Encontros e relacionamentos II

Jesus e a samaritana, Benedetto Maiano(1442-1497)
O segundo obstáculo é justamente esse: ter a humildade suficiente para reconhecer que é preciso receber antes de sair arvoradamente achando que só tem a dar. Don Helder Câmara dizia: Ninguém é tão pobre que não possa dar, nem ninguém é tão rico que não possa receber. O nosso
relacionamento com as pessoas expressa bem o que é o nosso relacionamento com Deus. Esse encontro diz muito a esse respeito. Porque o verdadeiro encontro com Deus é tão revigorante, tão tranquilizador que não somos nós que vamos pedir alguma coisa a ele. Deus é quem querer algo de nós.  Mesmo porque não somos nós que vamos ao encontro dele. Deus é quem vem ao nosso encontro. Perguntaram ao Bultmann, o maior teólogo do nosso tempo, como ele havia encontrado Deus. Ele deu um sorriso e disse: Não fui eu que encontrei Deus. Deus é que me encontrou. Quem andava perdido era eu e não ele. Ele está à nossa espera à beira do poço. É ele quem nos pede algo: Você pode me dar água? Assim como também pede: Filho meu, dá-me o teu coração.


Com certeza aquela mulher ia diariamente ao poço. Aquele era um caminho do seu cotidiano, e foi lá que Jesus foi ao seu encontro. Esse é o método mais comumente usado por Deus: o encontro no cotidiano. Cabe a cada um de nós apenas e tão somente se deixar encontrar. Se fazer encontradiço (palavra estranha, mas eu só tenho essa). Paul Tillich dizia que nesse encontro nós somos aceitos antecipadamente: Você é aceito. Você é aceito pelo que é maior do que você, o nome do qual você não conhece. Não pergunte pelo nome agora; talvez você descubra mais tarde. Não tente fazer coisa alguma agora; talvez mais tarde você faça bastante. Não busque nada, não realize nada, não planeje nada. Simplesmente aceite o fato de que você é aceito. Quando isso acontece conosco, experimentamos a graça de Deus. Se deixar encontrar, se deixar ser aceito por Deus, da mesma forma em que nos deixamos encontrar e nos deixamos ser aceitos pelo próximo. Jesus encontra aquela mulher, mas se deixa encontrar por ela. Se deixar descobrir, se torna transparente como a água, a ponto de ser avaliado por ela.

Mas é hora de falarmos do terceiro grande obstáculo, o preconceito. Como sendo tu judeu, pede a mim, mulher, e ainda por cima samaritana, que te dê água? Esta pequena frase mostra, entre outras coisas, que a solidariedade tem fronteiras. Diga-se de passagem, não era um preconceito gratuito. O ódio dos judeus pelos samaritanos era histórico e já existia há pelo menos 750 anos, desde a invasão assíria. Os judeus nunca aceitaram os casamentos com estrangeiros que as tribos do norte realizavam, nem que isso fosse a garantia da continuidade da existência desse povo. Em nome da preservação da pureza da raça excomungaram os samaritanos definitivamente. E essa mulher está simplesmente respondendo a séculos de rejeição imposta pelos judeus a seu povo.

Certa vez ouvi de um médico que fazia palestra para um grupo de senhoras que a mulher que se casara com um homem não crente, havia levado o Diabo para dentro de casa. Olhem que falta de responsabilidade. Ali havia mulheres casadas há 30, 40, 50 anos, cujos maridos, embora não frequentassem a igreja, eram fiéis dizimistas, contribuíam regularmente com uma igreja da qual não eram membros, exclusivamente porque amavam suas mulheres e por isso aceitavam as exigências do seu credo. Felizmente aquelas eram mulheres conscientes, bem informadas e não foram na conversa desse doutor maluco. Mas esse preconceito contra pessoas de outros credos ainda é uma ferida aberta no cristianismo brasileiro.

Se tivesse notado o mais tênue sinal de discriminação naquele diálogo, aquela mulher teria dado meia volta e deixaria Jesus com sede e falando sozinho. E é para falar sozinho que hoje se gasta milhões em programas de televisão, em cruzadas evangelísticas, e concentrações de fé. Que ninguém ouse a comparar os resultados. Por causa de um breve diálogo de Jesus com uma mulher, uma cidade foi quase que totalmente convertida. Ele é judeu, mas é gente boa. Será que um dia ouviremos isso novamente? Antigamente, ser evangélico era sinônimo de integridade moral, depois passou a ser alvo de desconfiança, hoje é motivo de chacota. E tem gente que acha que isso é bom, que está sendo fiel a Deus, que está sendo injuriado injustamente. Tem gente até que acha que é um perseguido por causa da justiça e que isso apressaria a volta de Jesus. Os muitos anos de discriminação a outros credos e a outras igrejas cristãs nos levaram a isso. É discriminando que o mundo responde à nossa discriminação. Quando é que você evangélico vai falar de igual pra igual comigo que sou prostituta, que sou viciado, que sou traficante? Ou você acha que é menos pecador do que eu? Quem tem dúvidas quanto a isso, que vá conferir em Lucas 13 a parábola da figueira estéril. Este é um bom texto para esfregar na cara de quem se acha menos pecador que qualquer outro. Este é um bom texto para descobrirmos o tamanho da responsabilidade que nos é imposta.

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