A tristeza que vem de Deus

Não me arrependo de ter escrito aquela carta, emboravocês tenham ficado tristes por causa dela. Quando soube que a carta os deixoutristes por algum tempo, eu poderia ter ficado arrependido. Mas agora estoualegre, não porque vocês ficaram tristes, mas porque aquela tristeza fez comque vocês se arrependessem. Aquela tristeza foi usada por Deus, e assim nós nãocausamos nenhum mal a vocês. Pois a tristeza que é usada por Deus produz oarrependimento que leva à salvação; e nisso não há motivo para alguém ficartriste. Mas as tristezas deste mundo produzem a morte.(IICo 7,8-10) 

Se existeum mistério que ninguém conseguiu desvendar, desde que o ser humano começou aandar pela terra, é como aprender a como lidar com a tristeza. Por mais quealguém queira se iludir invocando frases de efeito ou recitando mensagensotimistas, a nossa realidade diante da tristeza é algo bem mais sério e bemmais profundo do que o refrão da música que eu, quando adolescente cantava: “quemtem Jesus vive sempre sorrindo mesmo quando não dá”. A tristeza é um fatouniversal e ela está presente na vida de todo mundo. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Aseparação de Deus, além da perda e do sofrimento são as causas principais datristeza que atingem a todos indistintamente.
Ela nãoescolhe classe social, raça, sexo, nacionalidade, muito menos credo religioso.A tristeza é algo que nivela a todos os seres humanos, todos estamossuscetíveis a ela. Por isso, a aquela antiga sextilha de Francisco Octaviano, quecondena o estado de inanição da pessoa que passou pela vida em branca nuvem,embora seja muito bela, é praticamente um tiro n’água. Quem passou pela vida...Tenho cá minhas dúvidas se o poeta realmente conheceu alguém que, na vida, simplesmentetenha tão somente adormecido em plácido repouso, sem nunca ter experimentado ofrio da desgraça ou tenha vivido sem sentir qualquer tipo de tristeza ousofrimento.
Contudo, sea tristeza é uma realidade palpável, a sua negação ou a tentativa de fazer deconta que ela não existe também, são igualmente visíveis nos dias de hoje. Issopode ser observado em praticamente todos os aspectos da vida humana. E eu nãome refiro apenas ao fato de que aquele amontoado de túmulos dos antigos cemitériosterem sido transformados em belos e exuberantes jardins de saudade, e nem tambémà habilidade dos maquiadores, que agora conseguem dar aos defuntos umaaparência melhor até do que a que tinham em vida. Faloobjetivamente nas manifestações mais simples, das coisas mais comuns da nossavida, como a música ou a poesia, seja ela religiosa ou popular. Os compositoresque no passado ousavam a refletir sobre a vida, diziam que a música e a poesia eramos espelhos da alma, espelhos que se propunham a mostrar a realidade que estavaoculta no mais profundo esconderijo do coração.
Pode atéser que no passado as coisas fossem mesmo assim. Anteriormente cantava-se olamento de um amor perdido, inspirado na visão da pessoa cabisbaixa, pensativa,com os olhos fitos no horizonte. Aquilo que era chamado de dor de cotovelo.Realmente o cotovelo era a parte do corpo que sofria a maior pressão, pelo fatode servir de apoio às intermináveis horas de questionamentos. Mas o que existe hojeé um tremendo esforço para disfarçar esses sentimentos com indiferença. Já quasenão existem canções que lamentam amores perdidos, e as que ainda insistem em sobreviversão chamadas de bregas. Hoje em dia o que prevalece é a moda do já coloqueioutro em seu lugar.
Na igrejanão é diferente, nós não fazemos de outro modo. Até mesmo os hinos que nóscantávamos, principalmente no período da Quaresma, como “Eu tenho de Jesus saudade”, "Sou forasteiro aqui”, são completamente diferentes dos cantadoshoje. Já não se invoca mais a contrição que leva à reflexão que o momentoexige. A doutrina triunfalista sobre tudo e sobre todos é o fator que conta. Cantara vitória sobre os infortúnios, e até mesmo sobre a morte é quase que umaobrigação. Isso é algo que atinge de forma drástica os novos convertidos e aquelesque ainda não construíram uma sólida base de fé na ressurreição. O atrativo dafé cristã não é mais o Reino vindouro, e a sua entrada não se faz mais pelatristeza e pelo arrependimento. O que atrai multidões às igrejas éprosperidade, cura e sucesso pessoal, e o que as mantém lá é a troca e aretribuição.
É bemsabido que hoje olhamos a paixão de Cristo através dos olhos da ressurreição,mas é certo também que ainda não estamos na plenitude do Reino de Deus. Paranós o Reino de Deus está aí, mas ainda não é pleno, como a Bíblia diz que umdia será. Ele existe, mas ainda não é pleno. Um professor do SeminárioPresbiteriano de Campinas, o rev. Rubem Alves, diria que estamos morando nasaudade, que é aquele lugar que fica entre o amor e a ausência. Como eu disse,os antigos cantavam “eu tenho de Jesussaudades”, e temos mesmo. Saudadeda sua presença física em nosso meio, da sua presença transformadora, do seumaravilhoso olhar.
Para osevangélicos, tornou-se uma questão de fé omitir a tristeza, não somente paraque a vida espelhe um triunfo interminável, mas também para se diferenciaremdos irmãos católicos, que, principalmente durante a Quaresma, guardam o luto. Ébom saber que o costume de usar somente a cruz vazia, não acrescentaabsolutamente nada ao currículo de bons cristãos. A tristeza está aí, e quandoela chega — e ela chega mesmo, este é o título do livro de Stanley Jones, quenão pode deixar de ser lido, muito menos divulgado: Quando a Tristeza Chega —, todos nós, mesmo os que fazem questão absolutade negá-la, não desejam outra coisa senão suplicar aquilo que canta o sambapopular: “Tristeza, por favor, vá embora”.
Contudo, háque se diferenciar os dois modos de perceber a tristeza: quando ela é usadapara os propósitos do mundo, e eu uso a palavra mundo para rotular as coisas,que no dizer de Paulo, concorrem para nos separar do amor de Deus, e quando elaé usada para os desígnios de Deus. O contraste é bastante significativo porqueuma mesma situação, dependendo como é percebida, pode nos conduzir à alegria dasalvação ou à triste realidade da morte. Talvez a preocupação de Paulo, quandoescreveu esse importante texto da Carta aos Coríntios, não fosse tanto mostraras diferentes origens da tristeza, mas sim mostrar como que atitudes devemostomar quando ela chega.
Olhemosmais uma vez o que diz o nosso texto base: Não me arrependo de ter escritoaquela carta, embora vocês tenham ficado tristes por causa dela. Quando soubeque a carta os deixou tristes por algum tempo, eu poderia ter ficado arrependido.Mas agora estou alegre, não porque vocês ficaram tristes, mas porque aquelatristeza fez com que vocês se arrependessem. Aquela tristeza foi usada porDeus, e assim nós não causamos nenhum mal a vocês. Pois a tristeza que é usadapor Deus produz o arrependimento que leva à salvação; e nisso não há motivopara alguém ficar triste. Mas as tristezas deste mundo produzem a morte.
Pauloafirma com todas as letras que a tristeza, seja ela de que origem for, devesempre nos induzir à reflexão que leva a uma transformação, e não aoconformismo ou ao ativismo desesperado, que causa invariavelmente a morte.Dizia um pastor em seu sermão dominical: “Parece que o povo americano aindanão chorou a tristeza do 11 de setembro, e que a sua única preocupação é a retaliação,a vingança. Diferentemente do espanhol, que, mesmo ferido, repudiou qualqueruma das faces do terrorismo”. A tristeza de qualquer origem, quando osolhos estão fitos em Deus, produz contrição e arrependimento, e estes,predestinadamente à salvação de todos: ofensores e ofendidos, terroristas eaterrorizados, cristãos e muçulmanos.
Queestamos no vale escuro é um consenso. Para muitos, o nosso tempo é o vale maisescuro pelo qual a humanidade já trilhou. Esta crença, aliada àquela que dizque somos a última geração sobre a terra, são as grandes prepotências docristão de hoje. Contudo, é imperativo saber que a segurança neste vale escuronão está nos condomínios fechados, nos carros blindados, nos guarda-costas, nasegurança redobrada dos aeroportos. Está no que os gregos chamavam de metanoia,na mudança de mente, no arrependimento, no voltar atrás, no começar de novo.Isaías, no capítulo primeiro de seu livro, desenha um panorama de seu tempoimpressionantemente semelhante ao atual. O curioso é que parece que ele faladiretamente à igreja de hoje. Não é multiplicando o número de cultos, delouvores e de orações que vamos resolver a questão da insegurança, e sim,incluindo a todos debaixo da segurança que queremos para nós mesmos.
Masnão pode ser uma atitude da boa vontade apenas, para que venha a obtereficácia, se faz necessário, antes de tudo, reflexão e arrependimento. ”Seforem humildes e me obedecerem, vocês comerão das coisas boas que a terraproduz. Mas, se forem rebeldes e desobedientes, serão mortos na guerra. Eu, oSENHOR, falei.” Is 1,19-20. Parece que ainda não aprendemos a direcionarcorretamente as nossas tristezas. Mesmo sabedores de que este caminho invariavelmentenos levará à morte, estamos caminhando a passos largos para o inferno, e nosenganando na tentativa vã de salvarmos a nós, nossos familiares, e algunspoucos que nos são próximos. Precisamos nos lembrar que para a salvação daigreja de Corinto, que é o assunto do nosso texto bíblico, foi necessário queindistintamente todos se arrependessem, e que igualmente cada um fizesse dassuas tristezas uma alavanca para mudança.
Se Jesus,no Getsêmani, tivesse feito da sua tristeza motivo de lamento profundo outivesse sucumbido à tentação de convocar doze legiões de anjos para combater ocombate que era exclusivamente seu, teria mandado a tristeza embora, teriaresolvido de imediato a questão da segurança, sua e dos seus discípulos, teriadado a humanidade uma prova irrefutável e definitiva da sua filiação divina,teria consumado em sobre si todo o poder de Deus, mas não teria salvado omundo. Nós fomos salvos porque Jesus transformou a sua tristeza em remissão depecados, a sua dor em libertação. Paulo, inspirado no profeta Joel, descreve osmomentos de aflição de Jesus com detalhes precisos. Ele se lembra de Jesussendo acoitado e diz: onde está morte atua vitória? Tem a visão de Jesus sendo pendurado na cruz, e pergunta: onde está inferno o teu poder de destruição?Finalmente, quando Jesus morre, Paulo solta o grito definitivo de libertação: tragada foi a morte pela vitória.
Tudoaquilo que pareceu ser a derrota de Deus, foi na realidade a sua grande vitóriasobre a morte. Não sobre a morte de qualquer um, mas sobre a nossa morte. Foi ahora o poder do mal reuniu todas as suas forças, e as exauriu totalmente natentativa de derrotar o Cordeiro de Deus, de faze-lo, sem conseguir, negar osofrimento ou buscar alternativa diante da tristeza.
Não sei quemotivos levaram Vinícius de Moraes e Baden Powell a compor um samba dedicado àtristeza. Mas com certeza sei que eles entenderam que a tristeza,diferentemente de um mal em si, é também uma forma de bênção. Uma formaestranha, por certo, mas foi exatamente por este motivo que deram ao seu sambao nome de Samba da Bênção, onde eles cantavam:
Émelhor ser alegre que ser triste.
Alegria é a melhor coisa que existe.
É assim como a luz no coração.
Maspra fazer um samba com beleza (samba representa aqui qualquer expressão de sentimento)
Épreciso um bocado de tristeza,
Épreciso um bocado de tristeza,
Senão não se faz um samba, não. 
Fazersamba não é contar piada.
Quemfaz samba assim não é de nada.
Obom samba é uma forma de oração.
Porqueo samba é a tristeza que balança,
Ea tristeza tem sempre uma esperança,
Ea tristeza tem sempre uma esperança,
Deum dia não ser mais triste não.                              
E aqui estamos nós nesse domingo dePáscoa, sendo embalados pela tristeza de nos lembrarmos de tudo aquilo que onosso querido salvador teve que passar para nos salvar, e a alegria de cantarCristo já ressuscitou. E assim é a nossa vida, ora tristes pela dor daseparação, das doenças e dos males que nos atingem a todos, ora alegrescontando as bênçãos que o amor de Deus nos propicia. Mas sabemos que a tristezanão tem a última palavra, que ela pode até tentar, mas nunca poderá nos separardo amor de Deus que está em Cristo Jesus. Pelo contrário: quando estamostristes é aí que perseveramos mais na sua palavra, mais nos submetemos à açãodo seu Espírito, e, consequentemente, mais nos aproximamos de Deus.
A tristeza que vem de Deus é usadapor ele para a nossa salvação, completamente diferente da tristeza que vem domundo, que só produz morte. É na esperança da salvação de Deus, na ressurreiçãode Cristo e na nossa própria ressurreição que somos embalados, porque temos a certeza de que, comodisse o poeta popular, um dia nós não vamos ser mais tristes não. A palavra deDeus tem e terá sempre a última palavra: Elhes enxugará dos olhos toda lagrima, e não haverá mais pranto nem dor. Porqueas primeiras coisas passaram, e tudo se fez novo. O reino desse mundo já passoua ser de nosso Deus e de se Cristo. E ele, não a tristeza, reinará para sempre.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

0 comentários:

Postar um comentário