Pecado sem volta (final)

Jesus cura um cego, El Greco
Em verdade vos digo que tudo será perdoado aos filhos dos homens: os pecados e as blasfêmias que proferirem. Mas aquele que blasfemar contra o Espírito Santo não tem perdão para sempre, visto que é réu de pecado eterno. Leiam Mc 3,28-29, Mt 12,22-37 e Lc12,4-11


Em todos estes argumentos nota-se a visão definitiva de um julgamento sumário. Muito embora os pontos centrais desses pensadores variem, eles são plenamente convergentes no que diz respeito à sentença. Tendo em vista que nem mesmo os evangelhos sinóticos são consensuais neste assunto, para chegarmos a uma conclusão minimamente satisfatória, faz-se necessário uma investigação mais acurada a partir deles. Para Mateus, a blasfêmia contra o Espírito se deu quando Jesus curou um homem que estava dominado pelo mal, a ponto de não falar e não enxergar. Lucas não associa os dois episódios claramente, pois registra a cura no capítulo 11 do seu evangelho, e só vai falar sobre a blasfêmia no capítulo 12, em uma motivação inteiramente distinta, fora da controvérsia com os fariseus usada por Mateus. Marcos, por sua vez, sequer registra a cura geradora da questão, atendo-se exclusivamente a injuria dos fariseus.

Se fôssemos analisar somente estes três evangelhos, já teríamos nas mãos pelo menos três tipos de blasfêmia, e não apenas um tipo, como foi citado pelos teólogos citados anteriormente. Teríamos esse número se não contarmos com as posições de outros teólogos, que multiplicaram a abrangência das atitudes blasfemas, como foi o caso de Dietrich Bonhoeffer, quando disse: A graça barata é a inimiga mortal de nossa Igreja. A graça barata é a graça que nós dispensamos a nós próprios. A graça barata é a pregação do perdão sem arrependimento, é o batismo sem a disciplina comunitária, é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo vivo, encarnado. A graça preciosa é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por amor do qual o ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga suas redes e o segue. Isto é graça barata como justificação do pecado, mas não justificação do pecador penitente, que abandona o pecado e se arrepende; não é o perdão que separa do pecado.

Não posso falar por ninguém, mas no que diz respeito a mim, estou incluído em um bom número destas atitudes condenadas por Bonhoeffer, e, fatalmente condenado a um juízo sem perdão. Seria possível alguém viver desta maneira? Devemos realmente acreditar que Deus marca com o ferro da condenação eterna uma pessoa que ainda tem alguma possibilidade de voltar atrás nos seus conceitos? Se formos levar em conta tão somente o peso da injustiça, teríamos que punir com uma sentença maior aqueles que o crucificaram, e relaxar um pouco a pena daqueles que blasfemaram contra ele sem feri-lo. Uma vez que a pena capital deve ser sempre empregada aos crimes de maior dolo, não pode haver neste caso dúvidas quanto qual deve ser o crime de fato hediondo, ou qual foi de fato o crime sem volta. Mas não foi o que pode ser averiguado nos evangelhos. Para todos os efeitos, Jesus condenou os fariseus de Cafarnaum, onde curou o cego mudo, e suplicou a Deus perdão pelos chefes supremos de Jerusalém, que estavam prestes a matá-lo.

Um pouco de conhecimento do caráter e do ministério de Jesus já nos faria entender que o ultimato de Jesus estaria mais bem situado no contexto de Lucas do que propriamente no de Marcos e Mateus. Aquele que disse que a sua missão precípua era salvar o homem da perdição e não condená-lo pelos seus pecados, teria, através de uma declaração contundente como esta, uma oportunidade maior de se fazer entender em um diálogo franco e aberto com os seus amigos, do que propriamente numa disputa acirrada aos gritos contra seus opositores. Não quero dizer com isso que quando voluntariamente fazemos do mal bem, e do bem mal, do doce amargo, e do amargo doce, da luz escuridão, e da escuridão luz, não precisamos nos preocupar, posto que a graça de Deus está aí para perdoar mesmo. Como disse o próprio Bonhoeffer: O homem persiste em pecados ainda não perdoados, acumulando culpa sobre culpa, que o levará ao endurecimento total do coração, à ausência de temor e à piedade hipócrita. Não há mais lugar para o arrependimento e sim para a idolatria, onde Deus passa ser o ídolo que serve aos seus propósitos. Na mesma linha de raciocínio temos também o Papa João Paulo II: A blasfêmia contra o Espírito Santo é o pecado cometido pelo homem, que reivindica o seu pretenso direito de perseverar no mal e recusa por isso mesmo a Redenção. O homem fica fechado no pecado, tornando impossível da sua parte a própria conversão e também, consequentemente, a remissão dos pecados, que considera não essencial ou não importante para a sua vida. É uma situação de ruína espiritual, porque a blasfêmia contra o Espírito Santo não permite ao homem sair da prisão em que ele próprio se fechou.

Estar condenado ou condenar a si mesmo? Ser jogado no fogo do Inferno ou caminhar voluntariamente a passos largos para ele? Como disse no princípio, sem a pretensão de dar uma resposta a esta insolúvel questão, quero, ao final, lembrar apenas do que, segundo Lucas, Jesus disse um pouco antes de fazer tão indigerível afirmação. Ninguém consegue vender cinco pardais por dois centavos. No entanto, mesmo que estes não tenham valor para nós, Deus os tem em conta. Até os seus cabelos estão contados. Não tenham medo, pois vocês valem mais para mim do que muitos pardais.

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