Masnão foram os levitas que motivaram estes breves rascunhos. Meu desejo sincero éque Deus os aumente sempre em número e inspiração, e que participem com o mesmoespírito da Escola Dominical, pois como bem lembrou o Mestre dos mestres: “...deveis,porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Lc 11.42b). A questão aquilevantada recai sobre os diversos usos da palavra unção, que, enfocandonovamente o contexto evangélico, assumiu importância de sacramento. “Oimportante é a unção”, ou “este é mesmo ungidaço”, dizem alguns, quando o assunto é a conduta pessoal dealguém. O “grau de espiritualidade” — como é chamada a empírica medição da fé —,já foi quantificado pelas obras, pelo número de almas levadas a Jesus, pelobatismo do Espírito Santo, pela quantidade de dentes de ouro e, nestes últimostempos, passou a ser mensurado pela unção.
Comosurgiu este conceito? Quais são os seus fundamentos bíblicos? Onde repousa asua argumentação teológica? Por que conquistou semelhante status? Mesmocorrendo o risco de navegar contra a maré litúrgica atual, vou me atrever aresponder algumas destas questões, e me permitir levantar outras tantas.
Comecemospor escavar as suas raízes:
1º- A prática da unção, na Bíblia, remonta a era de Jacó, mas nada nos impede desupor que Abraão ou mesmo Noé houvessem lançado mão dela. (Gn 35.12).
2º- Tinha por finalidade primeira prevenir a infecção de ferimentos, mas serviatambém para refrescar o corpo e conferir um aroma agradável ao ungido. (Seu133.2).
3º- Era o ponto alto na consagração de sacerdotes e na entronização de reis. (Ex28.41, ISm 9.16).
4º- Usava-se também na prática do embalsamamento ou na preparação do corpo para osepultamento. (Mc 14.18)
5º- Com o passar do tempo serviu para instalar juízes, promover generais ou aindaidentificar pessoas com missões especiais, tais como do “vingador de sangue”.(Nm 35.25), ou um messias. (Is 45.1)
Ébem certo que algumas poucas pessoas no Antigo Testamento foram ungidas porordem direta de Deus. Podemos citar os reis Davi (I Sm 16.3) e Jeú, e o profetaEliseu (IRs 19.16). A unção com óleo propriamente dita sucedeu-se apenas comDavi e Jeú. Eliseu foi considerado ungido quando Elias revoltado, de passagem, jogousobre ele o seu manto. Estas unções não foram nada mais do que constatações daprévia escolha de Deus. Estes homens foram ungidos porque haviam sidopreviamente escolhidos por Deus para funções específicas, porém, para nenhumafunção que fosse vitalícia ou irrevogável. Mas a Bíblia, na sua imparcialidade,não omite as narrativas das frustrantes tentativas de se ungir a quem não foiescolhido. Saul, que fora entronizado rei pela voz do povo, mesmo recebendo aunção foi um autêntico desastre, menos por sua capacidade e caráter do que pelafalta da escolha divina. Mas Deus, ao ungir o adúltero, trapaceiro e assassinoDavi, faz dele o maior rei de todo o Antigo Testamento. Matias, o escolhidoatravés de sorte, foi ungido apressadamente para ser o décimo segundo apóstolono lugar de Judas, depois disso, nunca mais se ouviu falar dele. Deus, atravésdos seus próprios critérios optou por escolher um torturador homicida e transformá-lono seu maior missionário. Nos casos de Eliseu, Davi e Paulo, assim como emqualquer caso, a escolha de Deus sempre se sobrepõem à unção, tornando-a meramenteritualística.
Nãopoderíamos deixar de citar a unção de Jesus que faz dele efetivamente umCristus, palavra grega que é a tradução exata de Messias ou Ungido. Jesus, aolançar as bases do seu ministério, deixa bem claro ser ele um messias,assumindo em toda plenitude a profecia de Isaías (Is 61.1). Esta sua identidadepermanecerá oculta até o seu encontro com a mulher samaritana no poço de Jacó.(Jo 4.6ss). Não há elementos para comparar esta unção com qualquer outra. Nemmesmo com a dos demais messias ao longo da história de Israel. Facínoras como Nabucodonosore Ciro foram igualmente aclamados pelo mesmo título (Jr 25.9 e Is 45.1). Aunção de Jesus é única, exclusiva e definitiva. Porém, nem mesmo a esta unçãodiferenciada o libertou das limitações humanas. Seus atos de misericórdiaestavam limitados ao perímetro que o circunscrevia. A cura do servo docenturião à distância aconteceu pela fé do seu senhor que estava em contatoíntimo com Jesus. Sua glorificação e extrapolação dos limites se deram somenteapós a sua ressurreição, quando totalmente livre do seu corpo mortal.
Quaisos parâmetros que algumas pessoas, se dizendo ungidas, usam para afanosamente investirem-sede poderes que nem mesmo o Mestre dos mestres lançou mão? A verdade é que aunção jamais se nivelará à bênção de um sacramento. A água do batismo, assimcomo o pão e vinho da ceia, embora não possuam nenhum poder extraordináriooculto (Sermões de Wesley – Os meios de graça), são sinais suficientes einequívocos de que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações peloEspírito Santo que nos foi dado”. (Rm 5.5). Não há, portanto, que se admitirque uma prática comum à grande maioria dos cultos pagãos da antiguidade venha,de roupa nova, nos comunicar, acima dos sacramentos instituídos por Jesus, a graçade Deus. Mesmo sobre outros meios de graça, que não são propriamentesacramentos, como a oração e o jejum, a unção não tem predominância. Jesusexigiu que seus discípulos ao orar, ou jejuar, não se dessem ares de fariseus.Recomenda-lhes a boa aparência, estando nela embutido o costume de ungir oscabelos. A recompensa, contudo, se dará pela oração e pelo jejum feitos emoculto, e não pela unção declarada. (Mt 6.17)
Oque dizer da exacerbada valorização da unção? Como endossar argumentos que A ouB são verdadeiramente ungidos e se projetam acima dos demais. Deus não fazacepção de pessoas, mas se fizesse sua escolha recairia invariavelmente aquelesa quem damos menos crédito. É o que nos conta Jesus na parábola onde Deusignora o mestre religioso que todos, inclusive o próprio, achavam fantástico, eatende um pecador comum, que mal articulava palavras. Apenas balbuciava: “Temmisericórdia de mim”. Não há nada que eu possa fazer para Deus me amar mais. Enada que eu possa fazer para Ele me amar menos. Uma vez que o Espírito foiderramado sobre toda a carne, tanto A quanto B, assim como o abecedário inteiro,são igualmente ungidos com todo o poder que esse espírito pode conferir, e,desta forma, são todos igualmente vocacionados. O reconhecimento de que ocristão é ungido, foi uma prática salutar e comum na história da igreja, masnunca se prestou para fazer com que o dom ou o ministério de uns sesobressaíssem sobre os demais. Em um apelo dramático, Paulo adverte que os enviados,a palavra apóstolo significa enviado, como ele, devem assumir que são postospor Deus em último lugar, considerando-se como lixo do mundo e escória douniverso. Ser considerado lixo ou escória, realmente não pode ser pretexto dequalquer tipo de ostentação. E acreditem: é extremamente mais degradante apalavra grega peri-psema, a mesma que nos foi traduzida por lixo do mundo ouescória (ICo 4.9ss).
Entãoo que poderia justificar pastores portando, juntamente com suas Bíblias,frascos de óleo consagrados para a unção de fiéis? Por que razões esta sementevingou em nosso terreno tão meticulosamente preparado?
Oque verdadeiramente existe por trás de tudo isso é uma ansiosa saudade daaliança do A.T., do tempo do legalismo ou do mais puro sacerdotalismo. Aquelavolta ao rigor da lei. Nós queremos a lei. Por isso hoje ungimos com o óleoconsagrado, mas já fizemos vigílias nos montes santos, fomos batizados com amiraculosa água do rio Jordão e estamos preparadíssimos para nos aquecer nafogueira santa do Sinai. Nós não queremos a liberdade.
Quandoiremos entender que Deus, em Isaque, desistiu de todos os sacrifícios? Que nodeserto, com Moisés, desmantelou os templos faraônicos? Que no exílio, abriumão de uma raça exclusiva, de uma terra santa e de uma língua sagrada? E que finalmenteem Cristo, recusou todos os ritualismos, toda forma de adoração que necessitede intermediários, épocas, lugares ou aptidões restritas? Os óleos consagrados,os montes de contrição e as fogueiras santas, assim como os entendemos, são oscomponentes de uma religião sem graça. Por que onde existe a graça, amaravilhosa graça de Deus, qualquer unção se torna dispensável, porque a graça,por si só, nos basta.
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