Baruc escrevendo as profecias de Jeremias de Doré |
contra todos os teus mandamentos. Afaste-se de nós a tua ira, porque não somos mais do que um resto no meio das nações para onde nos dispersaste.
Escuta, Senhor, a nossa prece e a nossa súplica: livra-nos por causa de ti mesmo, e faze-nos encontrar graça diante dos que nos deportaram. Então saberá a terra inteira que tu és o Senhor nosso Deus, porque Israel e a sua descendência invocaram o teu Nome. Senhor, olha do alto da tua morada santa e pensa em nós; inclina, Senhor, o teu ouvido e escuta; abre, Senhor, os teus olhos e vê. Pois não são os mortos do Hades, aqueles cujo espírito foi retirado de suas entranhas, que renderão glória e justiça ao Senhor. Mas o ser vivo, embora cumulado de aflição, o que caminha curvado e enfraquecido, com olhar desfalecido e a alma faminta, eis quem te renderá glória e justiça, ó Senhor.
Não é apoiado nas obras de justiça de nossos pais e nossos reis que depomos a nossa súplica diante de tua face, ó Senhor nosso Deus. Pois desencadeaste o teu furor e a tua ira segundo havia falado por intermédio dos teus servos os profetas. Baruc 2.11-20
Uma parte excelente da herança que a mensagem profética, o judaísmo tardio e a igreja primitiva legaram ao Cristianismo está se escoando pelo ralo sem que se dê conta disso. Elemento fundamental e constante nas liturgias pré e pós exílicas, como também nos primeiros cultos cristãos, a confissão de pecados precedia qualquer manifestação de louvor, qualquer súplica, qualquer forma de pregação da Palavra e a qualquer desafio de conversão, o que faz com a negligência praticada hoje seja tão injustificável quanto absurda. Como imaginar que o Deus justo e verdadeiro decida inclinar seus ouvidos para alguém que o invoca com “as mãos sujas de sangue”? Foi com esta mesma pergunta que os profetas denunciaram as formas de culto que omitiam a confissão no passado. Sem confissão não há perdão de pecados, e sem perdão de pecados qualquer, forma de culto a Deus se torna nula de propósito.
Não seria no mínimo curioso que é de um dos livros que cobrem o período intertestamentário, omitido no cânon usado por algumas igrejas reformadas, que surge a mais perfeita e exemplar forma de confissão de toda a literatura bíblica. A confissão de Baruc, considerada apócrifa e mais tarde elevada à categoria de deuterocanônica, é inegavelmente a mais inspirada oração de contrição que já foi dirigida aos céus. Sem querer promover uma nova edição da Bíblia ou mesmo destacar a importância desta literatura para a educação cristã, devo dizer que o propósito desta meditação é enfatizar os pontos nos quais o escriba de Jeremias se firmou para se tornar mais um a denunciar as estranhas formas de culto ao Deus da Bíblia.
É norma exigida pela própria Bíblia que toda tentativa de aproximação de Deus deve começar com o reconhecimento do abismo que existe entre ele e o pecador. Reconhecer que Deus é Deus e santificar o seu nome, está acima de qualquer outro propósito na oração. Assim a confissão de Baruc começa, destacando o poder de Deus e a sua fama, palavra que hoje substituiríamos por glória, por estar menos desgastada. Mas é imprescindível que se entenda que este ato não tem por finalidade conferir glórias a Deus ou entronizá-lo, como se canta em algumas músicas atuais. Trata-se de conhecermos a nossa pequenez e de colocarmos no nosso devido lugar: o lugar de coisa nenhuma, o lugar de pecadores vis, o lugar de quem é inexoravelmente infame, sem fama. Somente quando estabelecemos esta distância é que nossa aproximação tem alguma chance de começar. Este ato, na sua simplicidade, elimina de vez qualquer tentativa de reivindicarmos a sua graça por mérito ou justiça. A justiça que se extinguiu com o descumprimento de todos os mandamentos, desde o menor até o mais relevante, um descumprimento que se deu tanto por mim como indivíduo, como pelo povo do qual sou integrante.
É importante que se diga também, que quem faz a oração não deve se valer do fato de ser o porta voz, e nem de ser o motivador da oração, para com isso diferenciar-se dos demais pelos quais está orando. Ele tem que ter a consciência de que está inteiramente contaminado pela cumplicidade em todos os delitos cometidos. É preciso estar mergulhado na multidão para que nos reconheçamos como povo, e é preciso assumir o pecado de todos como se fosse o próprio, para que não se estabeleça qualquer diferença entre aquele que ora e aqueles por quem se ora.
Outro dado importante da confissão é o reconhecimento de que não existe nada que nos faça minimamente merecedores do que estamos pedindo. O autor da oração acima, não encontrando em si o menor atributo de dignidade, invoca a Deus para que haja em seu favor tendo como único argumento a misericórdia desse próprio Deus. Unicamente pelo fato de Deus ser o que é, e não por qualquer promessa que houvesse feito e estivesse na obrigação de cumprir: Livra-nos por causa de ti mesmo. Este é o elemento vergonhoso da oração, o que Deus nos dá é pela sua graça, não havendo garantias nem compromissos. Baruc tira completamente Israel do pedestal de nação santa e escolhida que havia usurpado, e reconhece a si e ao seu povo como apenas um resto no meio das nações. É fundamental que a igreja entenda o significado teológico do “Resto de Israel” e da influência que este tema teve na mensagem de Jesus. Quando começou a estabelecer o Reino de Deus, o fez a partir daqueles que eram considerados como resto em Israel, porque é do resto que Deus fará surgir a sua verdadeira nação santa. Qualquer manifestação de orgulho ou reivindicação de privilégio era imediatamente condenada por Jesus, quando comparou duas orações disse que a correta era essa: Tem misericórdia de mim, porque sou um pecador. Esta é a oração que deveríamos ter sempre na ponta da língua.
Um fator de elevada importância na confissão é entender que Deus reina muito acima dos limites estreitos que a natureza humana está condicionada a viver, e que o simples fato de Deus desviar o seu olhar para enxergar a nossa situação e de inclinar seus ouvidos para nos ouvir, já é em si muito mais do que se pode almejar. Era preciso que se entenda que Deus precisa fazer esforço para nos enxergar no meio do lodaçal em que vivemos, e que é preciso mais do que simplesmente inclinar ouvidos para compensar a enorme distância em que nos encontramos dele. Baruc destaca este fato, clamando a Deus que do alto de sua santa morada execute uma “escalada descendente” para nos atender. Sua oração pede que Deus pense em nós, que incline seus ouvidos para nos escutar para que finalmente abra seus olhos para nos enxergar. Utilizando-se deste recurso antropomórfico, ele quer deixar claro que várias etapas devem ser vencidas para que Deus se proponha a nos dirigir um simples olhar.
A Teologia do NT pode até nos mostrar um Deus muito mais propenso a conceder favores do que este que Baruc nos apresenta, mas antes devemos perceber que este é um beneplácito gratuito, que nós humanos não temos motivo algum para esperar que seja concedido. Do ponto de vista de pecadores indignos, só nos resta implorar para que Deus siga a trilha apresentada por Baruc e nos assista em nosso estado natural.
Por fim, Baruc se valendo da sua condição de inferioridade, interpela Deus com o argumento de quem não tem mais nada para argumentar. Por se encontrar no limite entre a vida e a morte o escriba coloca-se como a última fronteira entre o homem e o culto a Deus. Baruc ainda consegue encontrar na sua miserável vida a única condição que o coloca em um estágio superior aos que se encontram no mundo dos mortos. Ainda assim eu posso te louvar, eles não, essa é a derradeira defesa de quem se vê sumariamente condenado. Longe de fazer um elogio à indignidade, Baruc está fazendo o caminho inverso ao que foi proposto por Habacuc, que mesmo na carência absoluta ainda encontra motivos para louvar a Deus. Baruc quer dizer que a alma faminta do errante encurvado pode prestar culto ainda que no limite da existência, mas é da parte de Deus, exclusivamente da parte dele, que este resquício de manifestação da sua justiça e da sua glória, pode ainda ser revelado. Uma revelação que não tem por finalidade a glória do próprio Deus, mas para que "o ser vivo que caminha curvado e enfraquecido, com olhar desfalecido e a alma faminta”, encontre meios para sobreviver ao seu pecado.
Por mais que se diga que vivemos sob um novo mandamento, não há como subestimar o valor da confissão, da oração contrita, oculta e silenciosa na vida cristã. Vivemos permanentemente entre o pecado e a graça. Moramos entre a tristeza da confissão e a alegria do perdão. Retirar de nossa vida qualquer um destes elementos é fazer com que percamos completamente a dimensão do evangelho e da sua mensagem. Baruc é quem está certo. Para que valorizemos a vida abundante que Deus pode nos dar, se faz imprescindível que sejamos apresentados pessoalmente ao limite da morte, porque é de lá que deve ecoar a voz embargada da humilde confissão, para em seguida, o gemido lúgubre implore o perdão.
0 comentários:
Postar um comentário