Pai Nosso (Tentação - Mal) Parte IV

TENTAÇÃO

A Expulsão do Paraíso de Michelangelo (1475-1564) 
A concepção que o hebraico tardio tinha da tentação, mais do que um estado emocional, era um local ou uma redoma de tormentos. A oração de Jesus corrobora com esta ideia, pois quando traduzida ao pé da letra simplesmente diz: não nos induzas à tentação, ou não nos leve para dentro da tentaçãoEm virtude desse desencontro cultural nos deparamos com a expressão de mais difícil interpretação de toda a oração de Jesus, posto que esta não é uma palavra que discorra
sobre algo esgotando todo o seu sentido. Ela ganha volume à medida que a nossa fé cresce a intimidade da nossa relação com Deus (Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças. I Co 10,13). Daí, ela não ter uma definição estanque, no sentido mais exato da palavra, definitiva.
Desde a fé mais rudimentar, quando a preocupação do indivíduo era ser provado ou ser reconhecido, até o entendimento trazido pela pregação de Jesus, que, como cristãos, temos que esperar e superar as tentações que certamente nos sobrevirão. Para os teólogos tentação é uma violência contra nossa própria pessoa, visto que todas as nossas defesas nos são tiradas e todas as nossas forças são usadas contra nós mesmos (Bate-me excitado o coração, faltam-me as forças, e a luz dos meus olhos já não está comigo. Sl 38,10).
Segundo o teólogo Dietrich Bonhoeffer, nem o homem no seu estado natural, que ele chamou de físico, e nem o homem dotado de indignação pessoal, a quem ele deu o nome de ético, podem entender esta oração. Para o homem físico a tentação é apenas uma boa hora de mostrar a sua força e a sua capacidade de superação de si mesmo. Para o homem ético nada mais é que uma excelente oportunidade de testemunhar seu valor moral. A oração destes seria algo assim: Conduze-me à tentação para que eu chegue a comprovar o poder do bem que existe dentro de mim. Mas para o homem espiritual, a tentação que Jesus fala em nada se compara a este duelo de forças, pois a própria Bíblia nos adverte que é um alerta para um tempo de grande apreensão. Não obstante, mesmo advertido, o homem espiritual jamais conseguirá fazer algo a favor ou contra. Para o escritor do livro de Jó representa o instante do máximo do distanciamento de Deus (Deus jogou-me no lodo, tenho aspecto de poeira e cinza. Clamo a ti e não respondes, estou em pé diante de ti, e mal olhas pra mim. (Jó 30, 19-20).
Outro dado diferencial é o momento. Este também distingue a tentação para os três tipos de homens citados anteriormente. Para o homem físico, a vida é uma luta constante e para o homem ético, quanto mais tentação melhor. O cristão deve entender que as horas de tentação se distinguem claramente das horas de repouso e proteção. Entende que o mesmo Deus que cria o dia, também cria a noite e permite que haja tempos de tormenta e tempos de alegria (Porque não passa de um momento a sua ira; o seu favor dura a vida inteira. Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã. Sl 30,5), pois para tudo há tempo, um modo e um propósito (Porque para todo propósito há tempo e modo; porquanto é grande o mal que pesa sobre o homem. Ec 8,6).
Assim vive o cristão, dos tempos de Deus e não da sua própria ideia a respeito da vida. Não querer passar por nenhuma tentação durante toda a vida, já é em si uma grande tentação, pois é simplesmente querer ser mais piedoso que Jesus, aquele que sofreu a mais grave de todas as tentações. É caminhando nesta direção que nos deparamos com a mais sublime de todas as tentações, o sofrer por amor a Cristo. Enquanto o cristão é desafiado a suportar os sofrimentos deste mundo em igual intensidade aos não cristãos, para o cristão existe um tipo sofrimento que o mundo não conhece: o sofrer por amor a cristo (Não sofra, porém, nenhum de vós como assassino, ou ladrão, ou malfeitor, ou como quem se intromete em negócios de outrem; mas, se sofrer como cristão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome. I Pe 15-16). Mas Jesus nos adverte que até mesmo este sofrimento pode tornar-se uma tentação. Ainda que o cristão aceite que o sofrimento possa se dar em consequência do pecado, o sofrimento por causa da justiça pode levá-lo a escandalizar-se com Cristo. A tentação, neste caso, se torna mais grave porque, se os sofrimentos gerais, pobreza, enfermidade, e a morte não podem ser evitados, o sofrer por amor a Cristo pode cessar no exato momento em que se nega o nome de Cristo.
Por estas razões oramos como Cristo nos ensinou: Não nos deixe cair em tentação, e sabemos que a nossa oração é ouvida porque toda a tentação é superada em Cristo. Então dizemos como Paulo: Então ele me disse: A minha graça te basta, porque o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse sobre mim. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias por amor a Cristo. Porque, quando estou fraco, aí então é que estou forte. (II Co 12,9-10)

MAL
Quando Deus criou o mundo, viu que tudo era bom. Cristo para apressar a vinda do Reino nos faz pedir no Pai Nosso: livra-nos do mal. A oposição destas idéias nos faz refletir e perguntar: De onde vem o mal neste mundo que foi criado bom? Quando e como será vencido?
A palavra hebraica tôb, que foi traduzida indistintamente pelo grego kalos e aghatos, designava pessoas ou objetos que provocavam sensações agradáveis ou a euforia em todo o ser. Pelo contrário, no hebraico ra’ ou no grego poneros ou ka, é tudo que conduz à doença, ao sofrimento e, sobretudo, à morte.
Desde a sua origem, o homem escolheu o mal. Buscou o seu bem apenas nas coisas boas para comer e sedutoras à vista, mas que eram distantes da vontade de Deus (Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; Dt 30,15). Essa é a própria essência do mal onde o homem não encontrou nada, senão os frutos amargos de sofrimento e morte. Viu-se impedido de gozar plenamente os bens da terra e incapaz de fazer o bem sem jamais pecar, pois o mal criou raízes no seu próprio coração (porém andaram nos seus próprios conselhos e na dureza do seu coração maligno; andaram para trás e não para diante. Jr 7,24). Desde então o mal tem proliferado e aumentado (A lei veio para aumentar o mal, mas onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda. Rm 5,20 NTLH), atingindo o homem em sua liberdade (Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. Rm 7,15), e em sua própria razão, subvertendo a ordem das coisas, chamando o bem de mal e o mal de bem (Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade. Is 5,20).
O mal não existe em si mesmo, ele é simplesmente a ausência do bem, é uma força que subjuga o homem e corrompe o universo. Deus não o criou, mas desde o momento em que ele apareceu lhe faz oposição nesta guerra incessante, que durará enquanto houver a História (Meus filhinhos, vocês são de Deus e tem derrotado os falsos profetas. Porque o Espírito que está em vocês é mais forte do que o espírito que está naqueles que pertencem ao mundo. I Jo 4,4 NTLH). Deus impõe condições para o bem, pois o bem físico está diretamente ligado ao bem moral e ambos ligados a Deus. Se Israel se esquecesse de Deus, deixasse de amá-lo e não mais observasse os seus mandamentos, seria imediatamente privado dos bens terrestres (E, se tais riquezas se perdem por qualquer má aventura, ao filho que gerou nada lhe fica na mão. Ec 5,14).
Este é o mal de que Jesus que nos livrar, e só ele pode atingir o mal na sua raiz, vencendo-o no próprio coração do homem. Vencendo o mal, Jesus obteve os bens que devemos pedir ao Pai. Já não se trata dos bens materiais outrora prometido aos hebreus, mas do fruto do Espírito, que incita o homem a não somente vencer o mal, mas a vencê-lo com o bem (Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem. Rm 12,21).


CONCLUSÃO
Esta é a oração que Jesus nos ensinou. Uma oração completa, sem repetições evasivas, sem adulações impróprias, propostas inconsequentes ou pedidos indecorosos. Uma oração que atinge desde o mais íntimo sentimento de um coração ao mais propagado anseio da humanidade. Uma oração que não exige pré-requisitos, cerimônias de purificação, exímia oratória ou sequer cultura teológica. Esta é para estar sempre conosco. No dia-a-dia, na paz ou na dificuldade. Não somente para que o Pai de Jesus Cristo venha, mas que venha e os ensine a amar, a servir, a aprender, a ensinar, a louvar e a orar.
Orando esta curta e objetiva prece, estaremos sempre sintonizados no mesmo Espírito que levou Jesus a recitá-la um dia, que longe de ser simplesmente um dia qualquer, foi o dia em que ele realizou o mais antigo sonho da religiosidade humana, o estar definitivamente diante de Deus, dialogando diretamente com ele. De tal forma, quase que podendo ver o seu rosto, encarando-o não mais como um poder distante, mas como um Pai amoroso e presente. O sonho que nem o mais poderoso dos reis, nem o mais sábio dos patriarcas, nem o mais fiel dos profetas, julgou, com certeza, que um dia iria se realizar.

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