O Cântico da Tragédia III


Destruição do templo, Nicolas Poussim(1594-1665) 
Leitura recomendada, Salmo 44
Há um fator interessante nisso tudo, porque não é somente na igreja que este, por assim dizer, fenômeno pode ser observado. A jornalista Eliane Brun escreveu recentemente uma matéria intitulada: A crença de que a
felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada. Onde ela fala de jovens da classe média que já viajaram ao exterior, que são fluentes em outras línguas e estuda em bons colégios, tem convivido com a ilusão de que a vida é fácil e que já estão prontos para ela, uma vez que os seus talentos serão naturalmente reconhecidos e recompensados. Iludidos estão também de que a vida profissional será apenas a extensão de seus lares, onde o patrão será tão complacente como seu pai ou sua mãe, e quando isso não acontece, que é o que invariavelmente ocorre, sentem-se traídos, ficam revoltados e não são poucos os que desistem da carreira que escolheram.

Ela fala que esses estreantes na vida adulta, foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada relevante. Viveram como se logo ao nascerem, seus pais lhes devessem por obrigação todas as coisas. E assim, nunca aprenderam que a vida é construção, que para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito, com ética e honestidade, e não sair por aí dando cotoveladas e gritos. Como é que esses pais nunca disseram aos seus filhos que o mundo que os espera é uma realidade totalmente nova e nada animadora? A nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Quem dá duro para conquistar algo parece que já vem com o carimbo de perdedor. Bacana é o que não estudou, passou a noite toda na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar o seu lugar ao sol.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir uma carreira sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes à vida são uma anomalia, uma espécie de traição à felicidade que deveria estar garantida. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam, como parte do processo educativo, duas premissas básicas do viver: a frustração e o esforço? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites, tanto da sua condição humana como os de suas capacidades individuais? Pois é, quando estes jovens percebem que essas dores são de fato inerentes à vida e não uma anomalia, pais e filhos pagam caro pelo simples fato de acreditarem que a felicidade é um direito. Possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não tem o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter que aceitar limitações, e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer. Ela conclui dizendo: Viver é para os insistentes.

Será que dá pra perceber alguma semelhança entre a matéria da Eliane e expectativa que a igreja de hoje tem no evangelho? Será que não estamos criando também uma geração de cristãos bem preparados para o louvor e adoração, com os melhores e mais modernos recursos da mídia eletrônica e completamente despreparados para as provações e perdas da vida? Ou seria que, assim como os pais terrenos, o Pai celestial também se torna devedor ao primeiro sinal de arrependimento ou à menor manifestação de conversão de um pecador, principalmente no que diz respeito à sua obrigação de abençoá-lo, fazê-lo feliz e próspero? Será que, como estão dizendo, realmente conta mais a unção do que o estudo da Bíblia, o dom mais que o aprendizado das Escrituras? Levando-se em conta o que dizem as novas doutrinas, será que Deus realmente aponta para uns e concede uma vida de alegrias e realizações, enquanto que para a outros resta apenas a frustração eterna? Não estaria Deus no mesmo patamar desses pais equivocados, como os destacados na matéria da jornalista, como um enorme Papai Noel, concedendo gratuitamente bênçãos aos seus escolhidos? Não são poucos os que alegam que na sua soberania, Deus pode fazer o que quiser, mas agindo assim, esta soberania não seria a primeira e mais flagrante contradição à sua justiça e ao seu amor indiscriminado e incondicional?

E o que dizer do outro lado da moeda? Das pessoas que são constantemente assoladas por acontecimentos trágicos, como a senhora da reportagem? Pessoas que tem a vida marcada pela adversidade, sem que lhes aconteça absolutamente nada de bom ou se lhes materialize qualquer esperança. Como será que elas entendem a providência de Deus tão inspiradamente cantada nos nossos hinos? Será que as mãos de Deus realmente dirigem o meu destino, que o acaso para mim não haverá? Num dos salmos mais conhecidos da Bíblia o salmista levanta essa questão com muito oportunismo e propriedade, quando diz: Como entoaremos o cântico de Sião em terra estranha? Como podemos continuar pregando que Deus é um pai amoroso, que se preocupa, dá assistência e que se importa, e continuar contemplando passivamente tsunamis, terremotos, desabamentos, enchentes, chacinas e tudo de ruim que está acontecendo à nossa volta? Será que pode haver um meio termo entre a providência de Deus e todo esse mal? Ou seja, qual é o verdadeiro sentido da providência divina?

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