John Wesley I

Casa de John Wesley  em Londres
A consciência do homem moderno tem sido mudada radicalmente. O povo de hoje não tem mais a consciência dos velhos tempos. Os tabus, convenções e os sistemas de controle moral já eram, até já era, já era eu sei disso. A ligação entre a ansiedade psicológica e a culpa religiosa já não existe mais. A influência moral da igreja de Jesus Cristo sobre a sociedade contemporânea já não funciona. Nós vivemos em dias bem diferentes do passado distante. Mas isso não quer dizer que a pessoa moderna não vive ansiosa, pelo contrário, parece que esta geração vive mais ansiosa do
que qualquer outra antes dela. Mas é raro hoje em dia achar alguém que se sinta culpado. É muito raro encontrar alguém que sinta o julgamento de Deus sobre o seu pecado. O descontentamento, o dissabor, o desamor dos revoltados de hoje é subitamente desabafado contra os outros.

São os outros os errados, não são? Claro! São sempre os outros os culpados. O governo. Como o governo é culpado. Conversando com um economista sobre as decisões do governo sobre a nossa economia, ele disse o seguinte: Quando o governo diz insistentemente para você fazer alguma coisa, como coloque o seu dinheiro na poupança, como coloque o seu dinheiro na poupança, como coloque o seu dinheiro na poupança. A última coisa que você deve fazer é colocar o seu dinheiro na poupança. E os políticos? Que vergonha. E os impostos? Pagamos uma infinidade de tipos e não recebemos nada em troca. A culpa do nosso o sistema econômico não funcionar há pouco tempo era dos comunistas, agora é dos chineses. O mundo todo está errado. O mundo todo é culpado. Nós já sabemos quem são os vilões da história. Esse é o jeito de pensar do povo hoje em dia. Isso é o farisaísmo popular dos nossos tempos. Damos graças a Deus porque nós cristãos evangélicos não somos como eles, não é?

O arrependimento é coisa difícil para muita gente, sabemos disso, mas o arrependimento se torna impossível para os que acham que estão certos, para aqueles possuídos de retidão própria. Estamos nos afogando em um dilúvio de retidão própria, em todos os lugares, de todas as formas e em todos os pensamentos. E isso diretamente a igreja. O jeito de pregar o evangelho hoje não é nada parecido como o de duzentos e cinquenta anos. O mundo simplesmente mudou, e o jeito do povo ouvir a mensagem do evangelho também é diferente. Tudo isso afeta a maneira de comunicar o evangelho ao mundo atual. Afeta a maneira como a igreja, que outrora dependia das consciências dominadas pela culpa, vive o evangelho. Então como a igreja pode chamar a atenção dos descontentes deste século?

O evangelho é a boa notícia de Deus para as más notícias do mundo em qualquer época. O sucesso da pregação do evangelho depende de como ele é entendido, de como ele é interpretado. Depende do jeito como ele é aplicado à vida. Mas dentro da própria comunidade cristã existe muita divergência e confusão sobre isso. Por causa disso eu gostaria de me voltar para outra época, para tentar achar algum discernimento ou alguma perspectiva. Gostaria de voltar aos anos de 1750. Pediria licença a vocês para voltar ao tempo de John Wesley. Gostaria de rever de onde ele tirou a força que o fez levar tão longe e com tanta aceitação o movimento que Deus origem à Igreja Metodista.

Uma das ironias interessantes da história é que John Wesley tivesse morrido antes de completar trinta e seis anos, ninguém hoje se lembraria dele. Seu nome não teria não teria merecido qualquer nota ao pé da página da história da igreja cristã. Sua experiência missionária na Geórgia tinha sido um fiasco. Sua carreira de professor também fracassara fragorosamente. Ele era conhecido pelos seus alunos como “o meio doido”. Esteve à frente de uma sociedade religiosa em na Universidade de Oxford, de outra na Geórgia, e de uma terceira em Londres, sem qualquer resultado expressivo. Ele criticava abertamente as injustiças da sociedade do seu tempo, mas ele tinha poucos instintos para a política e nenhuma base de poder. Era o típico pregador da igreja Anglicana, era ortodoxo, era zeloso com as suas doutrinas, era autoritário, era plenamente convicto da sua retidão. E tudo isso não lhe conferiu nada para mostrar em seus trinta e seis anos de empenho escrupuloso.

Mesmo assim, uma década mais tarde esse padre da Igreja Anglicana; naquela época gostava de usar esse a palavra padre, ele era o padre John Wesley; ele era simplesmente o maior movimento inglês do século XVIII. Foi um avivamento da fé cristã tanto quanto uma reforma social, foi um movimento novo. Ele formou seus pregadores leigos e tornou-se o teólogo do povo chamado metodista. Pregou mais de oitocentos sermões por ano, distribuindo folhetos evangelísticos, agitou toda a Inglaterra sem promover os conflitos sangrentos como os que aconteciam na França. Andou por toda a Inglaterra pregando o evangelho. Encontrou meios novos para revelar a força da mensagem do de Jesus Cristo.

Como isso aconteceu? Quais foram as causas da transformação de um povo? Existe aqui um mistério, e eu não vou me atrever a tentar entendê-lo. Mas por outro lado, existem certos aspectos que podem muito bem ser analisados. E é o que vamos tentar nas meditações seguintes.

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Transfiguração analisada

Transfiguração de Jesus, ilustração do livro
Os Santos do Mês da Editorial Missões, 2010
Texto base: Lc 9,28-43

Contexto: Jesus anuncia pela primeira vez a sua paixão e morte, embora seus discípulos ainda não tivessem uma visão clara do que ele estava dizendo. No entendimento deles, o messianismo de Jesus se prestaria para inverter a ordem do poder instaurado na Palestina naquela época.

Finalidade: O texto visa mostrar que aceitar o senhorio de Cristo exige muito mais ação do que contemplação.

Tópicos:
1-   Jesus escolhe três discípulos para subir e orar com ele no monte. Normalmente eram esses os escolhidos. Convém notar que mesmo em um grupo restrito de doze pessoas existem aqueles que mais se evidenciam, daí Jesus contar com eles na maioria das vezes.
2-   Enquanto orava, Jesus transfigurou-se diante deles. O aspecto do seu rosto se alterou e suas vestes resplandeceram. Talvez tenha sido este o modelo do que Paulo mais tarde vai chamar de corpo incorruptível.
3-   Temor é a reação imediata dos discípulos a esta visão, seguida de um êxtase nunca antes experimentado simplesmente declarado na expressão: É bom estarmos aqui.
4-   A contrapartida da experiência espiritual é o suborno do conforto material: Faremos três tendas, uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.
5-   A ilusão de que se compra o favor de Deus com bens materiais.
6-   A idolatria de julgar que Deus pensa e age com um humano.
7-   A visão egoísta do Reino de Deus.
8-   Da nuvem a voz de Deus insiste para que compreendam o momento singular, apresentando Jesus como seu enviado, enquanto deixa a ordem explicita de ouvi-lo e obedecê-lo.
9-   Jesus desce do monte, porque no vale havia um jovem epilético que precisava dele.

Considerações:
Subiram o monte para orar
Não existe nada de errado em se querer um pouco de privacidade para falar com Deus. Ficar sozinho para orar é uma das recomendações de Jesus sobre a oração. Mas não basta apenas isso. Uma conversa franca, sem chavões ou repetições também são importantes.

Jesus transfigurou-se e suas vestes resplandeceram
Não há nada de errado em seguir a orientação do salmista quando ele diz para contemplarmos a beleza do Senhor. E contemplar a beleza do Senhor significa cuidar devidamente das suas criaturas, principalmente da sua maior criatura. A beleza do Senhor se manifesta através da sua criação.

É bom estarmos aqui
Não há nada de errado em fazermos com que os nossos locais de adoração sejam espaços agradáveis. Por mais que Jesus investisse contra os sacerdotes e intérpretes suspeitos da lei, o templo ainda era o seu lugar agradável. Ainda com sete anos de idade declarou isso aos seus pais terrenos: Por que me procuráveis? Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?  É bom estarmos na casa de Deus, principalmente quando temos a consciência de que a casa é realmente de Deus, que não está registrada em cartório no nome de alguém.

Façamos três tendas
Não há nada de errado em criarmos ou ampliarmos os espaços de adoração. A vida comunitária de uma igreja exige este tipo de investimento. O que não deve prevalecer neste caso é o sentido de exclusividade ou de orgulho. A casa de Deus deve realmente se prestar para aquilo que ele a designou: A minha casa será chamada casa de oração e será para todos os povos.

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Romanos – a vergonha que vence

Representação de Paulo do século XVI
Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego. Rm 1-16
A questão da vergonha é muito bem trabalhada por Paulo, e ele a aborda sob vários aspectos quanto se trata do evangelho de Cristo. A fraqueza, a loucura, a impotência e a ignorância, que são reconhecidamente motivos de
vergonha, mas na sua pregação assumem características que as fazem ser predominantes sobre as suas rivais diretas. Em I Co 1 ele diz que Deus usa preferencialmente as coisas que são negativas sob o ponto de vista humano, para fazer corar, num português mais claro, matar de inveja as coisas grandiosas. Para Paulo, o evangelho sempre sai em desvantagem, parte de uma condição inferior e é muito menos equipado tecnicamente do que as forças que negam a sua mensagem, e curiosamente o apóstolo se vangloria disso. Depois de viver uma vida dedicada à pregação do evangelho, o que ele contabiliza são açoites, naufrágios, apedrejamentos, incêndios e perseguições sem fim. Contudo, o versículo citado acima, que faz parte do prefácio, ficaria muito bem, caso esta fosse uma carta endereçada a uma igreja conhecida, que lhe fosse íntima e que tal testemunho visasse robustecer a fé de seus membros, talvez por serem vítimas destes mesmos infortúnios. Nunca deveria ser colocada no início de uma carta que tinha por finalidade apresentá-lo como aquele que iria encabeçar o enorme desafio de evangelizar toda a Espanha, e que estava, através desta carta, pedindo apoio irrestrito para a sua missão.

Quem de nós não começaria uma carta deste tipo dizendo ser a pregação do evangelho seu grande orgulho? Por outro lado, quem de nós passou de um “fracasso” como o de Atenas para um glorioso sucesso como o de Coríntios? Quem se nós experimentou na pele tais sensações para entender tão claramente que Deus age mais livremente através da fraqueza, da loucura e da vergonhado que das coisas que nos dão orgulho? Paulo quando escreveu aos romanos não queria falar de si, não pretendia se apresentar-se como o grande evangelizador de toda a Ásia menor ou como o apóstolo dos gentios, e sim deixar bem explícito que todo o poder do procede do evangelho de Cristo, e que a despeito de todas as fraquezas conhecidas do apóstolo, ele era poderoso o suficiente para a salvação de toda e qualquer nação sobre a terra.

Paulo também mostra neste prólogo uma perfeita sintonia com o Primeiro Testamento, mais especificamente com o Salmo que diz: O Senhor fez notória a sua salvação; manifestou a sua justiça perante os olhos das nações. Lembrou-se da sua misericórdia e da sua fidelidade para com a casa de Israel; todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus. Por mais que assumisse a frente do trabalho, ele entende que este é um projeto antigo de Deus, e o evangelho é a única resposta para este plano se tornar viável. Entende também que o plano não pode mais ser ignorado, contido ou sequer postergado. O evangelho é o ato decisivo de Deus que vem para declarar a palavra de salvação tanto para judeus quanto para gentios, palavra que veio em boa hora, uma vez que as duas facções beligerantes da comunidade cristã de Roma estavam prestes a dividir aquela igreja. Paulo precisava mantê-la unida e convicta de que sua grande tarefa era a evangelização das regiões mais distantes do Império Romano, considerada os confins da terra.

É sempre bom que se diga que na palavra salvação estão incluídos todos os bens que Deus pode dar de resposta à expectativa do ser humano, que está oprimido e angustiado. Embora seja sabido que expectativa de salvação não era uma peculiaridade da religião de Israel, e que ela podia ser encontrada sob as mais diversas formas no paganismo, para os judeus tinha uma conotação diferente. A própria religião estatal promulgava o imperador como o Augusto Salvador, mas era uma salvação que se tratava apenas de uma providência imediata, o livramento de um temor supersticioso que a alma influenciada pelo helenismo buscava ansiosamente nas religiões de mistério. Mas as inúmeras revelações do Deus de Israel haviam desenvolvido neste povo um elemento totalmente estranho a essas religiões: o senso de que os revezes do destino que o homem padece é o resultado da desobediência aos preceitos mais elementares de Deus, fora dos quais não há possibilidade de se encontrar salvação. E o evangelho é a intervenção que não somente traz ao homem essa consciência, como também perdoa e refaz tudo o que o pecado havia destruído.

Para a religião antiga de Israel, o poder de Deus havia de certa forma se exaurido na libertação do povo do Egito. Não se esperava que Deus fosse fazer algo maior ou mais decisivo que isto. Portanto, todo aquele que era herdeiro desta libertação, estava naturalmente liberto de tudo mais. Se algum estrangeiro quisesse ser liberto também teria que se tornar judeu. Paulo diz que não é a herança, mas a fé a garantia da salvação, tanto dos judeus quanto dos gentios. Não a fé de Israel, mas a fé que transcende fronteiras e que vem através da poderosa pregação do evangelho, que agrega e une todo o povo de Deus.

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Perdido dentro de casa (final)

A dracma perdida de James Tissot (1836-1902)
Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma, não acende a candeia, varre a casa e a procura diligentemente até encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido. Eu vos afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende. Lc 15,8-10

A parábola termina num tom de alegria. E, tendo-a achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido. E para que ninguém se desviasse da verdadeira intenção Jesus ainda acrescenta. Eu vos afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende. Aqui Jesus devolve pela segunda vez consecutiva, a primeira havia sido na parábola da ovelha, a saia justa em que os fariseus queriam colocá-lo pelo fato de encontrá-lo comendo e bebendo com publicanos e prostitutas. Só que desta vez numa relação de valores dez vezes maior, pois a perda não era mais uma em cem, e sim uma em dez. Só que desta vez numa relação familiar, não era concebido que um mestre em Israel fosse solteiro. Só que desta vez não mais na periferia da cidade, mas dentro das suas casas.

Jesus pergunta aos fariseus: Vocês gostariam de ser felizes como esta mulher da parábola? Vocês gostariam de gostar realmente desta vida? Gostariam de se sentir como alguém que recupera algo que é importante para a sua vida, sem o que vocês não eram felizes? Nesta parábola Jesus esta dizendo que não há outro caminho para se alcançar a felicidade fora daquele em que se divide a alegria da salvação com o homem e a mulher que estão perdidos. Em que se compartilha a boa notícia da vida eterna em Cristo com aqueles que já não tem mais qualquer expectativa ou esperança nesta vida. Quando declaramos aos quatro ventos o quanto Deus tem nos amado apesar do nosso egoísmo, da nossa indiferença, da nossa discriminação. De confessarmos a plenos pulmões que a despeito de nunca termos conseguimos viver a nossa vida como realmente queremos, Deus nos aceita como somos e nos ama como se fôssemos seres humanos perfeitos e acabados.

Para todos os efeitos morais, a mulher tinha mais era que ficar calada e alegrar-se sozinha, pois assim, além de recuperar a sua moeda perdida, ela não daria qualquer sinal do seu desleixo em preservar o símbolo do seu amor. Ela não ficaria exposta aos comentários maldosos daqueles ou daquelas que não perdoariam a sua incapacidade de fazer o que toda boa esposa tem obrigação de fazer. Ela não dividiria a sua alegria com as outras mulheres, amigas e vizinhas que perderam suas joias e nunca mais as recuperaram. Nem um de nós iria louvá-la pelo seu achado sem antes recriminá-la pela sua perda. Mesmo sabendo disso ela não agiu assim. Ela entendeu que sua alegria era demasiadamente grande para ficar restrita a quatro paredes, por isso encheu-se de coragem para toná-la pública, apesar de saber do risco da humilhação, da desonra e do descrédito. Isso nós não fazemos não. Não corremos riscos desnecessários. Quando muito compartilhamos a alegria da nossa salvação com alguém que também já foi achado, com alguém que se sente como nós, isso quando fazemos.

Se vivêssemos no seu tempo e fôssemos procurar Jesus entre os achados, entre os de boa fama, entre os certinhos não íamos achá-lo não. Entre aqueles que tem alegria própria naquilo que são e no que tem, é mais do que certo que ele não estaria. Entre aqueles que encontraram alegria em Deus e a preservaram incólume dentro de si, também não. Se quiséssemos encontrar Jesus de nada adiantaria ir às catedrais iluminadas e lotadas de gente de boa fama. Lá estão aqueles já se esqueceram de que um dia foram achados, e que agora vivem como quem não perdeu nada, não sentem falta da nada, não precisam de mais nada. Estão prontos para serem arrebatados aos céus e continuarem gozando das bênçãos que já dispõem aqui na terra. Se quiséssemos encontrar Jesus teríamos que revirar a poeira, a lama e o capim para encontrá-lo entre os perdidos, os de má fama, os que não tem, aos nossos olhos, a menor possibilidade de salvação.
O propósito de irmos à igreja, de estudarmos a Palavra de Deus, de louvarmos o seu nome, de ficarmos em comunhão uns com os outros e com o próprio Cristo na ceia é de reacender o fogo de amor por nosso Senhor e pelos outros. E o sinal de que isto tudo está funcionando como realmente deve é a alegria compartilhada com aqueles que não foram à igreja, não estudaram a Palavra de Deus, não louvaram o seu nome e nem sentiram qualquer tipo de comunhão. Tem que ser como Deus disse a Jó: Quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus. Alegrem-se comigo, pois eu encontrei a minha perdida. Porque todas as vezes que fazemos com e pelos pobres, ignorantes, aflitos, sozinhos e com gente de má fama, fazemos por ele e com ele.

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Perdido dentro de casa

Ilustração do livro Heroínas
da Bíblia na arte, de 1900
Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma, não acende a candeia, varre a casa e a procura diligentemente até encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido. Eu vos afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende. Lc 15,8-10

O grande dilema da existência humana não é exatamente a nossa perdição real e sim sobre a nossa perdição percebida. Nós sentimos que estamos perdidos, esse é o nosso dilema. Na tragédia da nossa vida nos percebemos que estamos perdidos e
alienados. Estamos perdidos e alienados de Deus, uns dos outros e até de nós mesmos. Mas se existe uma certeza no evangelho é que em Jesus Cristo nós temos sido achados. Nós acreditamos que Deus nos aceita incondicionalmente. Por meio da fé em Cristo experimentamos a graça de Deus que é gratuita, que é radical, que é incondicional e que é universal. Esta é a boa notícia do evangelho: Nós temos sido achados em Jesus Cristo. E isto não é algo que nós fizemos, não é algo que conquistamos, porque graça conquistada não é graça, graça merecida também não é graça. E a verdade excelente é que Deus, na sua onipresença e na sua onisciência, está nos procurando e está nos achando.

Se uma mulher que tem dez moedas de prata perder uma, vai procurá-la, não vai? Acende a luz, varre a casa e procura com muito cuidado até achá-la. Mas porque tanta dedicação em procurar uma moeda que valeria hoje pouco mais de vinte reais? No tempo de Jesus era o salário de um dia de trabalho sem especialização alguma. É claro que ninguém ficaria satisfeito de perder vinte reais, a não ser que tenha perdido mais e aí preferiria ter perdido apenas vinte. Mas há muito mais coisa envolvida aqui do que o valor financeiro da moeda. Somente conhecendo o contexto da história podemos avaliar o quanto de fato a moeda valia. As mulheres casadas no tempo de Jesus, assim como as de hoje usam uma aliança, usavam uma espécie de colar que era colocado como um frontal na testa chamado de semede, e era feito de dez moedas de prata. Estas dez moedas significavam que o relacionamento com seu marido ia muito bem. Então como ela iria justificar a perda de uma dessas moedas? Como ela iria andar na rua com seu colar faltando uma moeda? Seria um escândalo se isso acontecesse. Então, muito mais do que o valor da moeda, a falta de simetria da joia em sua cabeça seria imediatamente notada. Não significaria apenas a perda de uma joia de valor inestimável, mas negligência para com o seu marido, e falta de amor no seu casamento. Por isso ela procurava com tanto afinco a tal moeda perdida. Ela simplesmente tinha que achar aquela moeda, todo o seu casamento dependia disso. E a busca não era nada fácil não. Apesar das casas dos palestinos naquela época serem pequenas, o chão de muitas delas era coberto de terra e algumas partes de capim Havia poucas janelas que permitissem entrada de luz, daí a necessidade da lamparina para revirar a poeira e remexer o capim para encontrar a moeda.

Algumas palavras parecem que saltam do texto para desafiar a nossa percepção. Primeiramente a palavra procurar, e não somente procurar, mas sim procurar até achar. Jesus na parábola quis dizer que se uma mulher procura desta maneira uma joia e não descansa até encontrá-la, quanto mais Deus não procuraria alguém que está perdido? Ele faria apenas uma busca superficial e remexeria apenas em alguns lugares para nós encontrar? Claro que não. Ele faria e fez tudo. Para ele nenhuma busca é demorada demais, nenhum obstáculo é grande demais, nenhuma distância é longa demais. O primeiro ensinamento da parábola é esse: Quanto maior é o amor de Deus por um filho seu do que a necessidade da mulher em encontrar a moeda? Interessante é que a moeda fora perdida dentro de casa, dentro do círculo familiar, e Jesus por várias vezes disse que veio para buscar os perdidos da casa de Israel. Então o que tem isso a ver conosco? É possível que estejamos perdidos dentro da casa de Deus? É possível estarmos em comunhão em uma igreja e termos perdido a nossa fé? É possível que o ativismo dentro da igreja tenha feito com que perdêssemos o vínculo com a família de Deus e, consequentemente, o nosso primeiro amor? É possível que estejamos tão ocupados em falar de Deus que nos esquecemos de falar com Deus?

A parábola nos responde que sim, que é possível que muitos de nós estejamos perdidos dentro de casa. Mas a parábola não tem por finalidade jogar isso na cara, ela não visar nos afrontar com esta realidade. Jesus prefere ressaltar o interesse pessoal que Deus tem para com cada um de nós. Ela nos traz a mensagem de que o frontal de Deus estará incompleto até a recuperação da moeda que está perdida. Assim como a mulher da parábola, que nunca iria ficar com nove moedas, Deus não irá descansar enquanto essa moeda continuar perdida. A parábola nos diz que precisamos urgentemente deixar de ver a Palavra de Deus como uma ameaça terminal e passar a vê-la como um curativo definitivo para as feridas dos nossos corações. Precisamos perceber que o Senhor do universo inteiro veio e pagou o preço impagável da procura para nos encontrar. Precisamos tem a consciência de que o Senhor do universo todo está aqui, na pessoa do seu Espírito, para nos encontrar a qualquer custo. Ele não pode ser subornado, não pode ser protelado e não existe um lugar que esteja longe do seu alcance. Ele nos conhece bem e sabe onde nós estamos, sabe o que precisamos. O mais difícil para ele é curar-nos de uma vez, porque na nossa humilhação própria, que é tão negativa, que jamais conseguimos crer que ele se preocupa conosco. Em um mundo onde ninguém liga para ninguém, é quase impossível crermos que Deus tem um tempo para nós. (continua)

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Conversão de verdade III

Emaús, Duccio di Buoninsegna (1255-1319)
Ensino e desafio
Reflexão sobre Lc 24,13-35
Mas Jesus estava lidando com dois discípulos que atravessavam um momento apofático para o qual não tinham explicação, tampouco fé para assimilá-lo. Jesus precisava consolar a dor da sua aparente perda
apresentando-se como ressuscitado, para enfim despertar neles o compromisso com a missão do evangelho. Jesus teria que ser extremamente preciso nessa abordagem, posto que de nada adiantaria anunciar-lhes a ressurreição, transformando este momento numa experiência apofática que os levaria fatalmente ao fanatismo religioso. Para nada serviria tirá-los da decepção mórbida para jogá-los no entusiasmo inconsequente. Deixando de lado por um momento o chamado para o desafio do ministério, através da simples explanação das Escrituras, começou a falar-lhes do que consistiu de fato o seu próprio ministério. Começou a desconstruir todo o ideal messiânico que ambos, como todo bom judeu, haviam pressuposto que Jesus encarnaria. Falou-lhes principalmente do encargo e das consequências que acarretavam a implantação do Reino de Deus na terra, do quanto era penoso o caminho para a glória eterna. Sem chamar para si a centralidade desta comissão, dividiu com Moisés e com todos os profetas os louros da vitória definitiva sobre o mal. Jesus se colocou como parte do plano de Deus para reconciliar o mundo consigo, e não como uma tentativa desesperada de consertar o que os discípulos pensavam que havia se quebrado.

Ao se utilizar da estratégia catafática do ensino através das Escrituras, queria dar a eles uma nova esperança, esta não mais calcada em promessas de libertação política e da hegemonia de Israel sobre seus opressores, nem ainda em milagres de restauração superficial e curas provisórias, mas na tarefa árdua de semear a possibilidade de uma nova realidade para todos os povos. Jesus entendeu que do seu ministério, assim como fizeram com o ministério profético antes dele, os seus discípulos tinham assimilado apenas o aspecto vitorioso da vontade de Deus para as suas vidas. Nunca antes Israel havia parado para ponderar sobre a superação das dificuldades que se apresentavam ao longo deste caminho, nem o quanto lhe cabia de responsabilidade para o sucesso desta empreitada. Caso Jesus permitisse que eles continuassem a pensar assim, eles imaginariam que Jesus fazia parte de um plano B, descontinuado de tudo que Deus fizera até então. A sua ressurreição serviria para que eles o vissem como uma nova divindade que veio para ser o centro de uma nova religião, e isto se tornaria no completo fracasso do plano preparado por Deus desde a fundação dos séculos, que se consumava nele, em Jesus.

E eu que pensava que era ele quem iria redimir! Através deste desabafo os caminhantes de Emaús demonstraram toda a sua decepção pelo não cumprimento de uma promessa que jamais fora prometida. Jesus já havia, por diversas vezes, rechaçado a ideia de ser ele o vingador de Israel, mas mesmo assim eles persistiam em associá-lo a esta figura da mitologia judaica. Criar falsas expectativas em torno do evangelho, colocar na boca de Jesus promessas que ele não fez e antecipar através de visões do Reino pronto e acabado, desde o começo da igreja, sempre foram as nossas melhores habilidades. Por conta disso viajamos nas experiências apofáticas, vivendo como se a realidade do Reino de Deus já fosse plena em nossos dias. Ignorando por completo que Jesus afirmou que seu Pai trabalha até agora, em nossos êxtases alucinatórios retiramos Deus do seu trabalho para entronizá-lo em nossos hinos e louvores. Não propriamente para que ele reine soberano sobre as nossas vidas, mas com a intenção velada de que possamos com ele também reinar. Queremos ter sobre as nossas cabeças o louro do triunfo que Jesus alcançou apenas após a sua ressurreição. Mas quando caímos na realidade de um mundo nada acabado e que insiste categoricamente em negar as nossas melhores experiências apofáticas, nos vemos de volta ao vazio e tomados pelo sentimento de decepção. Eu pensava que era ele quem ia curar meu pai, quem iria devolver meu emprego, quem me faria ganhar a causa na justiça, mas não foi assim que aconteceu.

A partir do ensinamento de Jesus os discípulos de Emaús se veem à volta com uma experiência apofática completamente diferente daquela que viviam quando Jesus os encontrou. Não mais as falsas promessas, não mais o sonho de Israel soberano, mas agora era a Palavra de Deus que ardia em seus corações. E isso, nada mais é do que o ardor do evangelho na sua essência mais verdadeira. Quando isso aconteceu, a vida deles mudou radicalmente. Eles voltaram pelo caminho que haviam vindo e passaram a anunciar a ressurreição não com palavras, mas entregando a própria vida, se preciso fosse. Voltaram ao centro do confronto, a sede do poder contrário ao Reino de Deus, e com todas as suas forças passaram a proclamar: Cristo está vivo, ele vive em nós. Esta é a verdadeira conversão, a troca de uma decepção por uma esperança tão grande que sem ela a vida perde o sentido de ser vivida. O caminho de Emaús marcará para sempre a transição da experiência apofática individual para a experiência coletiva de uma catequese que se traduz em uma aproximação maior do próximo e de Deus.
uma realidade que se  traduz em uma aproximação maior do próximo e de Deus. O caminho de Emaús marcará para sempre a transição da experiência apofática individual para a experiência coletiva de uma catequese que se traduz em uma aproximação maior do próximo e de Deus.

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Conversão de verdade II

Cristo e seus discípulos no seu caminho para 
Emaús, Pieter Coecke van Aelst (1502 -1556)
Para que serve o êxtase?
Em suas improdutivas buscas por uma resposta para o ocorrido, os caminhantes de Emaús transferiram a sua indignação para um elemento que até então tido como ausente chamando-o de ignorante simplesmente porque, como eles, não estava tomado por ansiedades e nem decepções: És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as
ocorrências destes últimos dias? Este é um sintoma que se pode notar na maioria das igrejas cristãs de hoje, seja qual for a sua tendência doutrinária. São os da linha carismática que se surpreendem negativamente com os tradicionais, porque estes ignoram e não reconhecem neles a ação incontestável e flagrante do Espírito Santo, que faz com que o apofático se sobressaia ao catafático nos usos e costumes dos adeptos dessa linha, ou são os tradicionais, que colocam o catafático acima do apofático, e enxergam todo esse movimento como uma forma carismatista, para não dizer caricata, que privilegia os sentimentos em detrimento da razão e, portanto, alienada de prestar culto a Deus.

De uma forma nada sutil, porém muito eficiente, Jesus lhes devolve a ofensa chamando-os de idiotas incrédulos. Ou seja, mostra que está unicamente na interpretação errada das experiências apofáticas deles a única razão da sua decepção com Deus. Mostra que esta abordagem de uma experiência apofática não leva a lugar algum, a não ser ao vazio. Se Paulo, em II Co 12, não nos faz uma definitiva explanação de qual é de fato a real utilidade das experiências apofáticas, pelo menos nos garante para o que definitivamente elas não se prestam. Paulo fala de um arrebatamento apofático que, ocorrido há quatorze anos, ainda estava tentando entender, assim como levara 15 anos para ter o que dizer de sua experiência apofática no caminho de Damasco.

Primeiramente, ele diz que experiência apofática não é para ficar contando aos outros, pois ela sempre se nos apresenta de uma forma indizível, ou, como ele mesmo afirma: impossível de se relatar. Em segundo lugar, experiência apofática não é para ninguém se orgulhar ou se projetar acima das outras pessoas. Isto serviu muito bem para a Igreja de Corinto, que influenciada pelas sacerdotisas do templo de Diana, mulheres que haviam se ligado de alguma forma a esta igreja, e com larga experiência no paganismo, estavam tentando fazer crer que quanto mais extática a experiência, tanto maior a aproximação e intimidade com a divindade. Paulo fala de um espinho colocado na sua carne e do quanto este o fez sofrer tão somente por ameaçar seguir esta linha de raciocínio.

Para arrematar, Paulo deixa claro que devido à sua pouca capacidade em digerir tais experiências, Deus, há quatorze anos, estava fazendo com que ele entendesse que, comparadas à sua graça, aquela experiência apofática serviu exclusivamente para que ficasse completamente desnudada a sua enorme fraqueza espiritual, pois ainda era necessário que ele passasse por experiências apofáticas para confirmar a sua fé. Fato que, muito provavelmente, depois desta que foi relatada, nunca mais lhe ocorreu.

O período de experiências apofáticas de Paulo havia passado. Ele chegara ao entendimento amadurecido, em que Deus não mais precisa se revelar continuamente através do sobrenatural para comunicar a sua graça. Chega a dizer que experiência apofática é útil aos que não creem, àqueles que, em virtude da sua falta de fé, necessitam ser estimulados por sinais para compreenderem a vontade de Deus nas suas vidas. Os que efetivamente creem precisam do catafático, daquilo que edifica, que consola e que exorta. Em suma, precisam da profecia revelada na Bíblia. Não foi diferente com Martinho Lutero, que ao chegar à maturidade da sua fé, declarou: Fiz uma aliança com Deus: que Ele não me mande visões, sonhos, nem mesmo anjos. Estou satisfeito com o dom das Escrituras Sagradas, que me dão instrução abundante e tudo o que preciso conhecer tanto para esta vida quanto para o que há de vir.

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Conversão de verdade I

Caminho de Emaús, Lelio Orsi(1508-1587)
E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras? E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles, Então, os dois contaram o que lhes acontecera no caminho e como fora por eles reconhecido no partir do pão. Lc 24,32-33 e 35
Não faz muito tempo ouvi um inspiradíssimo sermão do rev.
Ed Rene Kivitz sobre experiências catafáticas e apofáticas. Como estas eram palavras que eu só havia ouvido no período em que fiz seminário e por se referirem a temas bastante atuais, procurei investigá-las para ver se tinham voltado à moda. Encontrei no blog Cristão Confuso o material de uma pessoa que assinava como Zé Luís, que fazia uma abordagem deste mesmo tema a partir de um filme de 1985, rodado aqui com o título de Feitiço de Áquila. Ambos os autores falavam das duas experiências comuns em nossos cultos dominicais: a experiência catafática, que está associada à experiência do aprendizado, de onde vem a palavra catecismo, e da experiência apofática, que descreve uma experiência sensorial impossível de ser descrita ou transmitida. A grosso modo são textualmente essas as experiências que um culto, seja ele cristão ou não, pode provocar em nós.

O texto dos caminhantes de Emaús trata com riqueza de detalhes essas duas manifestações, dando-lhes a dimensão exata de uma real experiência com Deus para que apliquemos na nossa vida, como também na vida de nossa igreja. Ele detalha o verdadeiro caminho da conversão em todas as suas fases, e quando falamos em conversão não estamos somente falando da primeira conversão ou daquelas que muitos chamam de a primeira experiência com Deus. O texto trata também da conversão diária, da resposta ao desafio, da mudança de mente que o culto precisa provocar em nós. Para uma melhor compreensão, precisaremos separar o episódio em capítulos e analisá-los um a um, conforme a importância que eles conferem ao texto.

Decepção e vazio
O estado em que Jesus encontra os caminhantes de Emaús retrata muito bem o sentimento de perda e abandono em que nos encontramos sempre que uma situação adversa nos assalta. Eles haviam perdido o seu guia espiritual, daquele que durante três anos pacientemente os ensinara a grandeza do amor de Deus e a qual deveria ser a resposta a esse amor, sucumbira ante ao poder do mal. Eles, assim como nós, estavam contabilizando mais uma derrota, mais uma decepção e mais uma vez o vazio tomava conta do coração. E nós pensávamos que era ele quem iria redimir Israel, só este desabafo já nos é suficiente para uma avaliação do estado emocional em que se encontravam os discípulos quando Jesus cruza o seu caminho. Se formos enquadrar esta experiência em uma das categorias citadas acima, diríamos que é uma experiência iminentemente apofática. Era alguma coisa que transtornava a vida daqueles dois que não poderia ser transmitida em palavras. Era algo que só poderia ser experimentado individualmente, pois nem mesmo os dois que caminhavam juntos a sentiram da mesma forma. Para eles a situação era dramática, irreversível e não deixara sequer um fio de esperança.

Jesus interveio nesta crise apofática como alguém que não tinha apenas respostas, mas a solução definitiva para a crise. Quando Jesus pergunta sobre o que eles estavam falando, não estava querendo saber sobre o que tinha de fato acontecido, mas sim qual era a interpretação que eles estavam dando a tudo aquilo pelo qual estavam passando. Jesus pergunta também o porquê da sua tristeza, não para ouvir um relato da sua paixão e morte sob o ponto de vista deles, mas para conhecer os reais motivos dos seus lamentos, e onde exatamente a sua morte os havia atingido mais em cheio. Contudo, a resposta que recebeu não foi nenhuma novidade. Eram tão equivocadas quanto as que durante o seu ministério ouviu de Pedro, Tiago e João. Uma inversão radical e absoluta do sentido para o qual a experiência realmente apontava.

Indistintamente em todas as vezes que nos decepcionamos com Deus estamos olhando em direção oposta ao que ele quer nos mostrar. Invariavelmente o vazio que sentimos nunca é causado pelo seu afastamento, e sim pela nossa falta de fé. Não foi diferente com os discípulos de Emaús. Quando a presença de Jesus no meio deles apontava para a vitória eterna da ressurreição, eles ainda estavam amargando a derrota de uns breves momentos em que Jesus se deixou flagelar pelo somatório de todos os males do mundo. O que a lagarta chama de fim do mundo, o homem chama de borboleta, dizia Richard Bach.

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Licença para matar

Lapidação de Estevão, catedral de Saleilles 
E, lançando-o fora da cidade, o apedrejaram. As testemunhas deixaram suas vestes aos pés de um jovem chamado Saulo. E apedrejavam Estevão, que invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito! Então, ajoelhando-se, clamou em alta voz: Senhor, não lhes imputes este pecado! Com estas palavras, adormeceu. At 7,58-60
Saulo, respirando ainda ameaças e morte contra os discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote e lhe pediu cartas para as sinagogas de Damasco, a fim de que, caso achasse alguns que eram do Caminho, assim homens como mulheres, os levasse presos para Jerusalém. At 9,1-2
É exatamente deste jeito que Paulo nos é apresentado pela Bíblia, como Saulo, um homem seguro de suas convicções e pronto a levá-las até as últimas consequências. Alguém que pede e recebe uma carta de autorização para prender, matar e destruir. Talvez até tenha sido esta cena que inspirou, nos anos de 1980, um filme do James Bond, o agente 007, com esse nome: License to kill. Uma atitude drástica que o cinema fez parecer heroica e patriótica. Mas quem viveu os primeiros anos da fé cristã, assim como os anos de chumbo no Brasil sabe que não é bem assim que a banda toca, sabe que esta situação tem dois lados.

A questão não certo ou errado, não são os argumentos, porque estes são sempre lógicos, não é se está ou não de acordo com a lei, a questão aqui nesta meditação, é a seguinte: Porque um homem que recebera tanta poder, tendo atingido o grau máximo de autoridade, plenamente convicto de suas crenças, veio a debandar para o lado perseguido, chegando a ser o principal alvo de perseguição daqueles que antes o admiravam? O que o fez passar de perseguidor a perseguido? Algumas considerações devem ser feitas antes de tentarmos responder a esta pergunta.

Por trás de todas as mudanças drásticas existe sempre um divisor de águas. Por trás de todos os recomeços existe sempre um fato gerador da mudança. E no caso Saulo, a meu ver, foi a morte de Estevão, da qual participou diretamente. Saulo pode ver que além da razão, do direito e da tradição existe algo que supera em muito tudo isso. Algo que ele até já ouvira falar que acontecera com algumas pessoas na história do seu povo. Aqueles que, da mesma forma que o discípulo do carpinteiro, se deixaram matar pelas mãos de perseguidores implacáveis como ele, por vislumbrarem um propósito mais elevado. Saulo, antes de se tornar Paulo, foi testemunha de um ato de fé que o deixou de mãos amarradas, preso, desfalecido de suas convicções e que destruiu todos os seus melhores conceitos. Dez ou quinze segundos da fé de Estevão foram suficientes para abalar trinta bons anos de ensino rabínico que ele aprendera desde sua infância.

A fé prima por este propósito: encorajar os perseguidos por causa da justiça, e fazer calar o inimigo e o perseguidor. Ter fé em Deus é aceitar os seus desígnios em nossa vida, e não a convicção de que será sempre livrado do mal. Para Saulo continuar firme na sua perseguição contra a igreja nascente bastava apenas um sinal de fraqueza por parte de Estevão. Bem mais do que sua morte por apedrejamento, ele queria a rendição, a negação da fé e a aceitação da opressão, e a fé é negação, mas a negação de tudo que Saulo mais esperava de Estevão.

Uma segunda consideração leva em conta que Saulo perseguia pessoas judias como ele, filhos de Abraão como ele, instruídos na mesma tradição e herdeiros da mesma herança que ele. Era quase como se perseguisse a ele mesmo. Será que pelo menos um dia da sua vida Saulo não acordou com vergonha de ser da maneira como Deus o havia criado? Será que nem por um dia foi humilhado na sua condição de ser humano pelo Império Romano? Por mais que reconhecesse em si a autoridade que lhe havia sido dada, em algum momento da sua história de vida ele se viu na condição humilhante de subalterno de uma poder ainda maior do que o do Sinédrio judeu. Por menos que fosse a sua capacidade de analisar criticamente os seus dois estágios, ele aprendeu pela própria experiência que de fato existem dois lados em uma perseguição.

Alia-se a isso o som das pedras lapidando o corpo de alguém que não esboça o menor receio diante da morte iminente. Os romanos tiranizava o povo judeu em uma escala de poder que não deixava margem alguma para que se pensasse em um tipo de libertação a curto e a médio prazos. Por outro lado, os líderes judeus tiranizavam os segmentos menos favorecidos da sociedade com leis e preceitos religiosos que também não os permitiam sequer sonhar com a liberdade. E Saulo se depara com alguém que tinha ao alcance da mão tudo para se livrar do martírio, bastando negar alguns preceitos de sua fé, e tão aceita sobre si toda intolerância.

Saulo se viu diante de alguém que podia julgar sem medo a conjuntura política e religiosa que ele ferrenhamente defendia, sem nunca ter questionado, por que tinha medo do que lhe aconteceria em seguida. Saulo viu naquele apedrejado uma segurança muito maior do que aquela que ele procurava em todos os itens da lei que defendia. Uma sensação de dever cumprido que nem a atitude mais estrema em favor do judaísmo havia lhe garantido até então. Sua licença para matar estava cancelada. Não por ordem superiores, mas por uma fé que a tornou inteiramente inócua. 

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Romanos – Justificação pela fé

A Parábola dos Cegos, Pieter Bruegel (1525-1569)
Assim como Jesus ficou conhecido como o teólogo do Reino de Deus, Paulo tem que ser reconhecido como o teólogo da justificação pela fé. Muito embora a conclusão desta doutrina esteja na boca de todos os cristãos,
quando a reafirmam através de versículos bíblicos, que mais são do que a consequência natural do ensinamento deste postulado de fé, poucos realmente se interessaram pelos seus pressupostos. Assim como querer usufruir de resultados sem procurar discernir os meios que a levaram a eles, a igreja vive de promessas sem se interessar pelos seus fundamentos. Parece que a palavra teologia traz consigo a abominação de tudo aquilo que nega a ação espontânea do Espírito Santo. Para muitos a ação deste Espírito não está condicionada a qualquer preceito estabelecido, como se essa figura da Trindade fosse inteiramente distinta e autônoma da demais. Desta forma, não há como não se traçar um paralelo entre a supremacia do Espírito Santo na igreja de hoje com a inquestionável autoridade da lei de Moisés para o grupo judaizante que queria tomar as rédeas da Igreja de Roma.

É exatamente este ponto divergente que Paulo vai atacar com a doutrina da justificação pela fé. Quase que atropelando os mais fundamentais itens da lei, Paulo retrocede até Abraão, para, a partir dele, expor de onde realmente procedem as promessas, as quais aqueles que se julgam “eleitos” se orgulham de possuir por mérito e com exclusividade. Paulo simplesmente citou a verdade mais absoluta que se pode encontrar na conversão do patriarca da fé: E creu ele no SENHOR, e foi-lhe imputado isto por justiça. (Gn 15,6) Através deste conhecido e irrefutável argumento, Paulo reafirma o elemento mais fundamental na relação com Deus é fé. E vai mais longe quando diz que Abraão não andava segundo a lei quando recebeu as promessas de Deus, pelo contrário, era mais um entre os pagãos adoradores de ídolos, sendo que pertencia a uma família que era destacada por ser fabricante destas imagens. Paulo quis dizer que Abraão não foi aceito por Deus pelas boas obras que praticava, nem que foi plenamente justificado pela espiritualidade em que vivia.

Quando a Bíblia afirma que Abraão creu em Deus, não está nem de longe querendo nos fazer acreditar que Abraão possuía um conceito monoteísta de Deus tão elevado quanto o do profeta Isaías, nem que era profundo conhecedor das entrelinhas da lei quanto o maior dos fariseus, ou que recitava de cor todos os credos. A Bíblia fala de uma simples entrega. A palavra crer vem da expressão COR DARE, ou seja, dar o coração, e foi apenas isso que fez de Abraão um homem justo, o fez ser aceito ser aceito por Deus, e se tornar o pai da nossa fé.

É importante observar que Paulo passa a anunciar que o sinal desta entrega, que anteriormente era estabelecido pela circuncisão, é agora o batismo. Paulo não rechaça este preceito, contudo faz com que ele seja restrito apenas aos judeus, apenas como preservação de uma ligação cultural. Paulo não quis dizer que a consanguinidade, a partir de Cristo, não era mais condição da eleição, mas que agora a fé é quem fazia com que os homens se tornassem filhos de Abraão. Ele muito menos afirmou que a circuncisão não era mais a garantia da herança das promessas, e que fora substituída pelo batismo. O que de fato ele disse é que estes elementos nunca foram preponderantes e necessários, se observados através da importância da fé. Deus em Cristo não mudou de planos e nem se ajustou a novas condições para levar a cabo o seu plano de salvação. Todos os recomeços na história de Israel, assim como os adendos ao plano inicial são sinais da misericórdia de Deus, que é ainda maior do que a dureza do coração dos homens.

Mas se não é através de uma nação organizadamente constituída, de um regime teocrático de governo, de uma lei única e imutável, como sobreviverá agora o povo de Deus? Em primeiro lugar viverá dos dons do Espírito, outorgados segundo a necessidade de todos e segundo a fé de cada um dos membros. Em segundo lugar, viverá inserida no mundo, no âmbito das organizações existentes e debaixo das autoridades constituídas. Este povo também não poderá viver segundo a pretensão de que é naturalmente uma autoridade instaurada por Deus para guiar os destinos do mundo, pelo contrário, este povo está debaixo desta autoridade, e esta sim, debaixo da autoridade de Deus. Finalmente, dar o valor devido às tradições, sabendo que os costumes são secundários. Se há cristãos apegados e tais costumes, cumpre aos outros respeitá-los, e a estes entender que o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas a decisão do coração que se entrega, porque crê na promessa cumprida em Jesus Cristo.

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Romanos – Lavando a roupa suja

Circuncisão de Isaac de Baumgartner (1850-1924)
Podemos imaginar o problema causado pela volta em massa dos judeus a Roma no comércio, nas atividades liberais, bem como na questão da habitação. Mas não são exatamente esses os problemas tratados na carta. Ela fala dos problemas de adaptação do grupo
judaizante à comunidade essencialmente gentílica em que havia se tornado a Igreja de Roma. As doutrinas e práticas haviam evoluído no sentido contrário aos moldes instituídos pelos judeus cristãos, quando estes fundaram a igreja. Para os judeus nada mais justo do que o simples e incondicional retorno à tradição, uma vez que foi esta que levou a comunidade ao estrondoso crescimento.

O desconhecimento que Paulo tinha daquela realidade vigente era um complicador a mais, uma vez que tomar partido de um grupo em detrimento do outro causaria a ruptura total da igreja, e isso era o que o apóstolo menos precisava. Entretanto, mesmo que municiado de parcas informações, baseando-se na sua experiência com outras igrejas, foi extremamente preciso em detectar aqueles que maldosamente estavam tirando partido da situação para imporem aos demais uma doutrina que servisse aos seus interesses pessoais, egocêntricos e lucrativos. Contra estes, mesmo à distância, Paulo declara toda a sua intransigência: Rogo-vos, irmãos, que noteis bem aqueles que provocam divisões e escândalos, em desacordo com a doutrina que aprendestes; afastai-vos deles, porque esses tais não servem a Cristo, nosso Senhor, e sim a seu próprio ventre; e, com suaves palavras e lisonjas, enganam o coração dos incautos. Pois a vossa obediência é conhecida por todos; por isso, me alegro a vosso respeito; e quero que sejais sábios para o bem e símplices para o mal. E o Deus da paz, em breve, esmagará debaixo dos vossos pés a Satanás. (16,17-20).

Paulo jamais pode ser confundido com um teólogo de gabinete. Sua mensagem tinha ligações profundas e estreitas com a sua prática, e não seria na Carta aos Romanos que ele mudaria o seu estilo. Podemos concluir então que a interferência nos problemas locais abordados na carta, não era nem de longe o seu objetivo, mas que ele visava, antes de tudo, o seu apostolado missionário. É a partir de Roma que Paulo começa a perceber os problemas da expansão missionária, e o quanto esta ameaça a unidade da igreja. É a partir daí que ele começa a se perguntar: Poderia a Igreja de Roma fazer parte do corpo de Cristo, estando ela geográfica e doutrinariamente distante da igreja mãe, conquanto recebesse dela apenas breves notícias? Poderia esta igreja transformar-se na base espiritual, material e estratégica em seu intuito de evangelizar a Espanha, sem ferir a autoridade da Igreja de Jerusalém?

Não seria difícil para o experimentado apóstolo responder a este desafio imediato com uma doutrina que traduzisse a necessidade de adaptação às novas condições. Somente isso faria com que as várias comunidades que formavam a Igreja de Roma estabelecessem um tipo de organização que mantivesse a unidade interna, e a projetasse exteriormente como uma igreja sólida e coerente. Demonstraria respeito e submissão ao colégio dos Doze apóstolos e à tradição apostólica de Jerusalém. Como poderia também, com os olhos voltados para a desproporcionalidade entre as duas cidades, fazer de Roma a verdadeira capital do Cristianismo gentílico, o que ia ao encontro das aspirações tanto de judeus cristãos como de cristãos de origem pagã.

Mas não é isso que acontece, e sim efetivamente o contrário. Em vez de apresentar soluções externas, Paulo vai buscar afirmação na realidade mais profunda que essa igreja apresentava: a quase impossível convivência entre os dois grupos de cristãos de Roma. Utilizando-se do mistério da encarnação de Cristo que derruba de vez a barreira religiosa e racial erguida pelo legalismo mosaico, ele faz a igreja enxergar que pela fé, todos indistintamente usufruem das promessas feitas a Abraão, pelo batismo estão imediatamente incorporados ao grande rebanho de Deus, e igualmente orientados e consolados pelo Espírito Santo. A esta incipiente igreja Paulo apresenta a sua principal doutrina, a justificação pela fé, que como condição fundamental exige a unidade dos cristãos acima da uniformidade de princípios, e a continuidade da igreja como projeto de Deus para salvar o mundo.

Mais do que apresentar uma novidade, Paulo desconstrói o estigma milenar de que fé do antigo Israel se fundamentava na lei, como pensavam todos os judeus, mas na fé mostrada por Abraão. Não pela lei que veio depois, mas foi pela fé que o povo judeu fora recrutado. Portanto, se a economia da salvação de Deus fundamenta-se na fé, não na lei nem na consanguinidade, os gentios não somente são beneficiados com as antigas promessas cumpridas em Cristo, mas são também ramos do tronco em que os judeus foram, sem mérito algum, enxertados. Este é fundamento que afirma a unidade e mantém a continuidade da igreja, apesar dos distintos históricos de seus membros.

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Romanos – introdução e contexto.

Incêndio de Roma de Hubert Robert (1733-1808) 
O blog Amós Boiadeiro experimentará uma alternativa diferente da que vinha praticando até então.Passaremos ocasionalmente  a nos dedicar ao estudo de um livro da Bíblia em particular. Contudo,
estaremos sempre propensos a mesclar este estudo com  meditações que se façam necessárias ou circunstanciais. O livro escolhido, após minuciosa seleção, foi aquele que é o maior e mais completo tratado de teologia bíblica já escrito até hoje. Foi o livro que motivou Martinho Lutero a promover a Reforma na igreja Cristã, assim como inspirou John Wesley no dia em que sentiu seu coração aquecido de forma estranha. Estamos falando da epístola que Paulo, o apóstolo dos não judeus, escreveu objetivamente para os desconhecidos e problemáticos cristãos de Roma.

Contexto cristão
Estamos no ano 56 da nossa era, e Paulo encontra-se em Acáia, após o término da sua terceira viagem missionária. Em uma estada de três meses ele escreveu esta epístola, e, antes de partir para Jerusalém, designou Febe, diaconisa de Cencréia, como portadora. O evangelho já havia sido anunciado e aceito na parte ocidental do Mediterrâneo, e agora, o apóstolo que se recusava terminantemente a semear sobre a obra de outro, planejava evangelizar a Espanha. Para levar a cabo a desafiadora tarefa não poderia mais contar com a Igreja Mãe, pois além de estar financeiramente arrasada, ficava muito distante, o que a impossibilitava de ser, como havia sido até então, a base do empreendimento missionário.
A origem da Igreja de Roma é desconhecida. Não foi fundada por Paulo e nem por outro apóstolo conhecido. Problemas que são revelados no corpo da carta são fortes indícios de que ela foi uma obra de viajantes judeus cristãos que migraram para Roma, fugindo da crise financeira que assolava todo o império. 

O número dos cristãos em Roma, nesta época, já era maior do que quarenta mil, e, em sua maioria, era formada por judeus que foram levados cativos por Pompeu, e que foram soltos mais tarde, passando assim a serem chamados de libertos. Esse agrupamento espontâneo de fiéis imediatamente levantou suspeitas por parte da guarda imperial, que em 49, por ordem do imperador Cláudio, havia expulsado os judeus de Roma, e que estavam voltando, após a morte deste, por beneplácito de Agripina, mãe de Nero, e Pompéia Paulina, esposa de Sêneca, seu tutor, ambas simpatizantes dos judeus.

O motivo da simpatia de Pompéia é desconhecido, mas o de Agripina é bem conveniente, uma vez que estava sob suspeita do envenenamento de seu tio e esposo Cláudio, beneficiando diretamente seu filho Nero. Há quem sustente a tese de que toda a trama fora financiada pelos exilados, que estavam decididos a voltar à capital. Com o retorno dos judeus cristãos a igreja viveu momentos de tensão e agitação, o que justificou a citada desconfiança da polícia romana e a colocou na ilegalidade as reuniões de culto. Suetônio, escritor romano, descreve que as varias agitações ocorridas entre os judeus eram promovidas por um certo Cresto. Convém lembrar que as vogais E e I em latim possuem sons bem parecidos.

A comunidade cristã de Roma, que era composta de convertidos do paganismo, via-se livre dos elementos judaicos impostos pelos judeus cristãos em seus cultos, e passou a adotar costumes próprios, que foram, de forma contumaz, condenados pelos judeus em seu regresso. É a esse contexto heterogêneo e fervilhante que Paulo dirige a sua carta. Podemos verificar nos capítulos 14 a 16 que Paulo tinha poucas informações a respeito do que estava acontecendo ali, e daí percebermos a sua dificuldade em contar com uma igreja tão problemática como sede do seu maior desafio missionário.

Contexto romano
Roma, o centro do Império Romano, estava atravessando uma dramática crise financeira ocasionada pelo descontrole do governo do Imperador Gaio, conhecido por Calígula. Seus gastos exorbitantes levaram o império a um caos econômico que só pôde ser sanado com os tesouros confiscados do templo de Jerusalém no ano 70. Cláudio nada mais fez do que administrar dívidas, passando ao seu sucessor um problema tão grande quanto o que recebera. Seu afilhado Nero, por sua vez, não tomou conhecimento da situação, e aumentou ainda mais o rombo financeiro do estado. Seu maior desvario foi a reconstrução de Roma, que o levou a provocar um enorme incêndio que devastou boa parte da capital. Em um possível conluio com os judeus que haviam patrocinado a sua ascensão ao trono, convenientemente culpou os cristãos pela tragédia, o que ocasionou a primeira perseguição oficial a este grupo.

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Sofrer por amor a Cristo IV

Louis Gosset Jr. e Mike Higgenbottom nos papéis
de pastores no filme O Poder da Graça, de 2011
Meditação baseada no Salmo 63.
Ainda existe um terceiro erro que é a má interpretação do Maranata, vem Jesus. É o vem Jesus e arrebata a tua igreja. Vem Jesus e separa aqueles que estão destinados à salvação daqueles que
irremediavelmente estão condenados à perdição. Será que eu estou enganado, ou em algumas dessas orações que pedem a urgente volta de Jesus, estão embutidos desejos de vingança contra desafetos, e condenações sumárias a adversários? Quando se ora “vem Jesus, arrebata a tua igreja” não há por trás disso a intenção de que os não cristãos e até mesmo alguns cristãos sejam deixados para queimar no fogo do inferno? Explicitamente talvez não, ninguém é doido para conscientemente afirmar tal coisa. Mas se olharmos profundamente a intenção inconsciente é o que se pode concluir.

Quem faz orações deste tipo deveria ler o que Deus respondeu para Jonas no deserto quando este pedia pela destruição de Nínive: Jonas, você está comovido com a morte de uma planta que você não fez nascer e nem crescer, um mamoeiro que numa só noite nasceu e pereceu? Como não hei de ter compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda? Deveria experimentar a decepção que discípulos sentiram quando pediram fogo do céu para consumir uma cidade que não recebera muito bem a mensagem do evangelho, e Jesus os interpelou dizendo: Vocês não sabem de que espírito são? Vocês desconhecem a natureza do espírito pelo o qual foram chamados? Alguns manuscritos ainda acrescentam: Esse homem que está aqui, não veio para destruir vidas, mas sim para salvá-las.

Para encerrar, recentemente vi um filme em que um pastor novo consulta o avô, também pastor, sobre o que fazer com uma pessoa que Deus havia colocado em seu caminho e estava lhe perseguindo. E o velhinho atônito perguntou: O que você está dizendo? Que Deus colocou alguém no seu caminho? Responda-me uma coisa: Quem é que está a serviço de Deus? Quem é que foi chamado para ser seu servo? Quem é que ora todo dia seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu, não é você? E agora tem a coragem de me dizer que Deus colocou alguém no seu caminho. Veja se enxerga rapaz! Deus não colocou pessoa alguma no seu caminho. Colocou você no caminho dela.

O pastor novo estava cometendo o mesmo erro que o salmista. Um erro que frequentemente cometemos. Por isso que eu disse lá em cima que é um mal que podemos evitar. Contudo, imaginar que se pode pregar as verdades de Deus sem ser incomodado, sem ser perseguido é pura ilusão. Jesus disse: desde os tempos de João Batista o Reino de Deus sofre violência, e os violentos tentam impedi-lo (Mt 11,12). É erro de achar que os obstáculos do ministério cristão serão removidos por Deus através de um simples apelo. Somente depois da visão da glória de Deus, somente depois que percebeu quem era o Deus a quem estava servindo, que ele pode entender a sua realidade. Deus estava fazendo justamente o contrário, colocando ele, o salmista, no caminho dos perseguidores da sua Palavra.

Djavan compôs uma música cuja letra diz: O que é o sofrer, pra mim, que estou jurado pra morrer de amor? Letra copiada escancaradamente de Paulo, quando diz em Romanos: Por amor de ti enfrentamos a morte todos os dias, e já fomos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro. Então, o que é uma perseguiçãozinha para quem foi chamado a morrer pelo evangelho? A reação do salmista à perseguição resultou, naquele momento, na derrota do inimigo, para a humanidade, em todos os tempos, resultou no salmo 63, essa maravilha da literatura bíblica, que Deus tem usando para nos mostrar que ele colocou a sua igreja no caminho do mundo, e não o mundo no caminho da sua igreja.

Eu vou parar por aqui, mas não sem antes dizer que felizmente este salmo não é somente denuncia e condenação. Não é só pauleira, como o livro do profeta Naum, nele existe um divisor de águas. Existe uma referência que divide os estados do antes e do depois; a angústia do gozo; a apreensão do louvor; a perseguição da vitória. E é nessa referência que o salmista busca o consolo e força. Não é nada consistente como a chegada da cavalaria. Nos filmes de bang bang, quando a cavalaria chegava, todo mundo estava salvo. A referência do salmista não passa de uma frágil lembrança. Lembrança de um passado distante. Ele dormia sobressaltado, acordou com a boca seca e com o corpo exausto; foi quando se lembrou de uma experiência vivida na casa de Deus, aí tudo se modificou. Aquele que estava com medo da morte, descobriu algo que é melhor do que a vida. Quem fugia desespe­rada­mente do adversário, voltou-se contra ele de mãos levantadas em nome de Deus. De perseguido, passou a se empenhar em calar a boca dos mentirosos. Apenas a lembrança do dia em que viu a glória de Deus no templo, foi suficiente para lhe dar a certeza de que, mesmo que ele viesse a morrer, o inimigo não triunfaria e a palavra de Deus, por fim, prevaleceria.


Louis Gossett Jr. e Mike Higgenbottom, nos papéis
de pastores no filme O Poder da Graça, de 2011

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Sofrer por amor a Cristo III

Cerberus, o guardião dos portões do Hades,
ilustração de Gustave Doré para a Divina Comédia
Leiam Salmo 63
A terceira é a revelação que encerra o salmo, e com ela encerro também esta meditação. Diz o versículo 11: O rei, porém, se alegra em Deus... pois tapará a boca dos que proferem mentiras. Eu disse no começo que esse
versículo fala de uma pessoa que está em fuga pela pregação da verdade, ameaçada por um forte inimigo. O que não deixei claro é que a palavra hebraica traduzida por rei pode significar sacerdote e também pode se referir a uma pessoa que está a serviço de Deus. Se o texto fala de um servo de Deus que proclama a verdade, seja ele rei ou não, não é difícil concluir que trata do confronto entre a verdade de Deus, e as “verdades” que sustentam a realidade adversa a ela. Podemos dizer que este texto leva a assinatura de todos os profetas e profetizas que, em nome de Deus, ousaram desafiar a realidade vil do seu tempo. Tem o carimbo de todos aqueles que têm fome e sede de justiça, seja na política, nas finanças, e, por que não, na igreja.

Então, se existe um confronto entre a verdade de Deus e a realidade de um sistema iníquo, não há porque o servo de Deus fugir. Este salmo não é exatamente um salmo de socorro na hora da aflição, porque ele não oferece uma rota de fuga, pelo contrário, ele desafia ao salmista a lutar contra o inimigo. A alegria última do salmista deve ser pela vitória total, e não por uma fuga bem sucedida. A mensagem transmitida é a luta constante contra as realidades que desafiam a verdade de Deus, e que cada um, a seu tempo, precisa lutar contra a sua realidade até que a verdade de Deus prevaleça. É sobre esta intensa disputa entre a verdade de Deus e as “verdades” que estão sendo pregadas hoje, que eu gostaria de me restringir.

Alguns, não poucos, cristãos adotaram recentemente uma terminologia que soaria totalmente estranha aos ouvidos dos mais antigos. Eu não ia querer ver a cara do meu pai, que se estivesse vivo teria 111 anos, se de repente me ouvisse dizendo algo como: Tá amarrado em nome de Jesus. Imagino que ele ia olhar por cima dos óculos e achar que não ouviu o que realmente eu dissera, porque a frase iria soar-lhe completamente absurda. Até hoje não sei de que texto bíblico esta expressão foi tirada. Mas se foi de Mt 19, que diz que para se tomar os bens de um homem valente, é preciso antes amarra-lo, não vejo aí consistência que respalde afirmativa tão contundente. Porque, o que se pode concluir de fato é que podemos amarrar Satanás e as obras do mal apenas com palavras de ordem. Implicaria em acreditar que seria suficiente dizer “está amarrado em nome de Jesus” para a criminalidade, o tráfico de armas e drogas, os adultérios, e a violência em todos os níveis serem extintos, pelo menos no perímetro alcançado pelo som da nossa voz.

Mas mesmo aqueles que não fazem uso desta expressão, acham que ela é do tipo que se não faz bem, mal não faz. Pura inocência, faz mal e mal demais! Em primeiro lugar, porque, quase que invariavelmente, transfere para outro a culpa que é nossa. O diabo passa a ser o único culpado de todo mal que nós, seres humanos, praticamos. Em segundo lugar, transfere para Jesus a responsabilidade que também é nossa. Expulsar o mal do mundo é a primeira, senão a única tarefa, que aqueles que se dizem servos de Deus, são chamados a realizar. O “tá amarrado” quer tomar o lugar da indignação, do não conformismo, da ira contra o mal. O “tá amarrado” quer assumir o valor da pregação profética e da denúncia que a Bíblia faz contra a iniquidade. Seria como tentássemos substituir a profecia de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós por um simples chavão. Por um jogo de palavras que não somente provocasse o mesmo efeito da profecia, mas que também nos livrasse das perseguições e angústias, que sofreram, não somente eles, mas todos aqueles que, em nome de Deus, incluindo o nosso salmista, levantaram as mãos. Para o bem da verdade, o único que tem que ser amarrado é o próprio tá amarrado.

Outro erro crasso, que tem se tornado verdade para a modernidade cristã, é admitir que o mundo, criado por Deus, foi invadido e conquistado por Satanás. Este, talvez seja influenciado pelas palavras de João, que, pela perseguição romana vendo o mundo ruir à sua volta, desabafou: O mundo jaz no maligno. Mas devemos nos lembrar de que este é apenas um versículo numa imensidão de outros que afirmam categoricamente que Deus está no controle, que a última palavra ainda é sua. Pedro diz em Atos: Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo. Paulo, quando escreve aos filipenses: Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai. O próprio João mais tarde vai tratar deste assunto, não mais como desabafo, mas com força de manda­mento: Todavia, vos escrevo novo mandamento, aquilo que é verdadeiro nele e em vós, porque as trevas se vão dissipando, e a verdadeira luz já brilha. E, como não poderia deixar de ser, o outro João, praticamente encerra o apocalipse dizendo: Os reinos do mundo vieram a ser de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o sempre.

Quando alguém nega o consenso da Bíblia, para se apegar a um único versículo, só pode mesmo concluir que o mundo está perdido e não vai ter Cristo que dê jeito. E é daí que vem as campanhas particulares de evangelização: Deus, salve o Brasil. Deus, salve o meu estado, a minha cidade. Deus, salve a minha casa. Equivale a dizer que a igreja agora está isenta de colaborar com Deus no seu propósito de salvar o mundo, mas, que, devido às circunstâncias, deve apenas restringir-se a alguns locais e algumas pessoas, sobre as quais ainda se pode ter alguma esperança de salvação.
Como é triste ver o quanto a graça de Deus é subestimada. Imaginar que a graça de Deus pode salvar apenas alguns, quando na realidade, somente ela pode salvar o mundo. Somente ela pode reconciliar o inconciliável, resgatar o defi­ni­tivamente perdido, levantar o irremediavelmente caído. Quem não acredita nisso é me­lhor fazer outra coisa aos domingos. Na contramão da história John Wesley dizia: Dai-me cem homens que nada temam senão o pecado, e que nada desejem senão a Deus, e eu abalarei o as estruturas do inferno. Bem de acordo com a pregação de Jesus: Pedro, tu és pedra, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela

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