Deus amou tanto que deu (II)

São João da Cruz de Dalí (1904-1889)
Jesus era o profeta por excelência, e nunca deixou de ser fiel a mensagem profética. Jesus anunciava um Deus incorruptível, que não se deixava seduzir por adulações nem se enganar por sacrifícios. Mas um Deus presente, que sofre com a injustiça, com a violência e com a miséria dos seus filhos. Era exatamente a mesma mensagem que os profetas pregavam: a justiça como a única forma aceitável de adoração a Deus. No entanto, a maioria dos profetas era composta de gente igual às pessoas para quem pregavam. Eles era pessoas simples, oriundas da classe mais baixa, na sua maioria pastores,
boiadeiros, lavradores etc. Homens que não dispunham de meios e nem conhecimentos para confrontar a cultura dos escribas e dos doutores da lei. Não há porque pensarmos que os profetas do AT tiveram relevância por possuírem uma concepção de Deus mais elevada do que a dos sacerdotes. Por conta disso, nunca tentaram se aprofundar nas doutrinas mais complexas sobre Deus.
Eles nunca tentaram explicar a essência ou a delinear uma forma de Deus. Mas colocavam a si mesmos no lugar dele, e sentiam na própria pele a dor que Deus deveria estar sentindo diante das situações de idolatria e injustiça que havia em Israel. Jesus, sendo o maior dos profetas, fez a mesma coisa. Nunca perdeu tempo em dar explicações a respeito da natureza ou da mente de Deus. Veio ao mundo anunciar o quanto Deus se importa conosco, e do quanto repudia este modo de vida egoísta e indiferente que a humanidade sempre viveu. Muito mais do que um teólogo que estuda a natureza de Deus para nos dizer o quanto estamos distantes da sua santidade, Jesus era um teopata que procurava anunciar que Deus e seu Reino estão muito mais próximos de nós, do que imaginamos.
Segundo um pensamento teológico antigo, mas ainda vigente, o grito desesperado de Jesus na cruz se deu porque Deus o abandonou naquela hora crucial. A concepção de santidade que essas pessoas tem de Deus, não poderia jamais supor que ele estivesse presente justamente na hora em que Jesus carregava sobre si todos os pecados do mundo. Para eles Deus não se mistura com o pecador. Esta ideia supõe um Deus que não quer se envolver, que não quer sujar as mão, e que nas horas de maior necessidade fica de longe apenas observando. Deus nada mais é do que aquela imagem de um olho sem pálpebra num triângulo. Mas Paulo disse justamente o contrário: Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo (II Co 5,19). Na teologia de Paulo, foi no momento da dor que Deus se aproximou mais de Jesus, quando esteve mais próximo que antes em qualquer situação.
É exatamente assim que Jürguen Moltamann, considerado o maior teólogo vivo, entendeu. Em seu livro o Deus Crucificado Moltamann afirma: Deus morreu na cruz, contrariando as doutrinas que pregam a passividade de Deus no Calvário, ele nos apresenta um Deus que é capaz de sofrer com o homem, pelo o homem e no lugar do homem. Um Deus que aceita abrir mão de sua divindade, ser contado como um de nós, ser humilhado como o mais humilde de nós. Tudo isso para pôr-se junto, ao lado da criatura a quem mais atributos concedeu.
Não seria possível que Jesus imbuído deste sentimento de cumplicidade, ao confrontar o amor de Deus com a maldade humana se dispusesse fazer este sacrifício pelos pecados do mundo? Não seria possível que ele mesmo tivesse se entregado, e vez de ser compelido a fazê-lo por seu Pai? Por hora vamos deixar sem resposta essa pergunta.
Jesus não foi o único a se mobilizar no sentido de atenuar a imagem de juiz implacável que o AT pintou de Deus. Numa linha de raciocínio parecida com a que Jesus usou, alguns rabinos escreveram um livro de interpretação bíblica chamado de Midraxe. A ideia básica que os levou a elaborar o Midraxe era investigar os textos complicados, e, por conta disso, mais mal interpretados do AT, para torná-los mais claros e mais compreensíveis. Eles debruçaram-se demoradamente sobre o texto bíblico e após longas reflexões e incessantes buscas de paralelismos dentro da própria Bíblia, conseguiram extrair o sentido exato que o escritor quis revelar em suas palavras originais. Tentaram com isso mostrar a verdade mais genuína e mais próxima de um Deus cujo caráter é essencialmente moldado pelo amor.
Vejamos um exemplo. Em Deuteronômio 21,22-23 temos: Quando um homem tiver cometido um crime que deve ser punido com a morte, e for executado por enforcamento numa árvore, o seu cadáver não poderá ficar ali durante a noite, mas tu o sepultarás no mesmo dia; pois aquele que está pendurado é objeto da maldição de Deus. Assim, não contaminarás a terra que o Senhor, teu Deus, te dá por herança. Os rabinos descobriram que neste caso havia um jogo de palavras bastante consistente. Eles descobriram duas palavras bastante parecidas, e propuseram que em vez de se ler kilelate, que significa a maldição de Deus, lêssemos kilate, que significa a dor. Então o texto ficaria assim: pois aquele que está pendurado é objeto da dor de Deus. Bem mais aceitável. Foi a partir desta iniciativa que os judeus passaram a ver Deus com outros olhos. Com olhar mais parecido com o olhar que Jesus o via. Fazendo com que o seu amor, e não mais a sua ira, fosse exaltado.
Usando a técnica do Midraxe vamos tentar entender o texto de João 3,16. Para isso precisamos avaliar a força que as palavras do texto tinham no final do primeiro século. Para a conciência comum da época, o filho primogênito do sexo masculino era tudo o que de melhor um pai poderia gerar, fosse ele de qualquer classe social. Neste caso, o filho primogênito representava o que de bom havia naquele pai. Ele era o seu lado excelente, a parte mais preciosa de si mesmo, era o seu maior orgulho e seu maior triunfo. Diante deste argumento, vamos ter em mente o que João quis de fato dizer quando disse que Deus deu seu Filho. Como todo bom judeu, João não adimitia que houvesse alguma outra criatura que se rivalizasse a Deus, mesmo que gerado a partir dele. Esta é uma possibilidade inconcebível para a fé monoteísta, Deus é único. Não é à toa que ele começa o seu evangelho dissipando qualquer dúvida a esse respeito: No princípio era o verbo... e o verbo era Deus.
Então o que João estava querendo dizer, quando disse que Deus entregou seu Filho, era que Deus estava dando sua melhor parte. A mais comporometida, a mais amorosa, a que compreendia mais o ser humano. Não a sua parte Onipotente, Onisciente e Onipresente. Não o seu lado criador, atento ao mínimo detalhe na busca da perfeição. Mas o seu lado redentor, que nos olha através da lente do seu Espírito, para não enxergar a nossa natureza vil e egoísta. Deus deu o melhor de si, a sua melhor parte, a parte que ama, fazendo com que ela encarnasse entre nós. Essa doação de Deus era algo tão excelente na mente de João, um homem do primeiro século, que somente poderia ser traduzido pela figura de um filho primogênito.
Para não corrermos o risco de imaginar que a personalidade de Deus possa ser parecida com a nossa, dividida em ego e superego, vamos recorrer a Jung, que concebeu um terceiro estado da consciência, o self. Para Jung o self é aquilo que há de melhor em nós, e que nos faz fazer as coisas mais excelentes, que por nossa vontade própria não seríamos capazes de fazer. Então, se este mesmo texto fosse escrito por Jung, ele ficaria assim: porque Deus amor tanto o mundo que deu o seu self, para que todo aqueleque nele crê não pereça. Não pereça para que não aumente mais a sua dor. Na realidade, para João Deus não designou alguém para sofrer em nosso lugar. Nada disso, entregou-se voluntariamente a si mesmo, tamanha era a sua dor pelas circunstâncias em que viviam o ser humano.
Olhar para Deus desta forma implica em mudanças imediatas. Imediatamente transferimos para ele qualquer mérito, Toda a iniciativa parte de Deus e nunca de nós. Wesley entendeu tão bem isso que formulou a doutrina da graça preveniente, onde Deus age antes de qualquer intenção humana. É essa nova visão de Deus que prevalece, a visão de um Deus que age, não um Deus distante, não um Deus exclusivamente soberano e intocável. Mas agora o Deus próximo, presente e atuante, o que implica em reconhecermos que não fomos escolhidos porque éramos os melhores e os mais bonzinhos, mas porque ele nos ama.
Tomemos de volta as perguntas que ficaram no ar. Será que Deus realmente sacrificou alguma outra pessoa, e não ele próprio em nosso lugar? O amor incondicional de Deus está em julgamento na morte de Cristo? Pode existir qualquer tipo de dúvida quanto ao comprometimento que este amor encerra? 
Nenhuma pergunta dessas é pertinente. As pessoas não estão querendo saber como é Deus, e na sua maioria não estão preocupadas em saber como ele pensa nem como se deve tratá-lo corretamente. Quem tem esta preocupação tem também outros interesses. Então, também não deveríamos tentar explicar como Deus é, e sim mostrar o quanto ele se importa conosco. Deveríamos fazer como faziam os pais da Bíblia. Quando os filhos lhes perguntavam quem é Deus, eles não desenvolviam um tratado teológico sobre o assunto, muito menos contavam histórias de um barbudo que não faz a barba há mil séculos. Eles diziam simplesmente assim: olhe para nós, meu filho. Olhe para a nossa família. Olhe como somos felizes. Mas antigamente não era assim, nós éramos muito tristes. Nós éramos escravos no Egito e Deus nos tirou de lá com mão poderosa e braço estendido; com milagres, com sinais e com espanto. Esse é Deus meu filho. Esse é o Deus que amou tanto que deu seu filho único para que não morrêssemos, mas tivéssemos vida eterna.

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