O cântico da tragédia IV


O anjo mostra a João a Jerusalém Celeste
de  Hennequin Bruges (1340-1400)
Leitura recomendada, Salmo 44
No seu sermão, O sentido da providência, Paul Tillich ressalta que as palavras de Paulo em Romanos 8, o texto que diz que nada pode nos separar do amor de Deus, tem uma ligação direta com o que Jesus disse de mais inquietante nos evangelhos, quando nos conclamou a não nos preocuparmos com os
elementos essenciais à nossa vida, como roupa e alimentos, e sim buscarmos primeiramente o Reino de Deus. Ele diz que provisão líquida de certa do alimento, sinalizada por Jesus, se coloca tão antagonicamente aos fatos trágicos do nosso dia a dia, que podemos dizer que ter fé na providência divina, é um ato de fé que desafia sobremaneira a realidade em que vivemos. O desafio permanente de anunciar um Deus bom, divino e amoroso num mundo assassino, demoníaco e excludente. Esse também é o maior problema da fé cristã, conciliar o amor de Deus com um mundo de tanto ódio, pois este é o lugar exato onde o ateísmo lança a sua âncora.

Mas para Tillich, esta hesitação não tem nada a ver com a nossa concepção de Deus. Onde ele está? O que está fazendo? Ou por que não atende? Tem a ver com a angústia do ser humano que é incapaz de resistir às forças destruidoras que o mundo, a todo instante, tenta exercer sobre ele. E que forças são essas? As mesmas citadas por Paulo em Romanos 8: O horror da morte, as incertezas da vida; a obscuridade do futuro, a ambiguidade do presente; imprevisibilidade das catástrofes. Então, qual poderia ser o sentido da providência divina no contexto em que vivemos hoje? Logicamente que não é a ingênua promessa de que tudo acabará bem, porque nem tudo acaba bem nessa vida. Também não significa que a esperança prevalecerá, porque também há casos onde não se pode ter esperança alguma.

Então qual seria o sentido da Providência quando a morte constantemente nos assola? Quando o horror da guerra impera? Quando as injustiças sociais e econômicas condenam pessoas a viverem em áreas de alto risco? Quando as tragédias de um passado recente, voltam a nos assombrar? É justamente nessa hora que somos chamados diante dos que não creem, para desafiar os horrores da realidade com o ato mais inconsequente da nossa fé na providência, e dizer: Nada pode nos separar do amor de Deus. Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o futuro: nada, nada nesse mundo de ódio e de vingança, pode nos separar do amor de Deus em Cristo. E é somente neste sentido que podemos afirmar com toda convicção que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus.

Quando falamos da providência de Deus não temos o direito de imaginar que tudo está decidido e predeterminado. Não podemos crer que Deus consulte a sua agenda para conferir se a sequência dos acontecimentos está de acordo com a sua vontade. Confiar na providência implica em crer que para cada nova situação, existe uma possibilidade criadora e salvadora que nenhuma força demoníaca dentro de nós ou à nossa volta, pode destruir. Essa é a mais pura essência do metodismo wesleyano, nada está predestinado, nada pode romper o vínculo de amor que existe entre você e Deus. As forças do mal podem destruir todas as flores, mas jamais poderão impedir que a primavera chegue, dizia Che Guevara.

No texto citado de Romanos 8 Paulo diz claramente que as únicas coisas que podem destruir nossa fé na providência divina, é nossa falta de confiança no amor de Deus, o nosso medo da sua ira, o nosso ódio à sua presença, a nossa concepção de um Deus tirano, sedento vingança e pronto a nos aprisionar num sentimento eterno de pecado e culpa. Não é a profundidade do nosso sofrimento que nos afasta de Deus, é a profundidade da nossa separação de Deus que destrói a nossa fé na providência divina.

Eu desafio o telejornalismo da Globo a fazer uma nova reportagem com aquela senhora, e perguntá-la como ficou a sua fé depois dela ter perdido tudo novamente. Não vão fazê-lo porque significaria atestar que a sua fé hoje é ainda mais sólida, ainda mais consistente e ainda mais esperançosa. Mesmo que ela não tenha compreendido os porquês da tragédia, mesmo que ainda não tenha uma explicação minimamente aceitável, a singeleza da sua confiança na providência de Deus é algo que nem mesmo a resposta negativa à sua oração sincera e justa, pôde sequer abalar.

É possuído desse sentimento que o salmista deixa de lado todo questionamento, todo queixume, e termina o seu salmo com a única ponderação que lhe resta, com a única reivindicação que ainda lhe é válida. Salva-nos, Senhor, não porque merecemos, não porque somos dignos, não pelo que fizemos ou que deixamos de fazer, mas salva-nos, Senhor, tão simplesmente, por causa da tua benignidade. Por causa do teu amor.

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