Sofrer por amor a Cristo III

Cerberus, o guardião dos portões do Hades,
ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia
Leiam Salmo 63
A terceira é a revelação que encerra o salmo, e com ela encerro também esta meditação. Diz o versículo 11: O rei, porém, se alegra em Deus... pois tapará a boca dos que proferem mentiras. Eu disse no começo que esse
versículo fala de uma pessoa que está em fuga pela pregação da verdade, ameaçada por um forte inimigo. O que não deixei claro é que a palavra hebraica traduzida por rei pode significar sacerdote e também pode se referir a uma pessoa que está a serviço de Deus. Se o texto fala de um servo de Deus que proclama a verdade, seja ele rei ou não, não é difícil concluir que trata do confronto entre a verdade de Deus, e as “verdades” que sustentam a realidade adversa a ela. Podemos dizer que este texto leva a assinatura de todos os profetas e profetizas que, em nome de Deus, ousaram desafiar a realidade vil do seu tempo. Tem o carimbo de todos aqueles que têm fome e sede de justiça, seja na política, nas finanças, e, por que não, na igreja.

Então, se existe um confronto entre a verdade de Deus e a realidade de um sistema iníquo, não há porque o servo de Deus fugir. Este salmo não é exatamente um salmo de socorro na hora da aflição, porque ele não oferece uma rota de fuga, pelo contrário, ele desafia ao salmista a lutar contra o inimigo. A alegria última do salmista deve ser pela vitória total, e não por uma fuga bem sucedida. A mensagem transmitida é a luta constante contra as realidades que desafiam a verdade de Deus, e que cada um, a seu tempo, precisa lutar contra a sua realidade até que a verdade de Deus prevaleça. É sobre esta intensa disputa entre a verdade de Deus e as “verdades” que estão sendo pregadas hoje, que eu gostaria de me restringir.

Alguns, não poucos, cristãos adotaram recentemente uma terminologia que soaria totalmente estranha aos ouvidos dos mais antigos. Eu não ia querer ver a cara do meu pai, que se estivesse vivo teria 111 anos, se de repente me ouvisse dizendo algo como: Tá amarrado em nome de Jesus. Imagino que ele ia olhar por cima dos óculos e achar que não ouviu o que realmente eu dissera, porque a frase iria soar-lhe completamente absurda. Até hoje não sei de que texto bíblico esta expressão foi tirada. Mas se foi de Mt 19, que diz que para se tomar os bens de um homem valente, é preciso antes amarra-lo, não vejo aí consistência que respalde afirmativa tão contundente. Porque, o que se pode concluir de fato é que podemos amarrar Satanás e as obras do mal apenas com palavras de ordem. Implicaria em acreditar que seria suficiente dizer “está amarrado em nome de Jesus” para a criminalidade, o tráfico de armas e drogas, os adultérios, e a violência em todos os níveis serem extintos, pelo menos no perímetro alcançado pelo som da nossa voz.

Mas mesmo aqueles que não fazem uso desta expressão, acham que ela é do tipo que se não faz bem, mal não faz. Pura inocência, faz mal e mal demais! Em primeiro lugar, porque, quase que invariavelmente, transfere para outro a culpa que é nossa. O diabo passa a ser o único culpado de todo mal que nós, seres humanos, praticamos. Em segundo lugar, transfere para Jesus a responsabilidade que também é nossa. Expulsar o mal do mundo é a primeira, senão a única tarefa, que aqueles que se dizem servos de Deus, são chamados a realizar. O “tá amarrado” quer tomar o lugar da indignação, do não conformismo, da ira contra o mal. O “tá amarrado” quer assumir o valor da pregação profética e da denúncia que a Bíblia faz contra a iniquidade. Seria como tentássemos substituir a profecia de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós por um simples chavão. Por um jogo de palavras que não somente provocasse o mesmo efeito da profecia, mas que também nos livrasse das perseguições e angústias, que sofreram, não somente eles, mas todos aqueles que, em nome de Deus, incluindo o nosso salmista, levantaram as mãos. Para o bem da verdade, o único que tem que ser amarrado é o próprio tá amarrado.

Outro erro crasso, que tem se tornado verdade para a modernidade cristã, é admitir que o mundo, criado por Deus, foi invadido e conquistado por Satanás. Este, talvez seja influenciado pelas palavras de João, que, pela perseguição romana vendo o mundo ruir à sua volta, desabafou: O mundo jaz no maligno. Mas devemos nos lembrar de que este é apenas um versículo numa imensidão de outros que afirmam categoricamente que Deus está no controle, que a última palavra ainda é sua. Pedro diz em Atos: Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo. Paulo, quando escreve aos filipenses: Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. O próprio João mais tarde vai tratar deste assunto, não mais como desabafo, mas com força de manda­mento: Todavia, vos escrevo novo mandamento, aquilo que é verdadeiro nele e em vós, porque as trevas se vão dissipando, e a verdadeira luz já brilha. E, como não poderia deixar de ser, o outro João, praticamente encerra o apocalipse dizendo: Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre.

Quando alguém nega o consenso da Bíblia, para se apegar a um único versículo, só pode mesmo concluir que o mundo está perdido e não vai ter Cristo que dê jeito. E é daí que vem as campanhas particulares de evangelização: Deus, salve o Brasil. Deus, salve o meu estado, a minha cidade. Deus, salve a minha casa. Equivale a dizer que a igreja agora está isenta de colaborar com Deus no seu propósito de salvar o mundo, mas, que, devido às circunstâncias, deve apenas restringir-se a alguns locais e algumas pessoas, sobre as quais ainda se pode ter alguma esperança de salvação.
Como é triste ver o quanto a graça de Deus é subestimada. Imaginar que a graça de Deus pode salvar apenas alguns, quando na realidade, somente ela pode salvar o mundo. Somente ela pode reconciliar o inconciliável, resgatar o defi­ni­tivamente perdido, levantar o irremediavelmente caído. Quem não acredita nisso é me­lhor fazer outra coisa aos domingos. Na contramão da história John Wesley dizia: Dai-me cem homens que nada temam senão o pecado, e que nada desejem senão a Deus, e eu abalarei o as estruturas do inferno. Bem de acordo com a pregação de Jesus: Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela

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