Natal é assim ou não é Natal

Natividad de Garcia del Barco (1467-1500)
Para os evangelistas, João Batista é o grande sinalizador da chegada do Natal. É alguém que, de uma forma bastante objetiva, prepara o caminho para o nascimento do Filho de Deus, sem o que não irá acontecer. Ele é o precursor, é a Voz que Clama no Deserto que profetizou Isaías e aquele que vai aplainar os caminhos tortuosos para que o verdadeiro Natal aconteça. A despeito do Batista ter a sua mensagem muito bem contextualizada e cronologicamente bem registrada, dando-nos a real situação política e religiosa do seu tempo,
devemos sempre nos perguntar: será que esta mensagem seria atual se fosse proclamada em nossos dias, uma vez que ele falou às multidões, falou aos publicanos e também aos soldados de sua época? E para quem esta mensagem falaria hoje, tendo em vista que Cristo já nasceu há dois mil anos?
Se considerarmos os soldados do seu tempo como sendo a força policial e instrumento da justiça de hoje, imagino que João tenha muito o que dizer. A situação da época era amplamente favorável a quem estivesse investido de alguma autoridade, fosse ele soldado um romano ou mesmo um soldado do templo. Podia prender qualquer um por qualquer motivo, e até mesmo sem motivo algum. Bastava uma simples denúncia, mesmo que fosse falsa. Ao acusado cabia o ônus da prova, era ele quem tinha que provar a sua inocência. Isso nem parece ter dois mil anos, mas como diz o ditado: atrás do mentiroso vem o ladrão. Se a denúncia falsa fazia parte da prática policial, o suborno para inocentar também.
Mas o que isso tem a ver com o nascimento de Cristo? Deixe o corrupto pra lá, vamos nós aqui comemorarmos o nascimento de Cristo. Vamos cantar Pinheirinhos que alegria, Surgem Anjos, Glória a Deus nas Alturas. Sim, mas espere aí, Noite Feliz não dá pra cantar não. Se essa “parada” não for resolvida, não haverá uma única Noite de Paz para o extorquido, e sequer uma Noite de Amor para o corrupto. A mensagem de João Batista é mais que atual. Basta abrir o jornal cuja manchete traz o Secretário de Segurança como chefe de uma enorme quadrilha. Somente a crueza desta mensagem, que mostra o risco que é a vida de corrupção e que é possível se viver agora a perspectiva de um novo tempo, pode fazer com que o soldado se arrependa e tome consciência de que não deve usar de violência gratuita contra as pessoas, de que não é seguro denunciar falsamente, e de que deve viver dignamente somente com o seu soldo.
Mas e o publicano, o que faz na história do Natal? Mais conhecido como cobrador de impostos, o publicano era o judeu que tinha uma função no governo romano. Era o funcionário público dos nossos dias. Nesta qualificação podemos enquadrar desde o mais humilde servidor até o supremo mandatário. A presidente é tão funcionária publica e tão publicana como qualquer outro. Mas o que João Batista tem com isso? Quem o nomeou fiscal do povo? Quem ele pensava que era? Uma figura estranhíssima, todo peludo, cabelo e barba sem corte, vestido de pele de animais, comendo mel e gafanhoto e saído das profundezas do deserto. Um recluso social.
O curioso é que esta pergunta tem se repetido ao longo da história: quem você pensa que é? Ela foi feita para os recém saídos do anonimato, como o boiadeiro Amós, o nazareno Jesus, o recém-convertido Paulo de Tarso, o faquir maltrapilho Mahatma Gandhi, o pastor negro Martin Luther King e o seringueiro Chico Mendes. Por que será que é sempre do improvável que surgem as denúncias? Por que será que a voz que clama por justiça vem sempre do deserto? Um dos motivos, senão o principal é porque os cidadãos que têm voz, que têm prestígio e que têm autoridade para fazê-lo simplesmente não o fazem.
João Batista olha para o presidente, para o governador, para os fiscais do imposto de renda, para os que distribuem senhas nas filas do INAMPS, para os publicanos em geral, e diz: desta maneira não vai haver Natal não. Eu me recuso terminantemente a anunciá-lo em meio à situação que vive o povo. Se vocês não se pautarem por medidas justas e pelo rigor da justiça, o Natal para aqui. Se não houver Natal para nós, não haverá Natal para vocês também. O machado já está posto à raiz da árvore. Toda árvore que não produzir bons frutos, será cortada e lançada ao fogo.
Por fim, ele falou também às pessoas comuns, gente como a maioria de nós. Ele falou às multidões. Ao falar, focalizou grupos bastante distintos. Primeiro àqueles que recorriam a ele pela simples razão da novidade. Pessoas que queriam estar incluídas na mensagem da salvação somente por que estava na moda. Sem ter a menor consciência do que ela tratava e do que ela implicava. Raças de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira vindoura? Se querem o batismo do Reino, produzam frutos que mostrem o seu arrependimento.
Mas havia no meio da multidão, engrossando as suas fileira, um segundo grupo. Aqueles que se aproximavam da mensagem com ares meritórios. Como se a novidade os incluísse naturalmente. Afinal eram os baluartes da religiosidade, eram os guardiões da moral e dos bons costumes. Tenho como pai Abraão. Estou na igreja há 275 anos, já fui superintendente da Escola Dominical, sou ministro do louvor. João Batista os confronta: Deus pode fazer destas pedras melhores filhos de Abraão e adoradores mais fiéis que vocês todos juntos. Parece que ele está olhando para dentro das nossas igrejas de hoje. Parece que ele está de pé ali na porta.
Se tem um batismo por imersão, to dentro, se tem besuntamento de óleo, eu quero, mesmo sabendo que estas práticas não são cristãs. João Batista parece que está presente em um culto de cura e libertação. A estes, ele está dizendo: Se querem a cura, a libertação e salvação, que em linguagem bíblica querem dizer a mesma coisa, saiam da superstição, do sincretismo e do modismo inconsequente e se arrependam. Celebrem o Natal como novidade de vida e não apenas porque está na época. Valorizem essa graça de Deus como a nossa única esperança.
Parece que ele também foi a um culto solene. Um culto de crentes fervorosos. Aqueles que esperavam alcançar a salvação por algo que fizeram ou pelo têm feito. A estes a mensagem foi mais dura ainda. Não foram nem comparados a animais peçonhentos e sim classificados abaixo de objetos inanimados. A dura mensagem a eles foi: Nas mãos de Deus, esta pedra é melhor que você, faz mais do que você, contribui mais que você. A função que ela exerce, mesmo estando parada, é mais importante do que esta que você tanto se orgulha. Deixe de lado a falsa religiosidade, de buscar a salvação própria e comece a preparar um caminho melhor para que o Natal aconteça de fato e para que o povo possa ver a salvação.
Ao que parece, nem todos os presentes foram assim tão duramente afrontados. Dentre aqueles havia um pequeno grupo para quem foi dirigida uma mensagem bem mais afetuosa, sem, contudo, se enquadrar dentro da realidade e da necessidade do cotidiano. Estes que com sinceridade de coração, embora transbordantes de dúvidas sobre o como proceder diante da nova ordem que se anunciava, perguntaram: o que havemos pois de fazer? É justamente nesta hora que João evoca o mais preciso sentido do Natal. O dar-se como um presente que se dá a um amigo muito querido, a doar-se uma boa árvore que dá bons frutos, a fluir como uma fonte inesgotável de esperança. Quem tiver duas túnicas, divida com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo.
Por fim, queria pegar uma carona no que o poeta germânico Angelus Silesius disse em meados de 1650: se Jesus nascer mil vezes em Belém e nenhuma eu teu coração, você pode até fazer uma bela e fraterna festa no dia 25 de dezembro, mas perderá seu tempo. Porque estará muito longe de comemorar o verdadeiro Natal, e assim, Cristo nunca nascerá em ti.

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