Nãohá um documento na Bíblia cuja contemporaneidade seja tão fiel quanto a cartaque Paulo dirige aos cristãos de Roma. Não é por acaso que serviu de basedoutrinária para todos os movimentos autênticos de renovação da igreja ao longodos seus quase dois mil anos. Os movimentos que originaram a ReformaProtestante e a igreja Metodista não escaparam à regra. Foi ouvindo umcomentário da transformação pessoal de Lutero, inspirado por esta epístola, queWesley teve a experiência do Coração Aquecido. Então, qual seria a sua mística?O que ela contém de tão diferente que a faz ser tão única? Que circunstânciasda vida conduziram Paulo a este extraordinário vôo na órbita estratosférica dopensamento cristão?
Fazendoum rápido resumo histórico podemos perceber alguns aspectos daquela primitivacomunidade religiosa. Embora não se saiba quem iniciou a obra de evangelizaçãoem Roma, pode-se afirmar com certeza que não foi nenhum dos grandesevangelistas do primeiro século, nem Paulo (Rm 15.22), nem Pedro e, até onde sesabe, nenhum outro apóstolo. Esta igreja estava sediada na cidade de Roma, que naépoca era povoada por cerca de quarenta mil judeus descendentes dos chamados Libertos,(At 6,9) e possuía características marcantes. Uma delas era a sua grandedistância da igreja sede, Jerusalém, o que revelou a fraca influência da sedeem seus assuntos doutrinários e a administrativos. Podemos verificar que era compostatanto de judeus como de gentios convertidos à nova fé.
Adata da escrita desta carta é estimada por volta do ano57 a .D., coincidindo com oretorno dos judeus que foram expulsos de Roma, em 49, pelo imperador Cláudio.Os motivos da expulsão, segundo Suetônio, seriam os constantes tumultoscausados pelos judeus instigados por tal de Crestos. Se levarmos em consideração que as vogais E e I possuem pronúnciassemelhantes, concluiremos que tais desordens estariam relacionadas aodesenvolvimento da fé cristã entre os judeus em Roma (Leenhardt, Franz -Epístola aos Romanos p.10). Estes são dados fundamentais para a compreensãodeste tratado de teologia e fé.
Adata da escrita desta carta é estimada por volta do ano
Oinquieto ambiente a que Paulo se dirige era composto por cristãos de origemgentílica, que haviam permanecido em Roma e adaptado a igreja às suas doutrinase práticas, e por judeus cristãos que retornavam vindicando um retrocesso àordem tradicional judaizante, a qual achavam verdadeira e apropriada. Nadadiferente do que a velha disputa entre tradição e modernidade. Era de seesperar que o apóstolo, nesta carta, compusesse um extenso tratado deeclesiologia, afirmando ser Jerusalém a sede da fé Cristã, autenticando a autoridadedo Colégio dos Doze e insistindo no dever de se permanecer fiel à féapostólica. Nada disso, pelo contrário, Paulo tenta resolver a questão a partirdos elementos que os romanos dispunham. Revelando-lhes a realidade mais profundae misteriosa da Igreja, o apóstolo quer mostrar-lhes que todos os crentes emCristo estão também debaixo das promessas feitas a Abraão, e que sãoimediatamente incorporados ao povo de Deus pela fé e pelo batismo. Este é ocerne da mensagem de todo o seu ministério: A justificação pela fé.
Pauloconhecia muito pouco a comunidade a quem se dirige, a não ser pelas advertênciasque faz nos capítulos XIV, XV e XVI, não parece ter idéias claras do que sepassa ali, mas ele precisa fazer desta igreja a sua sólida base para as viagensmissionárias que pretende fazer ao ocidente. É nesta carta que, desvinculado dasquestões de interesse local, como vemos em Corinto, Paulo expõe toda a problemáticada ação missionária: quanto mais a Igreja se expande, maior é a ameaça a suaunidade. E aqui se levanta uma séria questão: poderia a Igreja de Roma fazerparte do Corpo de Cristo quando estava totalmente desvinculada da Igreja deJerusalém? Passando por cima das disputas internas, Paulo afirmacategoricamente que o poder da Lei pode se deteriorar ou mesmo enfraquecer coma distância, o poder de Cristo que nos justifica pela fé, jamais. Paulo vaimais longe ao dizer que o ser humano é totalmente incapaz de enxergar a suaprópria miséria. É preciso que este se conheça para que renuncie ao inútilesforço de justificar-se através das obras que pratica ou das doutrinas queengendra. Sua justificação se dá exclusivamente pela fé, e sob este aspecto nãohá neófito nem decano, nem servo nem livre, nem homem nem mulher, nem néscio enem culto, nem judeu nem grego, nem próximo e nem distante.
ParaPaulo, Roma é a igreja base ideal para uma missão totalmente nova, que em nadase parece com as missões anteriores. Não que estas não houvessem sido coroadasde êxito, mas já haviam ficado para trás. E é para este novo desafio que Paulo incitaos cristãos de Roma a deixarem de lado as questões doutrinárias menores, eobjetivar o foco principal, que é a expansão do evangelho. Para tanto, é importanteque aquela igreja não seja dividida por problemas e questões pessoais. Nadaalém de uma regra simples lhes é sugerida: quem procede de certa maneira, nãoescandalize quem assim não procede, e aquele que tem determinada atitude, nãocondene quem não a tem, pois ambos são igualmente de Cristo e Cristo de Deus.Não foi por outro motivo que Wesley tomou para si uma regra de Santo Agostinhoque propôs: Unidade no essencial. Liberdade no secundário. E sobre todas ascoisas, amor.
O curiosoé que para nós, cristão de hoje, também não é o pecado pela unidade nas coisasessenciais que dificulta o relacionamento entre as diversas denominações. Asigrejas cristãs, como num todo, tem resistido bem às investidas de grandes pensadoresateus, como H.G. Wells, Nietzsche, Bernard Shaw e Voltaire, e rechaçadooportunistas que, de tempos em tempos, tem tentado, com seus “achadosevangelhos perdidos” atingir a essência da nossa fé. Não pecamos por isso. Pecamosprimeiramente por querer que o secundário particular de cada um, prevaleçasobre os demais. Pecamos em tentar impor a outros particularidades doutrináriase manifestações de fé, que embora sejam importante para nós, nada acrescenta afé de outros. Mas pecamos muito mais quando passivamente permitimos quepráticas e doutrinas secundárias que são próprias de outras alguns grupos, serevelem em nosso meio maquiadas como essenciais. Não sei se “maquiadas oumacaqueadas”, como dizia o rev. Juracy Sias, uma vez que não temos nem cacoete para procedermos assim, elecompleta.
Será queainda temos alguma dúvida que, sendo como sempre fomos, Cristo nos aceita como seusdiscípulos? A crueza das palavras de Paulo, que foram bastante aos romanos, nãoseriam eficazes também hoje? Vamos continuar a ignorá-las? Meus irmãos, peço que tomem cuidado com as pessoas queprovocam divisões, que atrapalham os outros na fé e que vão contra oensinamento que vocês receberam. Afastem-se dessas pessoas porque os que fazemessas coisas não estão servindo a Cristo, o nosso Senhor, mas a si mesmos. Pormeio de conversa macia e com bajulação, eles enganam o coração das pessoassimples (Rm 16.17-18 NTLH). Este era o problema que Paulo detectouna Igreja de Roma mesmo estando distante. Aliás, não é preciso ter a percepçãode Paulo para perceber quando uma prática estranha é pela força enxertada em outratradição, nem difícil exagerar os elementos estranhos ao culto, que estão prevalecendo,em detrimento de outros mais incisivos e mais consistentes com a fé queabraçamos. O que perece ser difícil pára alguns é perceber quando a conversamole, carregada de sentimentalismo, sobrepuja ou mesmo aniquila a razão. Atéquando vamos continuar jogando no ralo a doutrina que aprendemos que se provouser tão beneficamente inovadora, para colhermos apenas lisonja, engano,conversa mole e bajulação?
Todo estecaos doutrinário só faz nos levar para longe da principal tarefa da igreja, sera sólida base missionária para a salvação do mundo. Precisamos urgentemente voltara ser esta base sólida para que o plano de Deus seja uma realidade através denós, ao custo de ficarmos de fora, apenas ouvindo as pedras clamarem. Podemos continuarnos iludindo, mas isso não nos fará inocentes. Conhecemos bem a vontade do únicoPastor. Sabemos que ele vai chamar todas as suas ovelhas de uma só vez, a umasó voz, para que, cada uma, segundo o seu curral, se reúna no único, viável epossível rebanho. Resta-nos responder apenas a última questão: será que completamentedescaracterizados de uma tradição e totalmente desprovidos de identidade, asmesmas que nos levaram um dia aos pés do senhorio de Cristo, estaremos ainda incluídosneste rebanho?
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