Tesouro e coração

Porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração. Mt 6,2 

Ícone de Salomão em monastério russo
Dificilmente encontraremos duas palavras que sejam tão intimamente ligadas e cuja associação nos parece ser tão difícil. Foi preciso que Jesus chamasse a atenção para o óbvio, para que nos déssemos conta do quanto as palavras tesouro e coração estão próximas. Mesmo após termos sido alertados, não atentamos ainda que o nosso coração sempre está colocado em um tesouro que nós escolhemos para ser o nosso tesouro.


Nada mais lógico, porque mesmo diante de um enorme tesouro, se o nosso coração não está nele, por mais fabuloso que seja, este não é o nosso tesouro. A tradição bíblica possui uma variada série de interpretações para cada uma destas palavras, mas ainda que sejam muitas, não são de forma alguma excludentes.
Podemos observar que os textos bíblicos evocam a palavra tesouro quando se referem aos objetos do templo de Jerusalém roubados por Nabucodonosor. Usam o mesmo termo para identificar as pessoas que foram deportadas para a Babilônia. A literatura sapiencial é exaustiva em afirmar que a sabedoria é o verdadeiro tesouro, e que devemos receber a correção de Deus como um tesouro e não como um fardo. Por sua vez, os profetas pregam que o grande tesouro que Israel possui e inexplicavelmente despreza, é o amor gratuito de Deus demonstrado pela providência abundante para com o seu povo, sem o que nada seriam. Jesus, na sua pregação nos ensina a procurar o Reino como um tesouro que está timidamente escondido, mas que ao ser revelado torna-se tudo o que existe de importante.
Não é diferente com a palavra coração. Ao mesmo tempo em que é considerado a fonte dos maus pensamentos, do intelecto, dos sentimentos e da vontade, é também o receptáculo onde o amor de Deus é derramado. As ações que mais nos fazem semelhantes a Deus que são dar à luz, conceber e criar é algo que começa a ser formado no íntimo do coração, como de igual forma fomos concebidos no coração de Deus. O ato extremo de Deus, que é a ressurreição de Cristo é algo que tem seu início justamente no coração das mulheres que o acompanhavam. Seria bom se a associação fosse sempre neste nível, mais ainda que estas palavras estejam predestinadas a promover a união existe uma advertência clara de Jesus nos alertando do perigo do antagonismo a que elas podem nos expor. Um pequeno descuido pode nos fazer transpor a ponte entre céus e terra, entre luz e trevas, entre Deus e as riquezas e entre a confiança e a ansiedade. Especificamente sobre as associações perigosas envolvendo tesouro e coração que o evangelista Mateus, ao longo do capítulo 6, nos convida a refletir a cerca das palavras de Jesus.
A primeira advertência fala do perigo de colocarmos o nosso coração no aval da opinião pública. Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes aprovados por eles. Exercer a justiça, no pensamento hebraico da época, era praticar obras que tornassem o homem justo diante de Deus, sendo as principais a esmola, a oração e o jejum. É bom que se note logo de saída que Jesus não despreza a necessidade de se observar esta forma de justiça. Tais práticas eram no passado e continuam sendo hoje um sinal claro da ação do Espírito de Deus, são mais do que simplesmente recomendadas, constituíram-se em verdadeiros hábitos do seu cotidiano. Em seu ministério, segundo abundantes relatos dos evangelistas, tanto a oração, como o jejum e as esmolas tiveram posição destacada porque elas são as respostas mais imediatas que podemos dar ao amor de Deus que nos constrange a amar sem medida.
A ressalva feita por Jesus é para que estes atos sejam praticados na intimidade da presença de Deus e não de forma pública, de modo a angariar prestígio, como ele mesmo fala: a fim de sermos vistos pelos homens. Também é importante que se diga que não há da parte de Jesus nenhuma condenação tácita aos que não seguem na íntegra esta recomendação. Ainda que seja para agradar a opinião pública, a esmola, o jejum e a oração têm o seu valor assegurado. O que diferencia as duas tendências é a fonte se onde se origina a recompensa. Quem faz justiça para ser admirado pelos homens, receberá deles o reconhecimento, quem pratica a justiça em segredo, do próprio Deus.
Seria uma questão de simples escolha se as implicações fossem apenas estas. Mas na verdade, a necessidade de reconhecimento é um mal que indistintamente todos nós carregamos conosco. Uns de uma forma acentuada e outros de forma sutil, porém, é fato que todos nós queremos ver os nossos esforços serem reconhecidos, e de certa forma recompensados. É um engano imaginar que Jesus não dava atenção à opinião pública. Em um momento crucial de seu ministério ele formulou uma pesquisa entre os que o seguiam com o intuito de avaliar a sua popularidade e a primeira pergunta foi: O que dizem os homens a meu respeito? E a segunda, imediatamente seguinte foi: E vocês, quem dizem que eu sou? Isto mostra o quanto é importante a avaliação que as pessoas fazem de nós tanto as que nos são próximas quanto as que estão distantes.
Mas é preciso entender que, muito embora haja necessidade de que as pessoas aprovem a nossa conduta de cristãos e, desta forma, sejam influenciados por ela, não nos é autorizado comprar esta simpatia com atitudes populistas, ou ainda, que esta aprovação seja determinante na vida cristã. Isto seria um flagrante atentado ao nosso coração, que teria que abrir mão de encontrar a realização pessoal nos próprios tesouros, para buscá-la na questionável simpatia dos homens. Quando colocamos o nosso coração no tesouro do Reino, a opinião pública fica relevada ao menor grau de importância, uma vez que o objetivo é a satisfação que vem pela certeza do cumprimento do compromisso firmado com Deus. A proposta de Jesus tem por objetivo agradar primeiramente a Deus e consequentemente ao nosso coração, ainda que os homens não façam coro nas opiniões que possam formular a nosso respeito.
A primeira advertência foi feita como recomendação, mas a segunda tem força de mandamento. Agora Jesus fala do perigo de colocarmos o nosso coração no poder das riquezas: Não podeis servir a Deus e a Mamom. Mamom é a palavra aramaica para designar a entidade espiritual que supostamente governava as finanças no mundo. Uma espécie de Wall Street da época. Com estas palavras Jesus ressalta o conflito entre as posições, porque ele não diz ser difícil ou mesmo proibido servir a dois senhores. Diz que é impossível. Esta advertência exige uma decisão. A quem seguiremos Deus ou Mamom, Deus ou riquezas?
É comum ouvirmos hoje nas igrejas apologias à riqueza. Algumas curiosamente baseadas em estatísticas bíblicas, das quais a mais pitoresca encontrei em um site de uma igreja tradicional que diz: No Novo Testamento existem 215 versículos que falam a respeito de fé, 218 versículos que falam de salvação e 2084 versículos a respeito de finanças e dinheiro. Em outras palavras, o Novo Testamento fala dez vezes mais de dinheiro do que de salvação. As pessoas concordam que a salvação e um tópico muito importante, mas, das 28 parábolas de Jesus 16 falam sobre dinheiro. Não precisamos ler o restante do texto para identificarmos qual é a proposta, mas a verdade nua e crua, é que quando Jesus contrapôs as duas tendências exigiu explicitamente uma tomada de posição. Não há possibilidade de acordos, conchavos ou meias medidas, é uma ou outra. Ou deixamos de confiar em Deus nos apegamos à segurança das riquezas ou servimos a Deus desistindo de uma vez por todas da solidez que o acúmulo de bens anuncia. Pelo menos é isso que pode entender quando nos manda deixar de acumular tesouros na terra para, em contrapartida, acumulá-los nos céu?
Aqui Jesus está falando a respeito do coração e da tendência deste em seguir o caminho que leva aos nossos interesses e já que o acúmulo de riquezas é a realidade de pouquíssimos de nós, o peso desta proposta deve recair sobre a escolha entre o Deus de Jesus Cristo e o deus Mamom, que na realidade atual é quem dita os apelos e exigências do mundo. Se somente isso já é uma tarefa árdua para nós individualmente, imaginemos o quanto não é complicado educar filhos nos princípios altruístas, para lançá-los em um mundo essencialmente egoísta. O apelo ao sucesso, ao consumo e ao acúmulo de bens, é mais que um desejo corriqueiro, tomou forma de necessidade indispensável. E é justamente este o desafio proposto por Jesus, colocar o coração na fragilidade da fé, para através dela desafiar e desmascarar a insustentável, porém visível confiança que a riqueza propicia.
Mas tanto a recomendação como o mandamento não nos prepararam para o que viria em seguida. Desta vez, além de retirar a opção da escolha, Jesus não determina uma tomada de posição entre duas realidades. Agora ele fala sobre aquilo que é mais íntimo e mais profundamente oculto no coração. Fala do nosso tesouro mais escondido e do nosso segredo mais bem guardado. Fala daquele algo que nos faz ser realmente humanos, os nossos sonhos. A Bíblia, mesmo sendo reconhecidamente a Palavra de Deus, pode paralelamente ser considerada uma coletânea de sonhos. É a história de um patriarca que não tinha filhos, mas sonhava com uma descendência inumerável. Um salmista orava para que Deus o levasse para descansar em pastos verdejantes e o conduzisse a águas tranqüilas. Um profeta anunciava uma forma de vida tão simples que todo o mundo seria guiado por uma criança. E o próprio Jesus, que nos ensina a pedir pelas necessidades básicas enquanto esperamos chegada do grande banquete.
A Bíblia nos mostra que apesar dos avanços das ciências e do progresso tecnológico sonhamos os mesmos sonhos que Moisés e Davi. O quanto é importante sonhar mesmo quando se tem pela frente um inimigo poderosíssimo ou de um mar de dificuldades. Este trecho é diferente dos anteriores, agora a mesma palavra que nos convida a sonhar, diz que não devemos ficar ansiosos com os nossos sonhos. Então, como é que depois ouvirmos tantas promessas vamos simplesmente aceitar estas palavras? Será que existe uma maneira de se viver sonhando sem estar ansioso para ver satisfeito o desejo do coração?
O fator complicador é que Jesus não veio para contradizer a mensagem central da Bíblia, ele não quer retirar de nossos corações a vontade de alcançarmos os nossos tesouros. Muito pelo contrário, o que ele pretende é nos desafiar a sonhar sonhos para muito além da mesquinhez do nosso pequeno mundinho, e do resultado do jogo entre possibilidade e probabilidade. Quando nos encontramos na terrível angústia que é a provisão das necessidades básicas, ele nos propõe: Olhem as aves do céu, não semeiam nem de colhem, e nem ajunta, em celeiros, que chances de sobrevivência elas têm? Contudo, o vosso Pai celeste as alimenta. Agora, quando o assunto extrapola a necessidade vital e trata do mínimo indispensável para se viver uma vida digna, Jesus vai além do inimaginável: Olhem os lírios do campo, não fiam nem tecem. Contudo eu vos digo que nem Salomão, em seu apogeu, se vestiu como qualquer um deles. Se Deus veste assim uma erva do campo que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé.
Por mais que julguemos alegóricas que estas palavras, que argumento temos contra os fatos? Não é assim que funciona o sustento no que se refere aos pássaros e as vestimentas quantos aos lírios? Estas despretensiosas comparações querem nos dizer, deixem de sonhar com o que foge ao controle de vocês e com o que só causa ansiedade. Se querem sonhar alto, sonhem com o Reino. O Reino é a plenitude de tudo o que se pode sonhar, acrescido daquilo que ninguém se faz idéia, pois jamais penetrou em coração humano algum o que Deus tem guardado. Não foi a toa que Jesus associou cada aspecto da vida à realidade do Reino. Ainda antes do início do seu ministério, transforma água em vinho, para que a festa não acabe. Na oração mais simples invoca a presença do Reino. A primeira missão que deu aos discípulos foi “anunciem o Reino”.
Por que Jesus foi tão enfático e despendeu tanto tempo e energia, e mais, por que se arriscou tanto para colocar no coração das pessoas o sonho do Reino? Porque para ele o Reino era tudo. Porque para ele, o reino é como é como o trigo que faz a massa, é como um grão de mostarda que a tempera, é como fermento que a faz crescer.  Para ele, o reino é o único e verdadeiro tesouro escondido no campo. É a única razão para vender tudo que se tem, para se deixar tudo para trás, se desligar do pai e da mãe, para deixar que os mortos enterrem seus mortos.
Só existe uma maneira de conciliarmos tesouro e coração de forma a transformarmos a nossa angústia em esperança, quando alinhamos os nossos tesouros na mesma órbita que o coração de Cristo alinhou os sonhos de Deus, seu Pai, para conosco. Muito antes de nascermos, Deus já sabia o que seria bom para nós, muito antes que tivéssemos a capacidade de sonhar, já éramos tesouro no coração de Deus.

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