A tristeza que vem de Deus

Não me arrependo de ter escrito aquela carta, embora vocês tenham ficado tristes por causa dela. Quando soube que a carta os deixou tristes por algum tempo, eu poderia ter ficado arrependido. Mas agora estou alegre, não porque vocês ficaram tristes, mas porque aquela tristeza fez com que vocês se arrependessem. Leia II Co 7,8-10
Tristeza de  Édouard  Manet (1832-1883)
Se existe um mistério que ninguém conseguiu desvendar desde que o ser humano começou a andar pela terra, é como lidar com a tristeza. Por mais que alguém tente se iludir invocando frases de efeito ou recitando mensagens otimistas, a nossa realidade diante da tristeza é algo bem mais sério e bem mais profundo do que o refrão da música que eu, quando adolescente cantava: “quem tem Jesus vive sempre sorrindo mesmo quando não dá”.


A tristeza é um fato universal e ela está presente na vida de todo mundo. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus. A separação de Deus, a perda e o sofrimento são as causas principais da tristeza que atingem a todos indistintamente.
A tristeza não escolhe classe social, raça, sexo, nacionalidade, muito menos credo religioso. É algo que nivela a todos os seres humanos, todos estamos suscetíveis a ela. Por isso, a aquela antiga sextilha de Francisco Octaviano, que condena o estado de inanição da pessoa que passou pela vida em branca nuvem, embora seja muito bela, é praticamente um tiro n’água. Tenho cá minhas dúvidas se o poeta realmente conheceu alguém que, na vida, simplesmente tenha tão somente adormecido em plácido repouso, sem nunca ter experimentado o frio da desgraça ou tenha vivido sem sentir qualquer tipo de tristeza ou sofrimento.
Contudo, se a tristeza é uma realidade palpável, a sua negação ou a tentativa de fazer de conta que ela não existe são posturas igualmente comuns nos dias de hoje. Isso pode ser observado em praticamente todos os aspectos da vida humana. E eu não me refiro apenas ao fato de que aquele amontoado de túmulos dos antigos cemitérios terem sido transformados em belos e exuberantes jardins de saudade, e nem também à habilidade dos maquiadores, que agora conseguem dar a um defunto uma aparência melhor até do que a que tinham em vida. Faloobjetivamente nas manifestações mais simples, das coisas mais comuns da nossa vida como a música ou a poesia, sejam elas religiosas ou populares. Os compositores que no passado ousavam a refletir sobre a vida, diziam que a música e a poesia eram os espelhos da alma, espelhos que se propunham a mostrar a realidade que estava oculta no mais profundo esconderijo do coração.
Pode até ser que no passado as coisas fossem mesmo assim. Anteriormente cantava-se o lamento de um amor perdido, inspirado na visão da pessoa cabisbaixa, pensativa, com os olhos fitos no horizonte. Aquilo que era chamado de dor de cotovelo. Realmente o cotovelo era a parte do corpo que sofria a maior pressão, pelo fato de servir de apoio às intermináveis horas de questionamentos. Mas o que existe hoje é um tremendo esforço para disfarçar esses sentimentos com indiferença. Já quase não existem canções que lamentam amores perdidos, e as que ainda insistem em sobreviver são chamadas de bregas. Hoje em dia o que prevalece é a moda do já coloquei outro em seu lugar.
Na igreja não é diferente, nós não fazemos de outro modo. Até mesmo os hinos que nós cantávamos, principalmente no período da Quaresma, como “Eu tenho de Jesus saudade”, "Sou forasteiro aqui”, são completamente diferentes dos cantados hoje. Já não se invoca mais a contrição que leva à reflexão que o momento exige. A doutrina triunfalista sobre tudo e sobre todos é o fator que conta. Cantar a vitória sobre os infortúnios, e até mesmo sobre a morte é quase que uma obrigação. Isso é algo que atinge de forma drástica os novos convertidos e aqueles que ainda não construíram uma sólida base de fé na ressurreição. O atrativo da fé cristã não é mais o Reino vindouro, e a sua entrada não se faz mais pela tristeza e pelo arrependimento. O que atrai multidões às igrejas é prosperidade, cura e sucesso pessoal, e o que as mantém dentro é a troca e a retribuição.
É bem sabido que hoje olhamos a paixão de Cristo através dos olhos da ressurreição, mas é certo também que ainda não estamos na plenitude do Reino de Deus. Para nós o Reino de Deus está aí, mas ainda não é pleno, como a Bíblia diz que um dia será. Ele existe, mas ainda não é pleno. Um professor do Seminário, rev. Rubem Alves, diria que estamos morando na saudade, que é aquele lugar que fica entre o amor e a ausência. Como eu disse, os antigos cantavam “eu tenho de Jesus saudades”, e temos mesmo. Saudade da sua presença física em nosso meio, da sua presença transformadora, do seu maravilhoso olhar.
Para os evangélicos, tornou-se uma questão de fé omitir a tristeza, não somente para que a vida espelhe um triunfo interminável, mas também para se diferenciarem dos irmãos católicos, que, principalmente durante a Quaresma, guardam o luto. É bom saber que o costume de usar somente a cruz vazia, não acrescenta absolutamente nada ao currículo de bons cristãos. A tristeza está aí, e quando ela chega, e ela chega mesmo. Este é o título do livro de Stanley Jones, que não pode deixar de ser lido, muito menos divulgado: Quando a Tristeza Chega. Pois é, quando ela chega, todos nós, mesmo os que fazem questão absoluta de negá-la, não desejamos outra coisa senão suplicar aquilo que canta o samba popular: “Tristeza, por favor, vá embora”.
Contudo, há que se diferenciar os dois modos de perceber a tristeza: quando ela é usada para os propósitos do mundo, e eu uso a palavra mundo para rotular as coisas, que no dizer de Paulo, concorrem para nos separar do amor de Deus, e quando ela é usada para os desígnios de Deus. O contraste é bastante significativo porque uma mesma situação, dependendo como é percebida, pode nos conduzir à alegria da salvação ou à triste realidade da morte. Talvez a preocupação de Paulo, quando escreveu esse importante texto da Carta aos Coríntios, não fosse tanto mostrar as diferentes origens da tristeza, mas sim mostrar como que atitudes devemos tomar quando ela chega.
Olhemos mais uma vez o que diz o nosso texto base: Não me arrependo de ter escrito aquela carta, embora vocês tenham ficado tristes por causa dela. Quando soube que a carta os deixou tristes por algum tempo, eu poderia ter ficado arrependido. Mas agora estou alegre, não porque vocês ficaram tristes, mas porque aquela tristeza fez com que vocês se arrependessem. Aquela tristeza foi usada por Deus, e assim nós não causamos nenhum mal a vocês. Pois a tristeza que é usada por Deus produz o arrependimento que leva à salvação; e nisso não há motivo para alguém ficar triste. Mas as tristezas deste mundo produzem a morte.
Paulo afirma com todas as letras que a tristeza, seja ela de que origem for, deve sempre nos induzir à reflexão que leva a uma transformação, e não ao conformismo ou ao ativismo desesperado, que causa invariavelmente a morte. Dizia um pastor em seu sermão dominical: “Parece que o povo americano ainda não chorou a tristeza do 11 de setembro, e que a sua única preocupação é a retaliação, a vingança. Diferentemente do espanhol, que, mesmo ferido, repudiou todas as faces do terrorismo”. A tristeza de qualquer origem, quando os olhos estão fitos em Deus, induz à contrição e ao arrependimento, e estes, predestinadamente à salvação de todos: ofensores e ofendidos, terroristas e aterrorizados, cristãos e muçulmanos.
Que estamos no vale escuro é um consenso. Para muitos, o nosso tempo é o vale mais escuro pelo qual a humanidade já trilhou. Esta crença, aliada àquela que diz que somos a última geração sobre a terra, são as grandes prepotências do cristão de hoje. Contudo, é imperativo saber que a segurança neste vale escuro não está nos condomínios fechados, nos carros blindados, nos guarda-costas, na segurança redobrada dos aeroportos. Está no que os gregos chamavam de metanoia, na mudança de mente, no arrependimento, no voltar atrás, no começar de novo. Isaías, no capítulo primeiro de seu livro, desenha um panorama de seu tempo impressionantemente semelhante ao atual. O curioso é que parece que ele fala diretamente à igreja de hoje. Não é multiplicando o número de cultos, de louvores e de orações que vamos resolver a questão da insegurança, e sim, incluindo a todos debaixo da segurança que queremos para nós mesmos.
Mas não pode ser uma atitude da boa vontade apenas, para que venha a obter eficácia, se faz necessário, antes de tudo, reflexão e arrependimento. ”Se forem humildes e me obedecerem, vocês comerão das coisas boas que a terra produz. Mas, se forem rebeldes e desobedientes, serão mortos na guerra. Eu, o Senhor, falei.” Is 1,19-20. Parece que ainda não aprendemos a direcionar corretamente as nossas tristezas. Mesmo sabedores de que este caminho invariavelmente nos levará à morte, estamos caminhando a passos largos para o inferno, e nos enganando na tentativa vã de salvarmos a nós, nossos familiares, e alguns poucos que nos são próximos. Precisamos nos lembrar que para a salvação da igreja de Corinto, que é o assunto do nosso texto bíblico, foi necessário que indistintamente todos se arrependessem, e que igualmente cada um fizesse das suas tristezas uma alavanca para mudança.
Se Jesus, no Getsêmani, tivesse feito da sua tristeza motivo de lamento profundo ou tivesse sucumbido à tentação de convocar doze legiões de anjos para combater o combate que era exclusivamente seu, teria mandado a tristeza embora, teria resolvido de imediato a questão da sua segurança e dos seus discípulos, teria dado a humanidade uma prova irrefutável e definitiva da sua filiação divina, teria consumado em sobre si todo o poder de Deus, mas não teria salvado o mundo. Nós fomos salvos porque Jesus transformou a sua tristeza em remissão de pecados, a sua dor em libertação. Paulo, inspirado no profeta Joel, descreve os momentos de aflição de Jesus com detalhes precisos. Ele se lembra de Jesus sendo acoitado e diz: onde está morte a tua vitória? Tem a visão de Jesus sendo pendurado na cruz, e pergunta: onde está inferno o teu poder de destruição?Finalmente, quando Jesus morre, Paulo solta o grito definitivo de libertação: tragada foi a morte pela vitória.
Tudo aquilo que pareceu ser a derrota de Deus, foi na realidade a sua grande vitória sobre a morte. Não sobre a morte de qualquer um, mas sobre a nossa morte. Foi a hora o poder do mal reuniu todas as suas forças, e as exauriu totalmente na tentativa de derrotar o Cordeiro de Deus, de faze-lo, sem conseguir, negar o sofrimento ou buscar alternativa diante da tristeza.
Não sei que motivos levaram Vinícius de Moraes e Baden Powell a compor um samba dedicado à tristeza. Mas com certeza sei que eles entenderam que a tristeza, diferentemente de um mal em si, é também uma forma de bênção. Uma forma estranha, por certo, mas foi exatamente por este motivo que deram ao seu samba o nome de Samba da Bênção, em que eles cantavam:
É melhor ser alegre que ser triste.
Alegria é a melhor coisa que existe.
É assim como a luz no coração.
Mas pra fazer um samba com beleza (samba representa aqui qualquer expressão de sentimento)
É preciso um bocado de tristeza,
É preciso um bocado de tristeza,
Senão não se faz um samba, não. 
Fazer samba não é contar piada.
Quem faz samba assim não é de nada.
O bom samba é uma forma de oração.
Porque o samba é a tristeza que balança,
E a tristeza tem sempre uma esperança,
E a tristeza tem sempre uma esperança,
De um dia não ser mais triste não.                              
E aqui estamos nós nesse domingo de Páscoa, sendo embalados pela tristeza de nos lembrarmos de tudo aquilo que o nosso querido salvador teve que passar para nos salvar, e a alegria de cantar Cristo já ressuscitou. E assim é a nossa vida, ora tristes pela dor da separação, das doenças e dos males que nos atingem a todos, ora alegres contando as bênçãos que o amor de Deus nos propicia. Mas sabemos que a tristeza não tem a última palavra, que ela pode até tentar, mas nunca poderá nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus. Pelo contrário: quando estamos tristes é aí que perseveramos mais na sua palavra, mais nos submetemos à ação do seu Espírito, e, consequentemente, mais nos aproximamos de Deus.
A tristeza que vem de Deus é usada por ele para a nossa salvação, completamente diferente da tristeza que vem do mundo, que só produz morte. É na esperança da salvação de Deus, na ressurreição de Cristo e na nossa própria ressurreição que somos embalados, porque temos a certeza de que, como disse o poeta popular, um dia nós não vamos ser mais tristes não. A palavra de Deus tem e terá sempre a última palavra: E lhes enxugará dos olhos toda lagrima, e não haverá mais pranto nem dor. Porque as primeiras coisas passaram, e tudo se fez novo. O reino desse mundo já passou a ser de nosso Deus e de se Cristo. E ele, não a tristeza, reinará para sempre.

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