Saul e a pitonisa de En-Dor de Allston (1779-848) |
Entre os ultimatos contidos na Bíblia, um dos mais severos é: somente Deus pode realizar milagres. São de sua exclusiva competência o como e o quando realizar. Os milagres acontecem em apoio à sua Palavra, que tem por finalidade última o plano de salvação. Mas ainda que cercado por toda uma atmosfera de onipotência, até o milagre está subjugado à Palavra de Deus. Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te anunciar um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los, não ouvirás as palavras desse profeta ou sonhador; porquanto o SENHOR, vosso Deus, vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo o vosso coração e de toda a vossa alma. (Dt 13,1-3).
Além da predisposição da Bíblia em subjugar os milagres, ela faz uma clara distinção entre o feito exclusivo de Deus e as tentativas humanas de imitá-lo. Todos os povos da antiguidade tinham magos, adivinhos, necromantes, encantadores, prognosticadores, feiticeiros etc. Em Israel só era permitido existir profetas: homens e mulheres, que, embora estivessem a serviço de Deus, não possuíam poder sobrenatural algum, e estavam sempre sujeitos às represálias de todos os que se sentiam indignados com a veemência de suas palavras. Reação bem diferente do temor que os magos infligiam à população pagã. Fica para Israel o seguinte desafio: aguardar pacientemente por um raríssimo milagre de Deus, ou seguir os encantamentos e magias que, entre os povos vizinhos, havia em profusão. Mas algumas perguntas se tornaram pertinentes:
Por que os milagres não acontecem mais hoje em dia?
E quando acontecem, porque que não possuem igual magnitude?
Por que a mente tecnológica do século XXI está sempre propensa a buscar na magia, ainda que de forma efêmera, a essência do milagre?
Indo ao encontro de mais questionamentos do que respostas, passemos e refletir sobre a cabal diferença entre estes dois apelos da natureza humana: magia e milagre.
Ex 7,8-12 – as pragas do Êxodo
De saída, uma diferença destaca-se como fundamental. O que os magos fazem pode ser repetido, o que os magos fazem pode ser explicado. O que Deus faz não tem paralelos. A magia não pode concorrer em nenhum grau com o milagre, mas pode ser uma rival perigosa. Se não chove o povo recorre a magia. Se chover muito o povo também recorre a magia. Contudo, os milagres acontecem para desafiar a magia.
Exemplo: quando Deus mandou as 10 pragas, não visava atingir o povo, mas Faraó e seus deuses: Osiris – deus do Nilo; Ged – deus da Terra; Apis – o deus touro; Rah – o deus sol; Faraó – o deus na terra; seu primogênito, também considerado como um Deus.
O que Deus quer revelar com o envio das pragas é que toda a religião egípcia é embuste, é mentira. Existe algo acima. Embora haja por parte da ciência moderna a tentativa de se explicar cada um dos milagres do Êxodo, ninguém explica o milagre maior: como um povo inteiro pode se libertar da maior potência mundial da época sem desembainhar uma espada sequer. Neste caso, a razão dos milagres foi a libertação, Deus não levou em conta os merecimentos, Deus ouviu os lamentos. Os milagres são frutos da sua misericórdia. Os milagres são, como tal, somente do ponto de vista humano. Para Deus tanto o natural quanto o sobrenatural são a mesma coisa, tanto o ordinário como o extraordinário estão sob o seu controle.
Números 20,2-12. As águas de Meribá
Vamos analisar este texto na ordem inversa. Por que Moisés foi punido por este dado específico quando já havia demonstrado tanta insubordinação. A ordem clara de Deus era pra que Moisés ordenasse a rocha para que esta vertesse água. O intuito claro era remeter a Deus o milagre, uma vez que a Palavra de Deus estava na boca de Moisés: para me santificares, diz ele. Mas Moisés claramente está querendo se anunciar como milagreiro, e, numa atitude notoriamente exibicionista, bate com a sua vara na pedra, chamando para si a autoria do milagre. Essa manifestação é contrária ao atributo exclusivo de Deus: somente ele faz milagres. O milagre aconteceu, mas a disposição de Moisés em rivalizar-se com Deus como milagreiro, foi punida.
Quando vemos a mudança do enfoque do divino para o humano temos que ter cuidado. Deus teve declarada preferência por alguns personagens bíblicos: ele era completamente apaixonado por Abraão, por Moisés e por Davi. Mas quando analisamos a história deste homens, vemos o quanto eles eram maus. Abraão deixou uma mulher e uma criança no deserto para morrer de sede, Moisés assassinou indiscriminadamente mulheres e crianças. Davi, então, não existe canalha maior na Bíblia. A Bíblia fala destes homens sem omitir as suas mazelas. E ainda assim, Deus fez o que fez através de pessoas como estas. Realizou seus milagres não por elas, não por suas virtudes, mas apesar delas.
Quando ouvirem alguém muito evidenciado dentro do evangelho, lembrem-se das águas de Meribá. Lembrem-se que somos apenas canais das bênçãos de Deus, e que somos beneficiados com os seus milagres, sem termos nenhuma participação neles. Para que eles aconteçam, Deus não precisa de nada ou de ninguém, nem mesmo desses canais, ou de canal algum. Devemos ter sempre em mente as palavras de João Batista, que quando foi confundido com Jesus, disse somente: importa que ele cresça e eu diminua.
Quando vejo os tele-evangelistas tomarem o lugar de Jesus como centro das atenções, só posso esperar algo terrível da parte deles. O delito maior já foi cometido, o escândalo que se segue, é uma questão de dias.
I Sm 28,3-19 – a feitiçaria de En-dor
Este é um caso muito particular no qual temos que ter bastante critério ao analisar. Principalmente porque ele é único, e onde a Bíblia é lacônica, não devemos nos aprofundar. O que fica patente é que Saul, temendo pela sua sorte, tenta mudá-la a qualquer custo, desta feita, com uso da magia. Quando consultou a necromante, não estava querendo saber o seu futuro, ele estava ciente do que acontece aos que usam da autoridade para benefício próprio, ainda mais quando essa autoridade é respaldada pela bênção de Deus. Ele tenta um último esforço para salvar seu reinado, e mais uma vez desobedece a Deus.
Mas existe aí um fato inusitado. A necromante invoca a presença de Samuel, e quando este responde ao seu chamado ela grita de pavor. Uma pessoa tão acostumada com a magia, não deveria se assustar com a invocação dos mortos. Mas o que aconteceu ali é algo que nunca vira antes: ela presenciou claramente um milagre. Deus agiu através daquela mulher e, em um caso único em toda a Bíblia, fez um morto falar. Por esta intervenção divina, Saul descobriu que a sua luta não é contra os filisteus, e sim contra Deus. Contra o exército inimigo, a sua desesperada rebeldia talvez funcionasse, mas contra Deus era completamente inócua. A mensagem deste pequeno e enigmático texto é simples: não se metam com estas coisas, porque quem se meteu, se deu mal.
Não existe na Bíblia uma prevenção maior do que a que Deus tem contra a magia (Dt 18,9-12). Eu acho que ela não pode ser mais clara. Ela não condena apenas as magias portentosas e as mais sinistras, como a consulta aos mortos. Ela condena a nossa falta de fé, ela condena a nossa ansiedade quanto ao futuro. Por outro lado, estamos sempre querendo realizar coisas que Jesus só fez depois de ressurreto, a assim recorremos a esta terrível abominação, não confiar em Deus e sim na magia. A narrativa da bruxa de En-dor é composta por milagre e magia. Saul recorreu à intervenção de Deus, mas não pelos procedimentos permitidos, mas pela magia. Milagre porque mesmo sem tentar elucidar o fato, talvez por ser uma prática proibida, Deus agiu de antemão.
I Reis 18,20-39 – Elias no monte Carmelo
Assim como nos outros três casos, este é mais um onde o povo de Israel corre risco de se extinguir como povo. Israel é governado por Acab, que tem como esposa uma filistéia por nome Gezabel, talvez a figura mais odiada do AT. Ela, seguindo a tradição de seu país, é adoradora de Baal, e traz consigo seus profetas. Esta aparentemente lucrativa aliança com os filisteus, coloca Israel em grande perigo. Desta vez não pela opressão, pela sede ou pela guerra, mas pela fé. Neste clima, aparece um profeta de Deus que vai deflagrar um golpe duro aos magos e aos seus deuses.
Elias convoca o povo para assistir uma disputa inimaginável entre magia e milagre. Entre Baal e Deus. De um lado temos os 450 profetas de Baal, contra eles um único homem, o profeta de Deus, Elias. A intrepidez dos homens de Deus na História é coisa de assombrar até os super heróis das história em quadrinhos. Neste caso a realidade supera em muito a ficção. Elias não somente estava só contra 450 adversários, ou mais; não somente jogou água no altar para dificultar a ação de Deus; não somente fez extinguir qualquer possibilidade de um fenômeno espontâneo, mas fez o que fez no QG do paganismo: no Monte Horeb. Lá, no extremo oposto à Terra Prometida, Elias convoca o povo para uma questão crucial: de agora em diante, a quem seguireis? Assim, tenta resolver de vez esta questão, justamente no lugar onde Baal seria deus, teria total autoridade, ou teria mais poder.
São erigidos dois altares, e será aclamado como Deus aquele que consumir com fogo o seu altar. É sabido que os filisteus conheciam o fenômeno da combustão espontânea, e já o usavam como truque de magia. Então, para os profetas de Baal era uma disputa ganha. Elias não somente joga pelas regras do adversário, no campo do adversário e o juiz, Jezabel, é também do adversário.
Vendo a angústia dos 450 homens de Baal, Elias não hesita em zombar deles e expô-los ao ridículo. E o mais curioso de tudo, eles obedecem a Elias fazendo o que ele sugere. Elias, por fim, consuma a disputa com uma simples oração. O fogo dos céus consume o holocausto, a lenha, a água, o altar e até os profetas de Baal. Depois deste grande milagre, desta inequívoca supremacia do milagre sobre a magia, o povo diz: o Senhor é Deus. Mais uma vez um milagre tem proporções históricas. Mais uma vez o milagre desafia e aniquila a magia. Mais uma vez Deus supera a expectativa humana.
Mas ainda ficou no ar a pergunta: por que não acontecem estes grandes milagres hoje? Os milagres existem para nos ensinar a caminhar. Uma vez de pé, já temos capacidade de caminhar por nós mesmo, e da mesma forma desafiar a magia que se opõe à vontade de Deus. O êxodo, as águas de Meribá, a bruxa de En-dor e o Monte Carmelo vão simbolizar para sempre a ponte que existe entre luz e trevas; entre a fé no Deus verdadeiro e nos falsos deuses; entre o milagre e a magia. Uma ponte que sob hipótese alguma devemos atravessar.
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