![]() |
A queda de Jerusalém por Roberts Siege em 1683 |
Um telejornal mostrou a cena de uma senhora idosa, ajoelhada em uma ponte, clamando a Deus que livrasse, a ela e à sua cidade, da enchente que assolava a região do rio Itajaí,
Senhor, não permita que o rio inunde as nossas casas de novo. Uma cena comoventemente triste, e de um apelo emocional que dificilmente deixaria de sensibilizar o mais duro coração. Como conhecemos bem a índole dessa famosa emissora, e o seu antagonismo declarado à fé cristã, temos que concluir que, ao colocar no ar essa reportagem sensacionalista, a sua equipe de telejornalismo tinha absoluta certeza de que a cena provocaria apenas um questionamento entre os céticos: Se existe realmente um Deus, por que ele não vê isso?
Muito embora possa soar como blasfêmia aos nossos ouvidos, temos que admitir que mesmo pessoas que possuem uma fé esclarecida e que não duvidam da existência de Deus; no instante em que são tocadas pela comoção de cenas, como a que foram mostradas, dúvidas atrozes sobre a consciência de Deus afloram naquele momento. E, em meio a incertezas, completamente aturdidas, e ainda que temerosas, essas pessoas são quase que involuntariamente são tentadas a pensar: O que Deus está fazendo numa hora dessas?
Contudo, ainda existem aqueles que nunca ousam questionar a onipresença ou a onisciência de Deus. Que jamais erguem suas mãos aos céus em sinal de protesto. Mesmo essas pessoas que aceitam submissamente a vontade de Deus, sem ponderações ou queixas, na hora em que são assaltadas pela dor de uma tragédia próxima, o recanto mais íntimo dos seus corações abriga uma pergunta não quer calar: Porque Deus não responde positivamente a orações sinceras e justas como a dessa mulher?
Tenho pra mim que este breve relato encerra o quadro dos sentimentos e sensações a respeito de Deus, que as catástrofes, naturais ou não, provocam em todos nós. Tenho pra mim que estes são os questionamentos viáveis para grande maioria das pessoas que somos e conhecemos. Somente um santo ou uma santa, na mais precisa concepção da palavra, não cobraria de Deus uma resposta, ou faria qualquer tipo de questionamento diante do infortúnio. Nem mesmo Jó, o intitulado campeão da resignação, foi tão santo assim. Contudo, se há alguém aqui cuja vida contrarie o que eu disse, ou alguém conhece uma pessoa que não se encaixe nas hipóteses levantadas, que me perdoe, porque eu não sou assim e nem conheço quem o seja. Perdoe-me pelas citações, e perdoe por trazer uma meditação que não tem nada a ver com você. Mas, mesmo constrangido, vou seguir em frente.
O grande teólogo Dietrich Bonhoeffer dava o nome de Desperatio a situações como a dessa mulher catarinense. Situações em que os transtornos da alma são tão intensos. Situações em que a aflição é tão premente, que os questionamentos já não são mais dirigidos aos motivos causadores da tragédia, e nem às circunstâncias em que ela acontece, mas diretamente a Deus. Situações em que o desespero não permite qualquer atitude desesperada, porque elas causam o aniquilamento completo da vontade e da esperança. É o encontro da pessoa com o caos original, quando o Espírito de Deus pairava sobre as águas, e ainda não havia sequer criado a luz. É a destruição total do ser e do existir. Esta é a declaração de impotência de quem se encontra completamente prostrado diante do ímpeto do infortúnio e nada pode fazer, senão clamar por socorro à providência divina.
E eu queria chamar a atenção de vocês para a situação descrita no salmo 44, que se anuncia ser bastante parecida com a mostrada pelo telejornal. O povo, após ter sofrido uma tragédia avassaladora, vem vindicar junto a Deus uma resposta, cobrar uma atitude e pedir explicações. O salmista quer saber quais foram os motivos que levaram Deus a permitir o ocorrido, e por que esconde o seu rosto nessa hora. E é deste cenário de tragédia e questionamento relatado no salmo que, juntamente com vocês, pretendo tirar algumas conclusões e fazer outros tantos questionamentos.
Uma conclusão que pode ser tirada de imediato da leitura do salmo é: Que grande cara de pau tinha esse salmista. Ele teve a desfaçatez de dizer: Olha Deus, nós não fizemos nada de errado. Nós cumprimos todos os seus mandamentos. Nós fomos fiéis a ti e a tua Palavra em todas as circunstâncias, e mesmo assim tu ainda tiveste a coragem de nos abandonar e nos deixaste passar por tudo isso? Uma coisa é certa neste salmo, a teologia do salmista já era bem mais desenvolvida do que a de muita gente hoje, pois ele já não possuía o tipo de fé retrógrada, que creditava ao poder de anjos e demônios as desgraças que o assolavam. Eu imagino que ele esteja escrevendo depois de uma das grandes derrotas do povo judeu. Ou foi imediatamente após 722, quando destruíram Samaria, ou após 586, na queda de Jerusalém. Tenho pra mim que apenas uma dessas desgraças poderia perturbar de tal forma a cabeça de um judeu, a ponto de levá-lo a fazer um protesto com tamanha veemência.
Mas eu pergunto: Qual foi o dia em que o povo de Israel pode fazer este tipo de oração? Qual foi o dia em que o povo de Deus esteve em condição de contestá-lo dessa forma, inculpável diante de Deus? Não bastassem os escritos proféticos, a pregação de homens e mulheres que geração após geração, em nome de Deus, deixaram registradas denúncias sobre o caos econômico, a exploração do trabalho humano, a degradação moral e as safadezas nos cultos aos deuses estrangeiros, temos também o relato da história secular que afirma categoricamente que não foi nada disso. Que o salmista está reivindicando uma justiça da qual não fazia jus. Não foi Deus quem os abandonou. Eles como pessoas, como povo e como nação haviam abandonado Deus há muito tempo, e agora estavam sofrendo as consequências, que naturalmente ocorrem quando as leis primárias de Deus, que nada mais são do que leis humanitárias, não são cumpridas.
A cobiça pelo poder havia dividido o povo de Deus em duas nações. A degradação moral havia destruído o vínculo familiar. As festas e bebedeiras nos cultos às divindades pagãs haviam consumido as suas riquezas. A prostituição religiosa havia drenado a força e pervertido o caráter dos jovens. O país vivia em constante estado de guerra civil. E onde ricos oprimem pobres, logicamente não faltam aqueles que esperam ansiosamente a chegada de um grande mal, gente que quer ver o circo pegar fogo, como dizemos. A vingança de quem não tem nada a perder, é se empenhar para que aqueles que tem algo a perder, efetivamente percam. (essa meditação continua amanhã)
0 comentários:
Postar um comentário