Somente mais tarde, com oaperfeiçoamento das técnicas agrícolas, os povos tenderiam a adorar asprimeiras divindades representadas por imagens. Curiosamente esta imagem nãoera de um deus, e sim de uma deusa. A imagem da mãe fértil é quase que umconsenso em todas as culturas do mundo. Seu culto estava intrinsecamente ligadoà fertilidade do solo e dos animais. Após este período, os humanos perceberamque o ciclo da natureza – nascimento, vida e morte – eram um fator determinantena produção agrícola, e associaram a este ciclo a concepção dos seus deuses.Celebrando o seu nascimento ou renascimento como uma vitória sobre o caosoriginal. Nos intervalos elegia-se um deus carnavalesco para que o caos ficassebem definido. Perceberam também que quando aconteciam fatos em uma determinadaordem, os resultados lhes eram bastante favorável. Caso a ordem fossesubvertida, as conseqüências seriam trágicas. Deste modo, passaram a seaproximar do invisível e do desconhecido, para que, de alguma forma, a ordembenéfica fosse assegurada. Ou seja, o culto aos deuses especializados seiniciou por interesse, para que os deuses trabalhassem em seu favor, e não pormedo ou ignorância, afirma Schmidt.
É neste emaranhado de deusesespecialistas e regionais que nasce Abraão. Talvez no lugar mais impróprio paratudo começar, na pomposa cidade pagã de Ur, na Caldéia. E é este Abraão, cujaobstinada crença em um deus invisível e moral, que vai mudar para sempre a civilização.Para a já comentada aproximação com o invisível, Taré, seu pai, era fabricantede ídolos (Gn, 31.17). Deuses da fertilidade, do amor da guerra e etc. Deusesque não se importavam com a conduta das pessoas, desde que sacrifícios elouvores lhes fossem dirigidos. Conta-nos o Midraxe (coletânea deinterpretações da Bíblia segundo os rabinos) que Taré havia estocado uma boaquantidade de imagens quando Abraão, ainda menino, quebrou-as todas. Irado,Taré perguntou a Abraão como aquilo acontecera. O menino respondeu: Elesbrigaram entre si para ver quem era o mais poderoso. Seu pai logicamentenão lhe deu crédito e disse: Estas são apenas imagens feitas de barro, sematributos especiais ou vontade, e nada podem por si mesmas. Abraãoimediatamente retrucou: Se elas nada podem por si mesmas, então por quevenerá-las? O Midraxe assegura que de alguma forma, Abraão sozinho, porrazões que jamais poderemos supor, pressentiu que aquele não era o caminho, eouviu uma voz diferente. A voz de Deus que está acima da natureza.
Pode perecer algo inusitado, mas omonoteísmo em Israel não é pioneiro e muito menos único na antiguidade. Duranteo reinado do faraó Aquinaton, pai de Ramsés I, o Egito experimentou, nãosomente a entronização de um Deus único, mas a execração de todas as outrasdivindades.
No início temos Abrão e Sarai, quepor intervenção divina tiveram seus nomes mudados para Abraão e Sara. Elesmoravam em Ur com sua família, e ao contrário do que se diz, não saíram de lápor ordem de Deus, mas acompanhando uma grande migração que acontecia naquelaépoca Gn 11.31- 12.1. Segundo a Bíblia, Abraão viveu em Harã até os seus 75anos, idade que tinha quando, aí sim, Deus falou com ele pela primeira vez. Saida tua terra, da tua parentela... Muitos dizem que foi neste momento quecomeçou a fé judaica. Neste período era comum se contar com a proteção de umdeus particular. O deus do fulano. Um deus que tinha poucos poderes, porém, umaresponsabilidade enorme. Como os anjos da guarda de hoje. Para outros a fé judaicacomeçou mais tarde, quando o servo de Abraão reconheceu como seu o deus deAbraão, Iahveh, O Senhor. Gn 24:12. Mas de todo modo não podemos pensar na fécomo algo monolítico, de concepção rígida. Abraão foi chamado Pai da Fé, nãoporque conhecia a ortodoxia da doutrina de Deus.
Não há indícios na Bíblia de queAbraão tenha ouvido falar de Adão ou de Noé. Ele conheceu Deus a partir dabreve revelação que tivera do próprio Deus. Não podemos comparar a sua fé com ado apóstolo Paulo, por exemplo. Ele obteve este título não por seguir um credoortodoxo, mas porque confiou em Deus e em suas promessas por mais absurdas queelas pudessem parecer. Abraão deixa para trás seu seguro mundo familiar; crêque Sara vai conceber, mesmo sendo idosa; e assume o difícil encargo de muitosreligiosos: ouvir vozes sem conseguir prová-las. Hoje podemos dizer que Abraãofoi um grande homem, mas não seria assim se fôssemos seus vizinhos em Canaã. Deveria tersido muito duro para ele andar errante atrás da voz de um Deus invisível. Outrofato louvável é a sua credibilidade junto à sua família. Eles não ouviram asvozes e acompanharam Abraão mesmo sem saber para onde. Afastaram-se do únicomundo e modo de vida que conheciam, guiados por uma voz que sequer ouviam.
Quanto à sua viagem ao desconhecido,podemos constatar que ela não é poupada de incertezas. Ao chegarem à TerraPrometida não a encontraram vazia, mas povoada por uma civilização superior emnúmero e tecnologia. Gn 12.17. Não haviam ainda se instalado, quando se vêem forçados,pela fome, a migrar para o Egito. A notória beleza de Sara a leva a se tornarconcubina no palácio de Faraó. Assim, como num prenúncio do Êxodo, pragas sãolançadas à casa do Faraó e Sara lhe é devolvida. O conflito não é entre Faraó eAbraão, e sim entre Abraão e Deus. Abraão não se julga digno desta paternidadetal como lhe é oferecida e tenta transferi-la para alguém de cultura ecivilização superiores, neste caso um egípcio. Deus intervém e retoma ocontrole e faz a promessa pela segunda vez
Quando retorna a Canaã, ele e Ló, seusobrinho, se separam e Abraão assume uma função diferente de qualquer outra porele executada. Ele que é apresentado como um líder espiritual, assume a funçãode um guerreiro libertador. Neste ínterim, Abraão já mostra sinais deimpaciência, e em Gn 15.1-3 manifesta sua indignação quanto a demora dapromessa dizendo: de que vale a bênção se eu continuo sem filho e um escravoserá o meu herdeiro. Pela terceiravez Deus renova a promessa.
O enfoque do Gênesis agora é a vidaíntima de Abraão, Sara, Agar e Ismael. Do trágico incidente que condena mãe e filhoa morrerem de sede no deserto. Deus promete à virtuosa Agar uma grandedescendência. Constatamos que mais uma vez o casal tenta ajeitar as promessasde Deus à sua maneira. Mais uma vez escolhe uma descendência egípcia. Mais umavez Deus intervém, repete a promessa pela quarta vez e sela com Abarão umaaliança. Aliança esta que marcará todo homem judeu dali para frente: acircuncisão. Este sinal marcava a passagem para a idade adulta ou umacelebração pré-nupcial era comum, mas não em um homem de 99 anos. Tanto eraincomum que Abraão ri desta ordem Gn 17.12. Por estar com quase 100 anos e Saracom 90, ele mais uma vez duvida. Pensa ele: se o órgão reprodutor em perfeitoestado não foi capaz de gerar um filho, quanto mais agora que vai sofrer umamutilação. Quem pode condenar Abraão por sua risada, sendo esta a quinta vezque Deus lhe prometera uma descendência.
Antes ainda do cumprimento dapromessa Abraão confronta Deus em uma das mais espetaculares narrativas de todaa Bíblia. A intercessão pelas cidades de Sodoma e Gomorra. Em uma flagranteousadia Abraão questiona Deus com uma série de perguntas das mais desafiadoras:Como punirás o justo com o pecador?Não fará justiça o juiz do Universo? Esta atitude não se apresentou para Deuscom uma ofensa, e sim motivo de orgulho. Embora possa parecer comum este tipode intercessão nos dias de hoje, foi uma demonstração de conduta moral sem precedentesna história. Mesmo porque Abraão não tinha interesse nenhum com relação aospovos da campina, onde se situavam as duas cidades. Anteriormente negara-se aestabelecer qualquer tipo de relação com eles Gn 14.22-24. Deus ficou tãoorgulhoso por ter um filho com tal conduta moral, que ele mesmo se deixou medirpor ela. Gn 16.6 A Bíblia diz que Abraão creu, e isso lhe foi imputado como justiça. Mas quandoDeus diz que não vai ocultar os acontecimentos de Sodoma e Gomorra a Abraão,procede desta forma não por reconhecer justiça em Abraão. Por mais deuma vez Abraão já havia mostrado incredulidade. Deus revela a ele suasintenções não por ser merecedor, mas por gostar dele. Eu o escolhi.
Para finalizar um dos mais delicadosepisódios da Bíblia e sem dúvida a maior questão na vida de Abraão: osacrifício de Isaac. Em primeiro lugar se torna muito difícil para nós, com acultura do século XXl, lidarmos com este fato. Podemos discuti-lo, mas jamaispoderemos sentir pessoalmente o conflito que se estabelece entre a paternidadee o assassinato. Em segundo lugar verificamos que o ponto central de todo oepisódio continua sendo Abraão, porque, neste caso, é muito mais fácil servítima do que carrasco. Isaac representa a inocência, e Abraão o paiatormentado entre duas alternativas do bem: o amor ao seu único filho e aobediência ao deus que concedeu a infinita graça da paternidade.
Kierkgaard, em seu livro Temor eTremor, nos dá algumas versões bastante inspiradas do fato. Em uma dela diz eleque quando Abraão ergue o cutelo para sacrificar Isaac diz para ele: Eu teodeio. Você foi o grande erro da minha vida. Finalmente eu vou poder reparareste erro. Mas em seu coração guardava o seguinte pensamento: É melhorque ele morra me odiando do que perca sua fé em Deus. Neste episódio sãosintomaticamente narradas as últimas palavras trocadas entre pai e filho. É bomque se frise que Abraão, na visão de Kierkgaard, chama para si toda aresponsabilidade pelo crime, isentando Deus de qualquer participação. Umadesafiadora atitude para nós que estamos sempre dizendo: Foi Deus quem quis.
Mas por trás da história existemfatos relevantes. Entre os povos do oriente próximo o sacrifício de criançasera bastante comum, principalmente do primogênito. Segundo as suas crenças, o rebentoera filho de um deus que exauria suas forças para concebê-lo. A criança era aele devolvida para que suas forças se restabelecessem e ele continuasse a darfilhos ao casal. É mais ou menos quando nos incitam a dar a Deus aquilo quetemos de melhor. Como se Deus exigisse de nós algo material para provar-mos anossa fé. Sob todas as formas existe uma condenação ao ato. Os profetas deIsrael foram incansáveis em condenar o sacrifício de crianças. (Cf. Dt 18.10,II Rs 16.3, 17.17, 21.6, 23.10). Não se perde tempo condenando aquilo que nãoexiste. Eles eram enfáticos em dizer: Ospagãos adoram desta forma, nós não. EmOséias 6:6 atestamos indubitavelmente esta verdade: “Pois misericórdiaquero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.”Muito menos o de crianças inocentes.
Sob qualquer ângulo que observarmos,veremos que se trata de uma história singular. Depois de Abraão o mundo nuncamais seria o mesmo. Nada, no mundo de sua época, ou muito tempo depois, secompara à sua moral sem precedentes. Para nós fica o questionamento: Como umhomem sozinho foi capaz de enfrentar religiões, culturas e civilizações? Comopode perceber, aceitar e se guiar por uma lei moral única para todos os homens,quer sejam eles reis, sacerdotes ou servos? Como pode acreditar em um Deus queestranhamente estabelece a conduta moral diante de outro ser humano como aúnica forma correta de ser adorado? Tudo isso orientado apenas por uma voz, umavoz que está acima da Natureza.
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