Vá que é deserto

A peste doa animais de Gustave Doré (1832-1883)
O texto Atos 8,26-39 narra as primeiras experiências dos diáconos, os antigos garçons da igreja. Com o crescimento dos adeptos à fé cristã, os problemas de relacionamento começaram a surgir, e os apóstolos estavam dispendendo muito tempo com questões domésticas, mais especificamente a divisão das provisões. Uma vez que a igreja primitiva vivia uma espécie de socialismo, onde tudo era igualmente dividido, algumas viúvas, as que não eram de Jerusalém, estavam reclamando porque recebiam menos provisões que as locais (At 6 1ss). 
Os apóstolos então, pediram para que a comunidade escolher sete diáconos. Homens de confiança, sabedoria e notória influência do Espírito Santo. Uma pessoa inclinada às necessidades do próximo e atenta ao chamado do Espírito Santo.
Enfim, a idéia básica do ministério pastoral, somos todos garçons. Estamos aqui para servir à mesa, para trazer o alimento, para propiciar que o povo de Deus faça o trabalho que lhe é devido. Qualquer coisa que fugir deste parâmetro é invenção. Para isso fomos chamados. 

O livro de Atos contém a lista dos escolhidos: Estevão, Filipe, Nicanor, Timom e Nicolau de Antioquia que não era judeu, mas um gentio convertido ao judaísmo e, posteriormente, à fé cristã. Este último deveria ser o santo padroeiro dos protestantes, São Nicolau. O primeiro gentio aceito no ministério cristão. É bem provável que, a princípio, algumas pessoas não tenham ficado satisfeitas por não terem sido escolhidas. Pouquíssimo tempo depois, já estavam dando graças a Deus por terem ficado de fora. É só lembrar que primeiro mártir da fé cristã foi exatamente o primeiro nome da lista dos escolhidos: Estevão, Filipe era o segundo.

Mas o texto fala da conversão do eunuco, segundo a tradição o tesoureiro mor, ou seja, o ministro da fazenda de Candace, rainha da Etiópia. Eu gostaria de comentar algumas idéias aparentemente controversas contidas no texto.

O primeiro problema surge exatamente no primeiro versículo do texto: vá para a estrada que vai de Jerusalém a Gaza, porque é deserta. Muito embora eu reconheça que existe uma ligação profunda entre História da Salvação e o deserto, confesso que ia ter muita dificuldade para cumprir esta ordem. Vá pra lá porque não passa ninguém. Jesus havia dito que a seara era grande e que os trabalhadores eram poucos, então porque iria enviar alguém tão qualificado para ir a um lugar deserto, onde não passava ninguém? A minha cabeça é muito racional para entender algo assim. Mas esta é uma lição fundamental para o cristão em todos os tempos. A idéia é trabalhar onde não há ninguém trabalhando, de fazer a obra no terreno estéril, onde não nasceu nada ainda. Há pouco tempo as igrejas tradicionais faziam a sua “pesca” entre os católicos. Por sua vez, as igrejas pentecostais, “pescavam” nas igrejas evangélicas tradicionais. Mas aí vieram as igrejas neopetencostais, que meteram a mão numa cumbuca que igreja nenhuma jamais se atreveu. Elas resolveram bater, e bater forte nas religiões espiritualistas, principalmente nas mais primitivas. É bem verdade que usando praticamente as mesmas armas, superstições e magias, próprias dessas religiões, mas que elas foram, isso foram.

Uma análise mais acurada vai perceber que os novos convertidos simplesmente trocaram uma superstição pela outra. Trocaram o pai de santo por um pai espiritual, do qual serão dependentes pelo resto de suas vidas. São eles determinaram o que comer, vestir, assistir, e principalmente, onde gastar dinheiro. Um outro detalhe peculiar dessas igrejas é que para elas o ecumenismo é um demônio de proporções mundiais. Não admitem diálogo nem mesmo com outra igreja neopetencostal. Aqui nesta igreja é que está a verdade, a salvação, a cura, o livramento. Fora daqui não há nada, quem se atreve a sair perde tudo que conquistou. Como disse um recentemente um apóstolo de chapéu: minha igreja é a menina dos olhos de Deus.

Mas parece que há uma luz no fim do túnel. Tanto a igreja católica, quanto as igrejas tradicionais tem mostrado preocupação com o crescimento deste segmento. Já há uma iniciativa de orientar uma catequese especifica para este grupo. Espero que com ética, sem confronto e mais aproximação, como foi o caso de Filipe com o eunuco. Filipe estava lá na hora e no lugar certos, aproximou-se do carro, e assim, foi convidado a entrar e a opinar.

Esta é a primeira lição do texto, é preciso estar lá, marcar presença, se fazer presente e atuante, para depois então se aproximar, fazer o contato amoroso da aproximação. Esta é a verdadeira definição de próximo, aquele de que eu me aproximo com amor. Não adianta estar ali como um poste. É preciso interagir, conhecer, saber das suas necessidades, sonhos e esperanças. Não faço a menor idéia do que um praticante do Vudu quer, o que almeja, ou quais são as perspectivas de um muçulmano. Para isso eu preciso conhecê-los no seu estado natural, não chegar impondo regras e chamando a sua religião de demoníaca.

A segunda questão é igualmente intrigante. Vamos imaginar aquela situação. Felipe vai para um lugar deserto, e já está lá há algum tempo. De repente vê alguém se aproximar e pensa: é esse o motivo da minha presença aqui. Esta é a pessoa a quem eu devo falar de Deus. Mas quando ele olha, quem aparece? Uma pessoa que estava vindo do templo de Jerusalém, lendo o livro do profeta Isaías. Traduzindo para os dias de hoje: uma pessoa vindo da igreja, lendo a Bíblia. Poderia haver desperdício de tempo maior do que esse? A expressão aqui seria: Filipe estava no deserto fazendo chover no molhado. Não é essa a impressão? Sair de um lugar onde a sua presença é necessária e onde há tanta gente que precisa ser assistida, para encontrar com uma pessoa que está no caminho certo. Será que em outro lugar qualquer não havia alguém mais necessitado?

Existe um hino, que infelizmente é pouco cantado, que diz:
Bem de manhã, embora o céu sereno
Um dia calmo queira anunciar
Vigia e ora, um coração pequeno
Um temporal pode abrigar

Esse hino é um verdadeiro tapa na boca dos pretensos peritos em avaliação espiritual. Aquilo que eu disse anteriormente quanto à ação do Espírito Santo. Existe um termo muito usado para quantificar essa ação do Espírito Santo: é o grau de espiritualidade. Eu fico aqui pensando que, como uma coisa tão íntima e tão mística pode ser medida em graus? Será que pode haver uma escala. Já pensaram se no exame ao ministério a banca perguntasse ao futuro pastor: qual é o seu grau e espiritualidade? Imagino que o Filipe também deve ter avaliado o alto grau de espiritualidade do eunuco. Não gosto dessa palavra. Melhor dizendo, do tesoureiro. Mal sabia ele que aquele homem abrigava um enorme temporal no seu coração. O temporal que o fez empreender tão longa viagem. O temporal que ainda o atormentava na sua volta. O temporal que não se dissipou, nem mesmo depois da sua visita ao templo. Ir ao templo, ir à igreja, para ele não adiantou em nada. Estava voltando da mesma forma que chegou. Vigia e ora. Um olho na estrada, outro no coração. Um olho na mensagem, outro na pessoa a quem se dirige a mensagem. Essa é a segunda lição que o texto nos oferece.

A terceira e última lição que consegui tirar desse texto, é uma pergunta que não quer calar. É uma pergunta que serve para todos em todas as horas: compreendes o que lês? Essa, sem dúvida é a lição mais difícil. Pode parecer que é uma pergunta de alguém que conhece as Escrituras para um outro que não conhece, mas na realidade a pergunta de Filipe é também dirigida a si.

Existe um outro hino, também pouco cantado, cuja mensagem fala exatamente sobre isso.
Enquanto, ó Salvador, teu livro ler
Meus olhos vem abrir, pois quero ver
Na mera letra além, o que Senhor
Nos revelaste em teu imenso amor.

Podemos muito bem entender o salmista, inspirado por Deus, escreveu, mas entendemos da mesma forma o motivo daquilo estar escrito? Qual a finalidade última do texto? O cristianismo deu um grande passo parra fora do judaísmo, quando deixou de se preocupar tanto com quem escreveu, com quem compilou e com quem traduziu a Bíblia, e passou a se preocupar mais com quem a estava lendo naquele momento. A quem, naquela hora destina-se a mensagem? Basta observarmos a diferença dos estilos literários. Enquanto o AT tem mensagens abrangentes e universais, excetuando-se alguns profetas que deram nomes aos bois. Os outros livros sequer tem endereço. Já o NT foi escrito e dirigido para pessoas e comunidades com problemas específicos. Muito embora tenha conseguido repercussão universal, a sua mensagem sempre foi local. Tornou-se abrangente, porque a Palavra de Deus é viva e dinâmica, ela não será jamais um monumento à ação de Deus no passado. Ela é para agora, para a minha e para a sua necessidade momentânea, como foi para Davi, Moisés e Paulo. 
Se alguém está entendendo esta abordagem como desrespeitosa, deveria olhar a  letra deste hino. Ela vai muito mais além do que este arremedo de heresia. Ela tem a ousadia de chamar a palavra escrita na Bíblia de mera letra. Isso mesmo, mera letra. O autor tem alguma razão? Particularmente acho que ele deveria estar doido, deveria inclusive ter sido queimado. A Bíblia jamais será para nós, assim como para toda a humanidade, mera letra. E é claro que o autor também pensava assim. Ele não chamou a Bíblia de mera letra para causar polêmica, mas sabiamente disse: tudo o que está escrito ali é imensamente precioso. Porém, diante do que ainda pode ser revelado pelo imenso amor de Deus, é mera letra. Esse deve ter sido um dos últimos hinos a ser aceito no hinário. Até alguém entender o que a mensagem quis dizer deve ter levado um tempinho.
Estamos acostumados a tentar ler o que se passa com o personagem do texto, e dali tirarmos conclusões para a nossa vida. Observem o que o etíope diz em relação a esta pergunta: de quem o profeta está falando, dele ou de outro? Embora aflito, ele está interessado no que aconteceu com o profeta. O que Filipe faz é simplesmente pular por cima dessas questões, questões que facilmente prenderiam a nossa atenção, e começa a mostrar no livro que o eunuco está lendo, para quem o profeta está falando, fazendo-o entender que aquela boa notícia era para ele. 
Se Filipe tivesse atendido o seu apelo imediato, o tesoureiro sairia dali bem instruído, mais culto, profundamente conhecedor, mas não teria sido convertido. Não teria aprendido e nem acreditado no que realmente importava. Ele jamais saberia que o que está ali, fora escrito para ele, na sua hora de aflição e angústia. A pergunta que fica para nós é: você compreende o que lê, diante da necessidade do próximo? Você compreende que o que lê, isso vai ao encontro dos sonhos, das esperanças, de quem ainda está calcado em superstições e crendices? Você compreende que Deus é infinitamente poderoso, e que pode fazer muito do que tudo aquilo que o seu próximo precisa? Você compreende que o que lê pode preencher o vazio do coração e dissipar de vez o temporal que há nele?
Outro dado importante. Filipe não disse pra ele: dê a volta e vamos pra minha igreja. Dê a volta que você precisa servir a Deus lá em Jerusalém. Vamos para lá, que lá é que está a bênção, a salvação. Ele deixa o tesoureiro e a sua comitiva seguir seu caminho. E a Bíblia diz que o etíope seguiu viagem cheio de alegria. Naquele contato rápido, porém oportuno, o eunuco trocou um temporal de ansiedades por um mar de alegrias.

Filipe era um jovem arriscando-se na primeira viagem missionária, com o pensamento voltado para Estevam, que havia sido executado. Filipe, como todo mundo, gosta de ver seu trabalho reconhecido, e muito provavelmente seu trabalho não seria somente admirado, como também bem recompensado. Com toda certeza o tesoureiro ia abrir os cofres e dar-lhe um presente que expressasse a sua gratidão. Mas Deus não permitiu que Filipe experimentasse o sabor dessa vitória. Não permitiu que ele usufruísse das vantagens daquele encontro. Que fique para nós também essa lição. O único presente que Filipe ganhou, foi ouvir da boca do evangelizado a confissão de fé no mesmo Deus que ele professava. Eu creio, o que impede que eu seja batizado? 

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