. Porque a ele nem toda honra e nem toda glória são suficientes.
Por esses e tantos outros motivos a recomendação de Jesus deve ser sempre lembrada: “Vigiar e orar”. Esta não será a primeira e nem a última vez que veremos a nossa fé confrontada. O evangelho de Judas não é o único quase cristão, e nem será o único a tentar abalar a nossa fé. Contra toda heresia e falsa doutrina, basta somente que vivamos focados na doutrina que é segundo a piedade, que nunca nos esqueçamos de onde fomos resgatados e do quanto somos devedores a essa imensa graça que nos resgatou. Se somos povo de Deus, não é por vontade ou mérito nosso. Não é por algo que fizemos ou por qualquer tipo e esforço material ou intelectual que fomos escolhidos. Não é pelo que somos, mas sim pelo que Deus é. É assim, porque ele mesmo confirma: “Eu te escolhi, não porque eras o melhor dos povos, pelo contrário, eras o pior. Eu te escolhi porque eu te amo”. (Dt 7:7-8)
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