Da  resistência  à   esperança

Lc 18 1,8
Este texto parece que abre uma lacuna napregação de Jesus. A tônica da sua mensagem era o Reino de Deus e o apelo aoarrependimento para se entrar nele. Mas este texto fala de uma situação inquietante,que nos incomoda desde sempre. Isto, se considerarmos apenas os acontecimentosdo cotidiano, se a transportamos para o contexto mundial, torna-se umatragédia. Ele expõe uma situação totalmente contrária à novidade de vida que oevangelho vem propor, porque ela nos remete ao descaso, à demora e à morosidadeda justiça humana, que não são, como podemos perceber, privilégios do nossotempo.

Então por que Jesus foi comparar um mal que assola a todasas sociedades, com a justiça do seu Pai? Por que Jesus faz uma comparação comoessa que é tão absurda aos nossos olhos? A parábola é mais ou menos assim:tinha um juiz que estava sendo amolado por uma viúva para que julgasse a causadela. Estava com tanto medo que ela o moleste - a palavra molestar no gregosignifica bater até deixar uma mancha roxa – que resolveu dar uma sentença paraque ela deixasse de amolá-lo. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje traduziu assim:vou dar a sentença em favor dela. Narealidade, o juiz não vai fazer um julgamento imparcial, vai dar logo o que elaque, para que ela desapareça de vez. Olhem quanta coisa errada tem aqui: umjuiz que demora propositalmente em fazer julgamentos; um juiz que tem medo deuma das partes da questão; um juiz que dá a sentença que lhe é maisconveniente; um juiz que não está nem aí para a justiça.
O que a parábola descreve é uma autoridade venal, que precisaser vigiada, que não se pode deixar agir livremente. Então, o que é que Deustem a ver com isso? Será que Jesus está dizendo que quando não alcançamos o quedesejamos é necessário insistir com Deus. Está dizendo que é preciso encher osaco de Deus para que ele nos atenda? Temos plena certeza de que Jesus nãodisse isso, mas tem muita gente aí achando que ele disse. Tem gente que está propondomudanças em certos ditados populares. E um deles é aquele que diz assim: quandoum não quer dois não brigam. Não é mais assim não, esse ditado mudou.  Agora ele é: quando um não quer, o outroinsiste. Quem é pai ou mãe sabe muito bem disso. Acabou a fase do “eu faleiestá falado”. Agora o que os filhos mais fazem é questionar as decisões dospais. Todo mundo agora quer contestar. Estão aí os tribunais de pequenas causasque não me deixam mentir.
Mas será que é isso que Jesus está propondo? Que devemossempre insistentemente questionar as decisões das autoridades? Será que o fatode não aceitarmos uma decisão justa porque não nos é favorável, pode, através docaminho da insistente reclamação com Deus, torná-la favorável? Me parece que aquiquem está sendo questionada não é a justiça de Deus e sim a justiça dos homens emuma situação bem específica.
Para um melhor esclarecimento, precisamos estar atentos aalgumas palavras que fazem diferença no texto. A parábola diz: prestem atenção no que aquele juiz iníquo disse.Já de saída se estabelece aqui uma espécie de oxímoro: juiz iníquo. Oxímoro éuma figura de linguagem que tenta ligar duas idéias absurdamente contrária,como por exemplo: morte feliz, inocente culpa, ilustre desconhecido. Nós ocidentaisadoramos colocar predicados nos nomes. As pessoas e as coisas nunca são somenteo que são, damos sempre um jeito de qualificá-las. Na Bíblia isso não é muitocomum, o nome tem um peso bastante significativo. O nome é muito mais importantedo que o adjetivo pela qual se identifica o que se quer referir. Certa vez umsujeito chamou Jesus de bom mestre, pra que? Ele retrucou imediatamente. Por que você está me chamando de bom? Bom é Deus, disse ele.
Seguindo essa linha de raciocínio, juiz é, ou pelo menosdeveria ser aquele que julga com imparcialidade, com autoridade, por fim, comjustiça. Mas Jesus sabia que as coisas não funcionavam exatamente assim, porisso ele nos diz para ficarmos atentos à decisão do juiz iníquo, ou melhor: na decisãoque a sua mediocridade o forçou a tomar. Para Jesus ele era um juiz iníquo enada mudou depois disso, ele continuou iníquo. A palavra iniquidade tem um pesoenorme no evangelho. Essa é uma das palavras que estamos sempre falando sem nuncadarmos a ela o seu justo valor. No dicionário bíblico iniquidade está descritaassim: pecado que consiste em não reconhecer igualmente o direito de cada um,em não ser correto, em ser perverso. A iniquidade é trágica porque ela não é umpecado pessoal, não é um pecado que tem apenas consequências individuais, poisela perverte o juízo, ela corrompe a capacidade de julgamento. A iniquidadenunca vai ser um pecado do miserável, nem do indigente. Para ser iníqua apessoa tem que ter poder de decisão. Jesus aqui contrapõe a necessidadepremente da viúva com o descaso do juiz, que é onde se estabelece a iniquidade.Quando existe falta de respeito a um poder maior e existe a negligência nafunção que se ocupa, existem os elementos para fazer daquela pessoa um iníquo.
A Bíblia está sempre falando da atenção que se deve darao órfão, ao estrangeiro e à viúva, os símbolos máximos da pobreza em Israel. Com Jesusnão poderia ser diferente. No sermão da montanha dá detalhes precisos de quemsão esses necessitados: aqueles que têm fome e sede de justiça. Aqueles que senão conseguirem justiça imediatamente podem morrer em desespero, assim comoquem morre de fome e de sede. Não é do direito que Jesus está falando, é dajustiça. Para Jesus, assim como para os profetas do Antigo Testamento, é algoque está acima e além do direito, porque não se contenta em dar o que é justo aquem merece. A justiça é uma necessidade básica, como comida e bebida. Já éiniquidade simplesmente o fato de não se lutar contra a injustiça. Tantoaqueles que praticam a injustiça, como aqueles que podem lutar contra ele e nãoo fazem, são iníquos na presença de Deus. O que me preocupa não éo grito dos maus, sim o silêncio dos bons, dizia Martin Luther King.
É nesse clima de injustiça que Jesus vai confrontar asautoridades. É onde vai dar nome aos bois, vai dizer quem é quem. Ele faz umalerta oportuníssimo: prestem atençãoque esse sujeito não é um juiz, é uminíquo, não é uma autoridade, por isso tem que ser contestada. É para um povosofrido e injustiçado que Jesus conta essa parábola. Para um povo que já tinha perdidoa vontade de lutar pela justiça, que ele vai dizer: vocês não podem esmorecer, tomem como exemplo a viúva da parábola econtinuem insistentemente questionando essas autoridades que estão oprimindovocês, porque elas não são autoridades constituídas por Deus. Acima dessas falsas autoridades existe umaautoridade autêntica, que não é iníqua. Acima deles, e de olho neles existe umDeus que não tardará a fazer justiça. Façam a sua parte e estejam prontosporque Deus fará a parte dele.
Jesus nessa parábola nos dá uma arma eficaz contra ainiquidade. A perseverança, a insistência, o não esmorecimento, ligados a Deus.Paulo nos diz em Romanos 5,2s: gloriamos-nosna esperança da glória de Deus. E não somente isto, nos gloriamos também nastribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência; e a paciência, aexperiência; e a experiência, a esperança. E esta não pode ser confundida,porque o amor de Deus já foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santoque nos foi dado.
Paulo descreve todo o processo que vai do nãoesmorecimento até a esperança sólida. Não esta esperança que campeia entre nós. Vemos hoje nas igrejas há uma expectativamuito grande naquilo que Deus vai fazer. Parece que está todo mundo esperandoque aconteça alguma coisa imediatamente, e só se fala nisso: ele vai voltar, vaiarrasar, vai destruir, vai salvar, vai arrebatar etc. É tanto vai, tanto vai,tanto vai, que parece que Deus não fez nada até agora, parece que tudo ficou porfazer, parece que tudo está colocado no futuro.
Por isso é que a ênfase no evangelho não é a segundavinda de Cristo, e sim a primeira. Não é Jesus virá, é Jesus já veio. EmboraPaulo acreditasse que Jesus voltaria em breve, toda a sua pregação estavabaseada na vitória de Jesus na cruz, que para ele foi o acontecimento decisivo.Para Paulo, todo o poder do mal estava extinto na cruz. Por causa da vitória deCristo, tanto os cristãos da sua época como os de hoje podem e devem fazer estecaminho da resistência à esperança. Mas não para fazermos baseados em promessasvindouras, mas sim porque o amor de Deus já foi derramado em nossos coraçõespelo Espírito Santo que nos foi dado.
Mas ainda existe uma pergunta final. Uma pergunta que deuma forma bastante direta reverte o pólo da questão. O motivo que levou Jesus acontar essa parábola foi a expectativa dos discípulos com relação à ação deDeus, e Jesus vem e expõe a expectativa de Deus em relação à ação dos discípulos.Será que Deus vai encontrar fé na terra?Será que ele vai encontrar no meio do seu povo alguém que ainda estejaresistindo à injustiça? Será que ele ainda vai achar alguém que estejaconfrontando as autoridades ilegalmente constituídas? Ou só vai haver genteesperando que Deus faça tudo? Essa pequena pergunta vai mudar todos osconceitos de fé que normalmente são concebidos.
Para os discípulos, confiar na providênciadivina era desejar com insistência que Deus se manifestasse o mais rapidamentepossível. Acreditar que Jesus virá em breve tornou-se o maior credo doCristianismo em todos os tempos. Mas para Jesus, confiança em Deus não era isso.Para Jesus, ter fé em Deus era não aceitar a injustiça, nem as autoridadesiníquas. Mas estar pronto para o confronto, mesmo quando esse confronto semostrar impossível de ser vencido. Para Jesus, confiar na providência de Deusera muito mais do que contemplação, muito mais do que expectativa; era a esperançademonstrada em ações concretas na direção de uma realidade que ainda não évisível aos olhos humanos, mas que existe na sua plenitude aos olhos da fé. Eranunca esmorecer no caminho que vai da resistência à esperança.

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