Ame-a ou deixe-a

Prepara-te para encontrar-te com o teu Deus. Am 4,12
Ana e Simeão no Templo, Rembrandt
A despeito da mensagem de perdão incondicional e amor irrestrito contida na Bíblia, existe uma inquestionável responsabilidade do crente em Jesus Cristo em relação ao evangelho. Seguramente, com um tom diferente das mensagens dos profetas do VI século, que eram, em suma, ameaçadoras, o Novo Testamento traz consigo advertências que são mais que suficientes para nos colocar em alerta máximo. É bem sabido que não estamos vivendo o perigo de invasão estrangeira e nem corremos risco de genocídio, como era a situação da época dos profetas.


Se tais perigos não existem, o progresso da injustiça, a manipulação da Palavra de Deus e o descaso com a sua vontade soberana, que foram as causas da degradação do povo de Israel,
são hoje, para sermos otimistas, tão reais e iminentes como àquelas que nossos irmãos profetas denunciaram. Não estamos sendo invadidos por potências estrangeiras ou por exércitos de mercenários, sofremos invasões muito mais sutis e refinadas, o que permite causarem devastação em semelhante magnitude.
Não temos por intuito fazer comparações de gerações de cristãos do passado com a nossa, mas é certo que muitos de nós estão simplesmente eufóricos, vivendo a expectativa de um fim dos tempos próximo, contudo, glorioso apenas para si, e trágico para os demais. E estão concluindo este desfecho, baseados exclusivamente em leituras superficiais de eventos cósmicos e incontáveis achismos bíblicos. Com relação aos textos citados acima, estas pessoas responderiam com convicção a Amós: Estamos preparados, e a Malaquias: Deixe que venha. Mas será que o reino pode mesmo vir por que já estamos prontos? Sei que eu não estou. Quando confronto a minha vida com os padrões exigidos pelas parábolas de Jesus a cerca do Reino, mal posso calcular a distância que me separa deles. Nem digo a respeito da busca da perfeição cristã, mas de coisas bem mais simples como: andar a segunda milha, ser ingênuo como uma criança, amar ao inimigo e ser mais justo que um fariseu.
Podemos tranquilamente nos orgulhar de conhecer a maioria dos louvores cantados nas rádios e TVs, ou de recitar de cor metade dos versículos bíblicos ou mesmo de encantar multidões com testemunhos tocantes e triunfalistas, mas isso é o bastante para alguém estar pronto para encontrar-se com Deus? Podemos dar aulas dos assuntos mais intrincados da educação cristã, podemos formular os sermões mais inspirados e desafiadores, mas isso basta para encarar Deus frente a frente? Podemos discorrer sobre fé e sobre a graça com a mesma desenvoltura de Paulo, podemos até dizer que combatemos que encerramos a carreira, mas seria próprio dizer como ele, que combatemos de fato o bom combate?
Eu sei que Deus nos perdoa, essa é a nossa única esperança. Porque se Deus não é amor e se ele não nos perdoa, estamos perdidos, não somente agora, mas para todo o sempre. Mas sei também que este perdão não vem nada fácil, e não é tão simples como se pode pensar. A graça de Deus é de graça, mas não é barata não. Ela custa o inimaginável. Precisamos urgentemente saber qual é o valor desta graça, sob o severo risco de ficarmos nos iludindo debaixo de falsas premissas da graça. A verdade é que eu jamais poderei entender o significado da graça de Deus em minha vida se eu não souber medir a extensão do meu pecado. Jamais poderei ser atingido pela graça se não me conscientizar do mal que estou causando aos outros. O perdão está ao alcance de todos, mas como posso ser perdoado se não sei nem do que? Precisamos apreciar a graça de Deus muito antes de nos empenharmos em cálculos apocalípticos e muito antes de tirarmos as medidas das vestes brancas da salvação. A primeira questão é essa: será que temos apreciado suficientemente a graça de Deus?
Amós e Malaquias não possuíam o entendimento sobre a graça como Paulo, mas mesmo assim não conceberam qualquer outra possibilidade da salvação para o povo que não fosse o arrependimento sincero e a conversão imediata. Eles estavam seguros que somente um povo arrependido e contrito acharia salvação em Deus, uma vez que a salvação individual, tão enfatizada hoje, era, sequer, cogitada por eles. Nas entrelinhas das mensagens proféticas podemos sentir as suas agonias, pois sabiam que se não fossem ouvidos, sofreriam as mesmas desolações que anunciavam ao povo. Por certo, seus lamentos não eram por si mesmos, mas sim pelo povo a quem tanto amavam.
O governo militar brasileiro da época de 1960 criou um slogan nacionalista que dizia: Brasil, ame-o ou deixe-o. Este slogan é bastante copiado por muitas igrejas cristãs e é o preferido de muitos pastores. O que mais se ouve é: quem não está satisfeito com sua igreja deve mais é procurar outra. Foi exatamente o Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós: Fora daqui, seu profeta! Volte para a sua terra de Judá e ganhe a vida por lá com as suas profecias.
É curioso como Deus age por caminhos bastante estranhos ao nosso entendimento. Alguns humoristas que profeticamente faziam oposição ao governo, mudaram radicalmente o sentido da frase com apenas um pequeno acréscimo: Brasil, ame-o ou deixe-o como está. Não consigo imaginar uma mensagem tão atual para a Igreja quanto esta: Igreja, ame-a ou deixe-a como está. Não foi justamente esta voz que Amós e outros profetas ouviram? Não foi o amor pelo seu povo que os moveu a confrontar, apenas com a Palavra de Deus, altas autoridades políticas e religiosas de seu tempo com o risco da própria vida?
Eles não se dobraram ao lógico, não fizeram o que era recomendável: tão somente deixar o povo morrer na sua injustiça, e mudar de país. Optaram por se empenhar em não deixar passar em branco. Nãose conformaram em deixar o povo como estava, iludidos que os cultos que prestavam na sua iniqüidade, e cantando louvores complacentes com a corrupção, imaginando que assim poderiam subornar Deus e garantir a salvação. Diante disso, qual seria o modo mais cristão de se amar a Igreja hoje? E esta é a segunda grande questão: Quem poderá suportar o dia da sua vinda?
Eu sei que nada do que façamos ou imaginemos é suficiente para nos preparar para o inevitável encontro com o nosso Deus. Apreciar a sua graça e não se conformar com a nossa maneira de ser igreja, não são suficientes para nos tirar do atoleiro da inanição. Como disse o rev. Antônio Gonçalves:
Esforços da terra, precário destino,
Empenho dos homens, riqueza, o que for,
Não valem a bênção do reino divino:
Por isso eu preciso de ti, meu Senhor.
O complemento vem por conta do amor que Deus incondicionalmente dedica à sua igreja e ao seu povo. Vem na lembrança do que um dia deu certo. Vem na história de uma igreja, ainda que falha, num breve passado, que deixou em muitos a sua marca, e provou com resultados o quanto o esforço humano é capaz de fazer todos caminharem na direção do Reino. Uma Igreja onde se cantava hinos com versos eufóricos, mas que nas entrelinhas se encontram palavras que não conseguíamos pronunciar, que nos obrigavam a engolir em seco a verdade divina que afrontava a nossa realidade pecaminosa.
Uma igreja que tinha professores de Escola Dominical que nos desafiavam com temas impertinentes, mas as suas conclusões nos faziam chutar o balde, e sairmos dali com a promessa, nunca cumprida, de jamais voltarmos. Uma igreja cujo pregador somente se fazia de exemplo apenas era para confessar o seu pecado e a sua falha, mas cujas mensagem simples fazia tremer os mais firmes alicerces das nossas convicções políticas, sociais e tecnológicas.
Uma igreja em que uma irmã sofrida dava o testemunho de que havia perdido seu único filho, arrimo de família; perdido seu emprego, por ser velha demais; perdido sua saúde, por não ter como pagar consultas médicas, mas que, apesar de tudo, nunca perdera a sua fé.
Esta é a terceira e última questão: deixar como está, ou empenhar-se em mudar?

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