Exaltação e Humilhação II

Confirmação de Francisco de Assis, Giotto
Aquele que se exaltar será humilhado, porém aquele que se humilhar será exaltadoImportante ler Mateus 23,1-12

Mud dizia que para ser cristão não é preciso muita coisa. Para ser cristão é preciso tudo. Vejam a dificuldade que é ser cristão para si mesmo. Ao examinar a lista dos procedimentos reprováveis dos escribas e fariseus, não encontrei pecado
algum que eu mesmo não tivesse cometido. Por favor, deem uma olhada e vejam se há algum artigo nesse inquérito no qual vocês também não estejam indiciados. Será que existe alguém, na face da Terra, não ama ser reconhecido? Alguém que não quer ver seu trabalho ser valorizado? Alguém que não goste de ser homenageado em público? Será que existe alguém que julgue os outros com critérios mais brandos e vista menos grossa do que o julgamento que faz de si mesmo? Eu não conheço ninguém. Mas vamos supor que essas pessoas existam, e vamos além: vamos admitir que sejamos nós mesmos essas pessoas. Vamos só imaginar que pensamos assim: Eu não amo nada disso, não estou interessado na publicidade, no reconhecimento. Abro mão de tudo para estar bem com Jesus. Sei lá, eu faço qualquer sacrifício, nego a mim mesmo, tomo a minha cruz e prossigo para o alvo. Diante disso devo concluir, então, que sou um bom cristão, não é? Ou será que isso não vale nada? E não vale mesmo, ainda falta muita coisa.

Você está pensando que vai ser chamado de bom cristão por isso? Aí está o seu erro. Você está pensando que é um exemplo a ser seguido? Aí está o seu pecado. Você está pensando que é o líder da comunidade? Está redondamente enganado. Vós não sereis chamados de mestre, porque o vosso mestre é um só. Vocês são todos irmãos. Quase que Jesus diz assim: vocês são todas crianças, não sabem nada. Ah se o Sergio Duarte estivesse aqui para ler isso. É uma pena que ele não está. Ia aprender tanto. Não é normal transferirmos esta responsabilidade para os outros quando ouvimos algo desafiador? Se alguém se abstém de antemão de qualquer reconhecimento com o propósito de ser reconhecido no final, cavou seu próprio túmulo.

Que sermãozinho amargo eu fui arrumar, não é? Mas é exatamente isso que o texto diz: não servireis de exemplo, de guia, por que um só é o vosso guia. Eu fico pensando como se sente um pastor nessa hora. Um bispo, um cardeal ou mesmo o Papa. É ordenado, recebe autoridade, merecida sem dúvida, e quando abre a Bíblia o que encontra é o esvaziamento de tudo o que arduamente conquistou. Mas não se iluda quem não é bispo, pastor ou cardeal. Se Deus cobra tanto deles, não vai cobrar nada da gente? Olhem o que Paulo diz para os “espirituais de Corinto”, um grupo de pessoas daquela igreja que se julgava mais fiel e mais consagrado que os outros: Vós já estais saciados, já estais ricos. Sem nós, vós vos tornastes reis. Oxalá, de fato, vós tivésseis tronado reis, para que nós também pudéssemos reinar convosco. Ele está simplesmente dizendo: Vocês já tomaram posse da bênção, já possuem a plenitude da graça, já estão acima do bem e do mal, já estão com a salvação garantida, eu também queria ser assim. O serviço é o único caminho para este reconhecimento: o maior entre vós será o vosso servo. Jesus decreta o fim da hierarquia sem propor a anarquia, como muitos gostariam que fizesse. Ele retira de contexto a hierarquia e coloca em seu lugar a hierodoulia. Doulos é a palavra grega para servo. Quer ser o maior, seja o menor, quer ser servido, sirva a todos. Quer ser o primeiro, vá pro fim da fila.

Diz a história que Albert Schweitzer, que foi considerado o maior intérprete de Bach do seu tempo, havia se formado em medicina para servir como missionário em Lambarene, na África. Certa vez estava no porto tentando transportar um carregamento de equipamentos e medicamentos que havia recebido como doação. Foi quando passou por ele um grupo de nativos vestidos em trajes cerimoniais. Mesmo reconhecendo neles essa distinção, Schweitzer resolveu pedir-lhes ajuda, ao que lhe responderam: nós não podemos fazer trabalho braçal porque somos espirituais. Ele abaixou a cabeça e consternado disse: Eu também queria ser espiritual, mas não posso. Eu queria ir à igreja e ouvir bons sermões, depois sair inspirado para enfrentar uma semana de trabalho, mas não posso. Tenho que me abaixar para dar comina na boca de uma criança do morro, tenho que limpar a outra que está suja, tenho que abraçar o autista que insistentemente bate com a mão na cabeça. Eu queria ser espiritual, eu queria reinar em vida, eu queria ser cabeça e não calda, eu queria me exaltar como cristão, mas não posso.

Vinícius de Moraes escreveu uma poesia chamada Recado à Poesia, que é de fato um recado de um jovem cancelando o encontro com sua namorada, e explica os motivos:
Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo.
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso reconquistar a vida.

Ele termina essa poesia dizendo:

Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso. (continua)

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