Samaritano, o Bom Vizinho

O lugar comum nas meditações queabordam a necessidade da ação social é a parábola do bom samaritano. Muitoembora a Bíblia fale insistentemente, e de várias maneiras, da nossaresponsabilidade para com os pobres, o samaritano foi eleito como o símbolo máximoda nossa missão junto aos menos favorecidos. No entanto, focar esta parábolaunicamente sob este aspecto é perder a dimensão essencial e mais específica dorelacionamento do cristão com o mundo à sua volta. Para isso, é preciso que seobserve que os personagens envolvidos: o homem assaltado, o samaritano, o levitae o sacerdote, pertencem à mesma classe social, o que desfigura, neste casoespecífico, o conceito primário de ação social. O relacionamento que Jesusestabelece na parábola é entre pares, pessoas de nível social semelhante, e quefinanceiramente não carecem umas das outras, no tocante à sua sobrevivência.Mesmo não invalidando o já consagrado consenso sobre a ação social, este é umaspecto que exige da parábola enfoques completamente diferentes e por que nãodizer, mais próximos de nós.

Para Jesus, a idéia do próximo nãoestá moldada pelo desnível, pela relação de cima para baixo, onde um dos ladossó tem a oferecer e o outro somente a receber, e sim em pessoas parecidasconosco com as quais nos deparamos a toda hora. Traduzido para um portuguêsmais atual, esta parábola deveria se chamar a “O Bom Vizinho”, porque a idéiaque atualmente temos de vizinho é a que mais se aproxima do sentido que Jesusquis dar à palavra próximo.
Vizinho, é aquela palavra mágica queecoa no meio de uma noite conturbada pela dor de dente de um filho, ou quandofalta açúcar na hora em que o comércio está fechado. Vizinho, é aquele com quemfrequentemente nos encontramos nas encruzilhadas da vida, local onde osproblemas nos assaltam. Esta dimensão horizontal está nas entrelinhas da perguntaque Jesus fez ao legista: Quem mais pareceu ser o vizinho mais próximo do homemque caiu nas mãos dos salteadores?
A parábola, embora breve, é pontilhadade detalhes. Ela surge de um diálogo acerca dos mandamentos, que Jesus travou comum homem, cuja especialidade era justamente a interpretação deles. Jesus não fazopção pelas muitas possibilidades de argumentação, o que resultaria em umdebate inútil. Resolve contar uma história, evitando de vez os controversos pontosde vista. Ao confrontar o texto da lei com um fato do cotidiano, Jesus minimizaa difícil questão sobre o que realmente é amar ao próximo, exigida no segundomaior mandamento, sob um único ponto: Quem é o próximo de quem?
Os olhos da modernidade detectamsinais marcantes de insensibilidade de alguns dos envolvidos. Por que o pastorou o padre não deram assistência devida ao moribundo? Por que o homem que viveinvestigando a lei e pregando a boa conduta não foi capaz de socorrê-lo? Maisuma vez a parábola dissipa estas dúvidas. Quando diz que o homem assaltado foideixado semimorto, revela os motivos que foram suficientes para que nenhum dosdois o tocasse. Qualquer contato tornaria impuro qualquer rito oficiado pelosacerdote, ou suspeito qualquer parecer do levita. As leis judaicas decontaminação eram bastante severas nesta situação em especial. Dentrodo rigor da lei, ambos estavam certíssimos e agiram como se podia esperar queagissem. Era um fato tão comum que nem mesmo Jesus ousa denunciá-los, pelocontrário. Nenhuma crítica é direta ou indiretamente dirigida a eles. Suaatitude só é condenada na leitura feita por nós mesmos.
A citação da passagem de ambos pelolocal é uma simples contextualização da cena no dia a dia, porque se assim nãofosse, o legista estaria municiado de forte argumentação para usá-la contraJesus. Puxando-lhe o tapete, mudando o rumo da prosa e contrariando-lhe qualquerperspectiva, Jesus não o questiona sobre quem está ou não certo. Jesus não querque ele responda quem fez o certo e sim quem fez o bem. Esta é uma lição queserve para orientar qualquer tipo de relacionamento. O ensino é claro emboraseja controverso, entre o certo e o bem, faça o bem.
Neste caso o certo não importa tanto.Maneira de ser, Jesus mostrou várias vezes durante o seu ministério. Quandopergunta ao cego o que quer que seja feito por ele, não está se mostrandoincauto ou se fazendo de engraçado. Jesus não quer fazer por aquele homem o quena sua concepção e na lógica acha certo, quer saber dele, que aparentemente écarente de tudo, qual o bem que mais deseja. Ou, invertendo a direção, qual omal que mais o atormenta.
Muitas vezes na nossa arrogância, eaí as obras de ação social vem a calhar, tentamos impor aos necessitados o tipode ajuda que nos parece conveniente, sem atentarmos para as suas reaisnecessidades e desejos. Jesus nos mostrou que as nossas atitudes devem serresposta aos anseios e nunca uma imposição da nossa pré-concepção. Um exercíciobastante difícil para nós cristãos que estamos sempre assumindo o trono dosdonos da verdade.
Outra lição que nos dá esta paráboladiz respeito aos julgamentos prematuros. A idéia consensual no relacionamentoentre pessoas do mesmo nível sócio-econômico é de que não necessitamos tanto unsdos outros quanto os mais carentes necessitam de nós. Existe por trás daamizade o compromisso de nos mostrarmos fortes o suficiente para não revelarmosas nossas carências, e o de imaginarmos que os nossos amigos têm dentro de si acapacidade de resolver sozinhos as suas questões. A sentença é sempre a mesma: Eles não precisam. Isso vale também paraa igreja quando deixamos de orar pelos outros, porque na aparência tudo vaibem. Quando nos desviamos da responsabilidade de suportar as cargas uns dosoutros, quando deixamos de chorar com os que choram e de se alegrar com os quese alegram, perdemos junto o conceito que o próprio Jesus fez de amizade: Eu chamo vocês de amigos porque o amigosabe o que o outro faz. Além do que, este é justamente o tipo do julgamentocondenado por Jesus. Sua ordem é vigiar e orar e não julgar aparências. Nosversos do hino 472 do Hinário Evangélico se aprende que mesmo um coraçãopequeno pode abrigar todo um enorme temporal. As aparências muito mais do queenganar elas traem, e nos carregam junto em sua traição.
Para encerrar, uma especulação.Independentemente de o assaltado supostamente ter tentado retribuir ouagradecer o samaritano, fica com ele é a certeza de que Deus usa, preferencialmente,os meios menos dignos para nos alcançar com a sua graça. Fica com o samaritano aalegria de um coração jubiloso pela honra de ter sido usado como canal dabênção de Deus. Nós já recebemos inúmeras bênçãos que nos vieram de onde menosesperamos. Mas e o nosso vizinho do lado? Será que não precisamos vigiar mais eorar mais, para quando chegar a nossa vez, podermos responder positivamente aodesafio de Jesus de ser um bom vizinho, um samaritano na vida do próximo? 

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