Rei ou servo? Louvor ou serviço?

O Lava-Pés - artista holandês anônimo
O cristão é humilde? Uma das marcas visíveis do cristianismo de hoje é a humildade? As manifestações e expressões naturais do modo de ser de um cristão evidenciam esta virtude? As liturgias praticadas, nossos rituais de louvor e aquilo que cantamos através da hinologia atual testemunham esta marca indelével com qual Cristo marcou a si e a seus primeiros seguidores? Penso que antes de fazermos qualquer movimento na direção de buscar uma resposta para estas questões, devemos primeiramente analisá-las para sabermos se são ou não
 pertinentes ao nosso contexto. Pois, se por um lado constatamos que a piedade gregoriana e a humildade franciscana já não são mais consenso nem mesmo entre os fizeram a tais votos, por outro entendemos que os momentos de reflexão nas igrejas estão ficando cada vez mais escassos e por este motivo não podemos nos dar ao luxo de elucubrações além do extremamente necessário.

Como ponto de partida para a análise da prática da humildade hoje, devemos buscar na história da salvação as razões que fizeram com que o movimento inaugurado por Jesus, encontrasse, nessa virtude, fundamentos condicionais para a sua própria essência e existência. A mais destacada ênfase dada à humildade de Jesus na Bíblia se encontra em um cântico de louvor da Igreja Primitiva, que Paulo, muito sabiamente, incorporou à Carta aos Filipenses que, em rápidas palavras, diz: Pois ele sendo Deus, não julgou ser importante ser Deus. Abriu mão da divindade e a si mesmo se esvaziou, assumindo a figura de um servo. Este cântico não somente traçou um retrato fiel da vocação do enviado de Deus, como também estabeleceu um rompimento definitivo com as expectativas de um Messias que se anunciaria pela força, poder e prestígio.
Os falsos profetas não mediram esforços para deturpar a verdadeira mensagem do advento que os profetas de Deus anunciaram, para colocá-la nos moldes que a ansiedade do povo o imaginava. Daí então surgiu o Messias nobre, filho legítimo da realeza que assumiria pela força o trono da casa de Israel, o protótipo do super homem. Pouco havia de comum entre a mensagem profética e a expectativa do povo, por isso, para que se a verdadeira face do Ungido fosse revelada, foi necessário que Deus vocacionasse um profeta oriundo da nobreza de Israel, alguém que conhecia a intimidade promíscua de um rei, alguém que nascera dentro de um palácio e convivera de perto com a podridão da realeza, para que enxergasse o óbvio. Isaías concluiu que Deus não enviaria alguém tão ridículo como um rei, para executar o seu mais maravilhoso propósito. Longe de imaginar um Messias Rei, pois bem sabia o que era de fato um rei, Isaías anteviu o Messias inverso ao rei, um Messias Servo, submisso, sofredor e humilde.
A este sim dedica não um, mas quatro cânticos que radicalmente irão subverter tudo o que era esperado e tudo o que se havia sido profetizado até então. Se tomarmos como referência a fábula A roupa do rei, de Hans Christian Andersen, onde se descobre que o rei está nu, vamos perceber que os cânticos de Isaías vão muito além. Para Isaías, o Messias não é um rei despojado e nu, ele simplesmente não é rei. E o que essa mudança implicaria? Como reagiria o povo diante desta novidade? Como ficariam aqueles que, resguardados pelas mais sagradas tradições, esperavam um rei de fato? Não teria toda Israel ridicularizado o jovem Isaías? Menino louco! Menino burro! Não vê a roupa nova do rei?  A razão humana pode bem argumentar: Por que um rei poderoso, tão esperado e tão requerido, imbuído de todos os atributos e requisitos necessários para tanto, escolheria voluntariamente ser nada mais que um humilde servo?
Não há de fato nenhuma sensatez nisso.Toda essa nova visão se colocava diretamente na contramão da história, porque se existe uma relação estabelecida desde que o mundo é mundo é essa: o poder pertence ao mais forte. E este poder somente troca de mãos se e quando surge alguém comprovadamente mais forte ainda. As constantes mudanças na ordem mundial da nossa civilização foram conseguidas através de um único artifício: a tomada do poder pelo poder. Mesmo cientes de que sempre que um poder perverso foi destituído, seu substituto se mostrou ser ainda mais perverso, quando muito, mais sutil, mas igualmente perverso.
Eu sou um Deus, não sou um homem. Um santo no meio de ti. Imagino que apenas esta palavra de Oséias bastaria para que entendêssemos de vez que Deus não faria a sua extrema intervenção na história da humanidade nos mesmos desgastados métodos que nós humanos já sabemos ser ineficientes. Um Deus que santifica o seu nome e zela pala sua imagem, simplesmente não pode pensar ou agir como um usurpador de tronos. Deus foi criativo em todas as suas obras, por que não o seria justamente quando estava para trazer a novidade definitiva. É a partir deste conceito que o Messias profetizado por Isaías começa a fazer sentido. Um Messias que agiria contra os poderes estabelecidos completamente desarmado e de mãos vazias. Desprovido de qualquer prestígio; trazendo sobre si a repugnância de um mutilado e a vergonha de um excluído. Um Messias que veria nas entrelinhas das Escrituras que a maneira pela qual Deus triunfará, não será combatendo o mal com os instrumentos próprios do mal, mas espantosamente permitindo que o mal vá ao extremo, fazendo o seu pior, para que através do sofrimento do seu escolhido o poder do mal venha a se exaurir completa e definitivamente. Onde está morte a tua vitória?  Este é grito que desafia o poder. Tragada foi a morte pela vitória. Este o grito que anuncia que o seu servo finalmente venceu.
Não bastasse o fundamento histórico, a vida e a pregação do Messias, os seus mandamentos, não deixaram dúvidas quanto à importância da humildade no desenvolvimento e prática da fé. Os escritos do primeiro século registraram a rígida observação na conduta pessoal e comunitária, para que o menor sinal de orgulho vaidoso fosse alvo da devida admoestação. Não foram raras as situações em que Jesus e os herdeiros diretos da sua mensagem exaltaram a humildade ante a soberba. Jesus afirmou a humildade em suas parábolas, em seus sermões, em suas conversas íntimas e também nas respostas que dava aos que o questionavam diretamente. Desta forma, não há motivo algum para alguém imaginar que a prática da humildade seja circunstancial ou reservada aos momentos de culto. Contudo, esta é uma questão da maior complexidade e merecedora de cuidadosa reflexão. Devemos sempre perguntar a quem interessa de imediato que o cristão seja uma pessoa humilde: ao progresso do evangelho ou a este século que desdenha a humildade e idolatra a soberba?
Caso sejamos invadidos por idéias de levar em conta diferenças contextuais, lembremo-nos que estamos aqui para sermos imitadores de Cristo e não somente ouvintes da sua Palavra. Mas também é preciso considerar a real dificuldade que é criarmos filhos com princípios de humildade e altruísmo para os lançarmos em um mundo predador e egoísta. Ninguém disse que seria fácil, que seria exigido apenas o básico. Ou acreditamos que o fraco vence o forte, que o louco confunde o sábio e que o vil envergonha o exaltado, ou vamos para casa, porque é vã a vossa fé e vazia a nossa pregação. Então, como alguém ainda pode manifestar a humildade exigida pela consciência cristã? Quais as suas implicações disso para hoje? O que os seguidores imediatos de Cristo faziam que nós não fazemos?
Podemos começar pela diferença dos hinos. Enquanto o que se canta hoje o louva pela sua exaltação de servo a rei, os antigos o louvavam pelo despojamento no qual o soberano Deus se transformou em um humilde e sofredor servo. Não se trata de uma simples troca de posição social ou de empobrecimento ilícito. A troca se dá entre o sublime e o desprezado, entre o esplendoroso e o rejeitado.
A Igreja Primitiva no confronto com as demais religiões, inclusive com o judaísmo que lhe era próximo, não exaltava o seu Deus como poderoso acima de todos os deuses. A soberania de um único Deus não era assunto de discussão. Ela exaltava o seu Deus por uma atitude inconcebível a qualquer outro Deus, não pela medição de forças, não pelo desfile de poderes, mas pelo seu amor e misericórdia. Um Deus que não exigia nem oferendas nem sacrifícios, muito menos efígies ou templos em sua memória. A igreja louva um Deus que se antecipa a qualquer manifestação humana de se religar a ele, fazendo do seu próprio corpo o sacrifício e do seu próprio sangue a oferta pelo resgate.
Então, não sou eu quem o louvo, não somos nós que o entronizamos. O máximo que conseguimos ter é gratidão pelo que ele já fez. Nós o amamos porque ele nos amou primeiro. O mérito é exclusivamente dele. Somos apenas servos inúteis, que nada fazemos além do mínimo exigido.
Mas que finalidade prática tem isso? A que lugar isso nos leva que os hinos atuais também não o fazem? Em primeiro lugar nos leva à responsabilidade no serviço: Vocês de chamam de Senhor e Mestre, e têm razão, pois eu sou mesmo. Se eu, que sou o Senhor e o Mestre, lavei os pés de vocês, o que seria humilhante vocês fazerem uns pelos outros? Onde estará o limite do nosso serviço? Que missão estaria acima de nossa capacidade? Que tarefa estaria abaixo da nossa dignidade? Se Cristo lavou os pés de indignos de joelhos, como ainda nos resta a pretensão de servirmos aos outros de pé? De igual para igual? Paulo em I Co 4.11 nos dá as verdadeiras implicações deste serviço: Somos amaldiçoados e bendizemos, somos perseguidos e suportamos, somos caluniados e consolamos, somos considerados o lixo do mundo e a escória do Universo.
A segunda implicação diz respeito à hierarquia. Quando nos imaginamos seguidores de um Deus rei, imediatamente tomamos sobre nós as prerrogativas de amigos do rei. É um fator inerente a este status. Mas quando assumimos que somos servos de um Deus servo, estas prerrogativas desaparecem num piscar de olhos. Já não estou mais acima do bem e do mal, não sou mais imune às mazelas e atribulações que passam um humano qualquer. Eu sou sim, o mais indigno e humilde servo, e é aí que entra a exaltação à humildade. Sabemos que é extremamente complicado alguém ter a convicção de que adora o único e verdadeiro Deus em toda a sua onipotência, onipresença e onisciência, e ter como exigência considerar o semelhante, por mais miserável que possa ser, superior a si na hierarquia cristã. Como é duro ter que aprender desde muito cedo, que mendigos e prostitutas nos precederam no Reino dos Céus.
Em terceiro lugar entra a questão da matemática divina. A fórmula não é igual a do paganismo: quanto mais eu sacrifico, quanto mais eu louvo, quanto mais eu oferto, tanto mais Deus me abençoa. A fórmula passa a ser: quanto mais eu o amo e quanto mais eu lhe sou grato, tanto mais eu tenho obrigação de servir o próximo. É aí que toda a adoração e todo louvor se traduzem de repente em serviço.
Como uma visão antecipada do Juízo Final, podemos observar o que no juízo pessoal foi perguntado a Pedro na despedida Jesus Cristo do seu ministério terreno: Pedro tu me amas? Para qualquer resposta favorável a sentença proferida será sempre: Apascenta as minhas ovelhas

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