Do pecado, da justiça e do juízo

Lapidação de Estevão, Juan de Juanes 
Leia em João 16,4-15 o fundamento desta meditação.

Para um povo de princípios teocráticos, que acredita que o governante supremo e único de todo o universo é o seu Deus, crer e confiar nele são quesitos essenciais para a sua subsistência. Para os hebreus, descendentes imediatos de Abraão, a aliança de Deus com este patriarca os manteve unidos em uma fé e em um só propósito, até que a nova aliança,
estabelecida no Sinai e institucionalizada por Moisés, reunisse diferentes tribos sob um projeto de nação. A espantosa libertação do Egito, assim como a improvável conquista da Terra Prometida, não seriam possíveis sem que a mínima noção de povo se configurasse entre aquelas pessoas das mais diversas tribos. A partir de então, o descumprimento de qualquer dos itens da aliança passou a ser considerado um delito. Embora esta palavra ainda não estivesse presente no seu vocabulário, o não cumprimento da aliança por parte dos indivíduos ou de toda a nação tornou-se um pecado cometido contra a outra parte da aliança, isto é, contra Deus.

Não poderia ser diferente, posto que enquanto as nações vizinhas sacrificavam com a intenção de atrair os favores de seus deuses para que estes entrassem juntamente com seus exércitos nas batalhas, diferentemente Israel não teve, nestas citadas conquistas, o seu Deus lutando ao lado dele, mas sim lutando por ele, no lugar dele. É sempre bom lembrar que os hebreus foram libertos da maior potência bélica do mundo de então sem desembainhar uma única espada. Que fique registrado também que a Terra Prometida não estava deserta e receptiva. Nela habitava um povo mais numeroso e com tecnologia superior, posto que enquanto Israel lutava com armas de bronze, seus inimigos filisteus já dominavam o ferro e algumas de suas ligas. Suas armas eram tão mais superiores, que perfuravam os escudos de proteção, tornando-os totalmente inócuos.

A tomada das terras pela guerra pode não encontrar muitos simpatizantes na cultura atual, mas na época não havia outra maneira, era matar ou ser morto, conquistar ou ser escravo. Os conflitos pela terra, por recursos naturais e por alimentos eram muito comuns, inclusive entre tribos de uma mesma nação. Embora alguns não considerem válido o pretexto de se por fim às práticas abomináveis que entre os povos daquela terra era frequente, como o sacrifício de crianças inocentes, por exemplo, não há como imaginar que isto se pudesse se dar sem derramamento de sangue. Ainda que não totalmente convictos, devemos contabilizar esta conquista na conta do pecado das nações vizinhas. Fazia-se necessário que uma mínima consciência de delito contra o consenso de justiça natural se estabelecesse para o bem comum. O barbarismo deveria cada vez mais dar lugar a um mundo que pudesse ser chamado de civilizado.

Como era de costume universal, a justiça era sempre ditada pelo mais forte. Até mesmo, o ainda hoje aclamado primórdio do direito, o Código de Hamurabi, fazia distinção clara de como deveria ser exercida uma justiça para o servo e outra para o seu senhor. As leis humanitárias do Deuteronômio não somente vieram para igualar a todos em um mesmo patamar, como estabeleceram a moralidade da justiça, acima do rigor do direito. O mundo passou a conhecer, através da aliança que se propunha viver Israel, um Deus que se preocupava mais com o relacionamento das pessoas entre si do que propriamente do relacionamento com ele. Praticar a injustiça contra qualquer pessoa tornar-se-ia um delito cometido diretamente contra ele. Israel deveria se tornar a prova mais incontestável de que este novo mundo era viável, mostrando a justiça através dos seus usos e costumes.

A justiça deuteronomista versava sobre os mais diversos aspectos da vida: obrigações para com Deus, vida privada e comunitária, deveres e direitos do cidadão comum, deveres dos reis e governantes, regulamentos militares, poder judicial e direito penal. A rigor, diz-se que totalizam 613 mandamentos, sendo 365 negativos, proibições do tipo não farás, e 248 positivos, isto é, bem mais abrangente que o famoso Código de Hamurabi. Se alguém estiver interessado em conhecê-los consulte o site http://www.abiblia.org/artigosview.asp?id=91.

Sobre tudo isso pesava um juízo. O povo de Israel estava sendo submetido constantemente a intervenções dos profetas, que ao compararem a situação vigente com a proposta de Deus, podiam tão somente prever um futuro catastrófico para todos. Sempre que Israel trocava os mandamentos de conduta moral de Deus pela anarquia e devassidão dos povos vizinhos, via-se a eles escravizado, fazendo com que este juízo, mais do que um castigo, fosse uma consequência natural da sua escolha pela iniquidade.

As complicadas palavras de Jesus no texto de João dificilmente encontrarão explicação em outra sequência de acontecimentos fora da história de Israel. Além do que, ele estava antecipando a sequência de acontecimentos em sua própria história, acontecimentos que se dariam em breve, mas que marcariam para sempre a História. (continua)

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