O Cântico da Tragédia I


A queda de Jerusalém por Roberts Siege em 1683 
Toda essa meditação foi baseada no Salmo 44, não deixe de lê-lo.

Um telejornal mostrou a cena de uma senhora idosa, ajoelhada em uma ponte, clamando a Deus que livrasse, a ela e à sua cidade, da enchente que assolava a região do rio Itajaí, em Santa Catarina. Ela orava assim:

Senhor, não permita que o rio inunde as nossas casas de novo. Uma cena comoventemente triste, e de um apelo emocional que dificilmente deixaria de sensibilizar o mais duro coração. Como conhecemos bem a índole dessa famosa emissora, e o seu antagonismo declarado à fé cristã, temos que concluir que, ao colocar no ar essa reportagem sensacionalista, a sua equipe de telejornalismo tinha absoluta certeza de que a cena provocaria apenas um questionamento entre os céticos: Se existe realmente um Deus, por que ele não vê isso?

Muito embora possa soar como blasfêmia aos nossos ouvidos, temos que admitir que mesmo pessoas que possuem uma fé esclarecida e que não duvidam da existência de Deus; no instante em que são tocadas pela comoção de cenas, como a que foram mostradas, dúvidas atrozes sobre a consciência de Deus afloram naquele momento. E, em meio a incertezas, completamente aturdidas, e ainda que temerosas, essas pessoas são quase que involuntariamente são tentadas a pensar: O que Deus está fazendo numa hora dessas?

Contudo, ainda existem aqueles que nunca ousam questionar a onipresença ou a onisciência de Deus. Que jamais erguem suas mãos aos céus em sinal de protesto. Mesmo essas pessoas que aceitam submissamente a vontade de Deus, sem ponderações ou queixas, na hora em que são assaltadas pela dor de uma tragédia próxima, o recanto mais íntimo dos seus corações abriga uma pergunta não quer calar: Porque Deus não responde positivamente a orações sinceras e justas como a dessa mulher?

Tenho pra mim que este breve relato encerra o quadro dos sentimentos e sensações a respeito de Deus, que as catástrofes, naturais ou não, provocam em todos nós. Tenho pra mim que estes são os questionamentos viáveis para grande maioria das pessoas que somos e conhecemos. Somente um santo ou uma santa, na mais precisa concepção da palavra, não cobraria de Deus uma resposta, ou faria qualquer tipo de questionamento diante do infortúnio. Nem mesmo Jó, o intitulado campeão da resignação, foi tão santo assim. Contudo, se há alguém aqui cuja vida contrarie o que eu disse, ou alguém conhece uma pessoa que não se encaixe nas hipóteses levantadas, que me perdoe, porque eu não sou assim e nem conheço quem o seja. Perdoe-me pelas citações, e perdoe por trazer uma meditação que não tem nada a ver com você. Mas, mesmo constrangido, vou seguir em frente.

O grande teólogo Dietrich Bonhoeffer dava o nome de Desperatio a situações como a dessa mulher catarinense. Situações em que os transtornos da alma são tão intensos. Situações em que a aflição é tão premente, que os questionamentos já não são mais dirigidos aos motivos causadores da tragédia, e nem às circunstâncias em que ela acontece, mas diretamente a Deus. Situações em que o desespero não permite qualquer atitude desesperada, porque elas causam o aniquilamento completo da vontade e da esperança. É o encontro da pessoa com o caos original, quando o Espírito de Deus pairava sobre as águas, e ainda não havia sequer criado a luz. É a destruição total do ser e do existir. Esta é a declaração de impotência de quem se encontra completamente prostrado diante do ímpeto do infortúnio e nada pode fazer, senão clamar por socorro à providência divina.

E eu queria chamar a atenção de vocês para a situação descrita no salmo 44, que se anuncia ser bastante parecida com a mostrada pelo telejornal. O povo, após ter sofrido uma tragédia avassaladora, vem vindicar junto a Deus uma resposta, cobrar uma atitude e pedir explicações. O salmista quer saber quais foram os motivos que levaram Deus a permitir o ocorrido, e por que esconde o seu rosto nessa hora. E é deste cenário de tragédia e questionamento relatado no salmo que, juntamente com vocês, pretendo tirar algumas conclusões e fazer outros tantos questionamentos.  

Uma conclusão que pode ser tirada de imediato da leitura do salmo é: Que grande cara de pau tinha esse salmista. Ele teve a desfaçatez de dizer: Olha Deus, nós não fizemos nada de errado. Nós cumprimos todos os seus mandamentos. Nós fomos fiéis a ti e a tua Palavra em todas as circunstâncias, e mesmo assim tu ainda tiveste a coragem de nos abandonar e nos deixaste passar por tudo isso? Uma coisa é certa neste salmo, a teologia do salmista já era bem mais desenvolvida do que a de muita gente hoje, pois ele já não possuía o tipo de fé retrógrada, que creditava ao poder de anjos e demônios as desgraças que o assolavam. Eu imagino que ele esteja escrevendo depois de uma das grandes derrotas do povo judeu. Ou foi imediatamente após 722, quando destruíram Samaria, ou após 586, na queda de Jerusalém. Tenho pra mim que apenas uma dessas desgraças poderia perturbar de tal forma a cabeça de um judeu, a ponto de levá-lo a fazer um protesto com tamanha veemência.

Mas eu pergunto: Qual foi o dia em que o povo de Israel pode fazer este tipo de oração? Qual foi o dia em que o povo de Deus esteve em condição de contestá-lo dessa forma, inculpável diante de Deus? Não bastassem os escritos proféticos, a pregação de homens e mulheres que geração após geração, em nome de Deus, deixaram registradas denúncias sobre o caos econômico, a exploração do trabalho humano, a degradação moral e as safadezas nos cultos aos deuses estrangeiros, temos também o relato da história secular que afirma categoricamente que não foi nada disso. Que o salmista está reivindicando uma justiça da qual não fazia jus. Não foi Deus quem os abandonou. Eles como pessoas, como povo e como nação haviam abandonado Deus há muito tempo, e agora estavam sofrendo as consequências, que naturalmente ocorrem quando as leis primárias de Deus, que nada mais são do que leis humanitárias, não são cumpridas.

A cobiça pelo poder havia dividido o povo de Deus em duas nações. A degradação moral havia destruído o vínculo familiar. As festas e bebedeiras nos cultos às divindades pagãs haviam consumido as suas riquezas. A prostituição religiosa havia drenado a força e pervertido o caráter dos jovens. O país vivia em constante estado de guerra civil. E onde ricos oprimem pobres, logicamente não faltam aqueles que esperam ansiosamente a chegada de um grande mal, gente que quer ver o circo pegar fogo, como dizemos. A vingança de quem não tem nada a perder, é se empenhar para que aqueles que tem algo a perder, efetivamente percam. (essa meditação continua amanhã)

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Vocês não sabem o que estão pedindo


Jesus e os filhos de Zebedeu, anônimo 
Leiam Marcos 10,32-45

A morte do meu amigo João Wesley e o seu criticado modo de viver o evangelho, me tem feito pensar bastante sobre essa corrida frenética que estamos empreendendo pela nossa salvação. Me tem feito pensar também nas mais diversas regras estabelecidas pelas variadas denominações, com o intuito de alcançá-la. Tenho pensado também, o quanto cada
um de nós tem se empenhado, segundo a regra que adotou, para conquistar o melhor lugar possível na mesa do Grande Banquete Celestial. Perdoem-me pela expressão, mas é muito provável que eu esteja sendo anacrônico, ao relacionar o céu da nossa salvação com uma mesa de um banquete, porque a intenção explícita de declarada dos cristãos de hoje, pelo menos assim o dizem nas músicas que cantam e as orações que fazem, é um pouco mais ambiciosa do que simplesmente uma cadeira à mesa de Deus. E tenho pra mim que nada denuncia melhor esta nossa realidade do que a série exibida pela HBO, chamada Game of Thrones, ou Jogo dos Tronos. Para quem ainda não a assistiu, a série narra as inúmeras falcatruas, conchavos e delitos para a conquista do trono na antiga Era Medieval. Parece que nós estamos nesta verdadeira disputa para ver que merece sentar-se à direita e à esquerda do trono, para reinar soberano ao lado de Deus.

Se alguém está achando estranhas e inoportunas estas minhas palavras, não leu o texto recomendado acima, porque ele não somente relata uma situação muito semelhante à que estou apresentando, como também se constitui numa prova irrefutável de que estas palavras de recriminação, não acrescentam qualquer novidade contra a postura adotada pela igreja nos dias de hoje. Ou seja, desde sempre a igreja esteve mais preocupada em sentar-se no trono do que ocupar o seu lugar à mesa.

Vocês não sabem o que pedem, é o que Jesus responde quando cai a ficha. Quando ele ainda atônito, tenta interpretar o estava sendo pedido por Tiago e João. Eles simplesmente pediram para que um se sentasse à direita e o outro à esquerda do trono de Jesus na glória. Minha estreita visão teológica intui que ele o faz visando dois aspectos diferentes, os quais vou me empenhar em traduzir, segundo o melhor das minhas limitações.

Primeiramente Jesus diz: Vocês não sabem o que estão pedindo pra si. Vocês não fazem ideia do tamanho da responsabilidade que estão atraindo sobre vocês. Os discípulos só enxergaram o final feliz da história: Jesus na glória reinando soberano. Observem que eles usaram as artimanhas da malandragem para fazerem o pedido em dois tempos. Tentaram amarrar Jesus com a sua própria benevolência. Antes de dizerem o que realmente queriam, meticulosamente preparam o terreno: Nós queremos pedir uma coisa, você vai fazer? Não deram a menor atenção ao que Jesus havia dito minutos antes: O Filho do Homem está indo para Jerusalém para ser traído. Zombarão dele, baterão nele, nele cuspirão, para depois o matarem. Vocês imaginam serem capazes de beber desta taça, de passar por este batismo? O árduo caminho que leva à cruz sequer é levado em conta, e os tolos ainda se disseram capacitados, porque a sua cobiça só os permitia enxergar a taça do banquete, mas não a outra taça, a que não era do banquete, a taça da qual o próprio Jesus suplicou para não beber.

Por trás disso tudo se percebe um misto de prepotência e ignorância. Prepotência por julgar que se pode, por seus próprios méritos, conquistar o que Paulo chamou de grande salvação. E ignorância por querer tomar exclusivamente para si, o dom que Deus fez questão absoluta de distribuir igualmente entre todos. Fico indignado com as orações que pedem porção dobrada do Espírito Santo. Como ainda podemos pedir porção dobrada de algo que foi derramado sem medida?

Vocês não sabem o que estão pedindo pra mim. Não sou eu que determino onde cada um vai sentar-se. Definitivamente, Jesus era benevolente demais. Eu nem quero imaginar o que aconteceria se um pedido desse tipo fosse feito a Paulo. Se em I Tm 1,20 ele diz que entregou Himeneu e Alexandre a Satanás para serem castigados, por muito menos, o que não faria com esses dois? O que mais se tem feito nos dias de hoje é colocar Jesus contra a parede, como fizeram Tiago e João. São pedidos e cobranças que só levam em consideração três ou quatro versículos bíblicos que falam de promessas. Todos os outros que falam da contrapartida, passaram a fazer parte de uma aliança antiga que não precisa mais ser cumprida.

Vocês não sabem o que estão pedindo a mim, porque nada disso garante lugar na salvação. Nem louvores, nem renúncias, nem flagelos, nem ofertas e nem mesmo serviço que eu tanto peço vocês. Nada disso garante lugar no céu. Porque a mim só foi dado poder abaixo do céu. Porque o céu é do meu Pai, e somente ele, baseado em seus próprios critérios, diz quem vai se sentar e em que lugar.

Realmente não sabemos o que estamos pedindo. Não enxergamos nada além da concepção política do messianismo. Unicamente visando o aspecto do poder e da recompensa, que ainda nos dispomos a enfrentar lutas e desafios em favor do Reino de Deus. Vez por outra aparece uma oportunidade de fazermos coro com a população em geral. Uma catástrofe comovente, ou, como é agora, o caso da Rio+20. É justamente aí que damos com os burros n’água, mesmo sem termos a noção concreta do que está sendo questionado, baseados em dados de uma única fonte, sem darmos atenção a qualquer manifestação contrária, damos o nosso irrestrito aval. Estamos diante da prova cabal que a igreja nunca mediu a consequência das suas petições: nem no passado com Tiago e João, e nem no presente recente, na Conferência Mundial Sobre Meio Ambiente.

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Vento de Deus


O Pentecostes, gravura de1200 dC 
De repente, veio do céu um som, como de um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam assentados. At 2,2
Domingo próximo passado foi celebrado por toda a cristandade o dia de Pentecostes, ou, o dia do nascimento da Igreja de Jesus Cristo. Este dia marcou o início de um novo e ambicioso projeto que seria levado a cabo por aquele pequeno grupo de seguidores, chamados de discípulos. O grupo que sobrevivera à crise da paixão e morte de Jesus. Pelo tom das
narrativas, percebe-se que, embora se mantivessem unidos e fiéis, estavam reunidos em local secreto e de portas fechadas por estarem com medo de represálias dos sacerdotes judeus, que segundo Lucas, foram os únicos culpados da morte do seu Mestre. Ou seja, o principal objetivo daquele grupo era permanecer vivo. O clima era de um medo incontrolado de que, a qualquer hora, entrasse alguém por aquela porta e os denunciassem, expondo-os ao perigo. É justamente naquela hora que alguém, que por falta de um nome mais apropriado é chamado de vento, entrou pela porta que, mesmo fechada, não foi capaz de conter a sua impetuosidade.

Aqui começa a nossa meditação sobre esse vento que, para espanto de todos, ainda hoje consegue passar através de portas muito bem fechadas. Diante disso, algumas questões surgem naturalmente: Para quem ele foi enviado? Quem o enviou? Com que propósito? E o mais importante, quem poderá suportá-lo?

Logicamente que em primeira estância foi o próprio medo que não lhe fez resistência. Este foi o primeiro a não resistir ao seu ímpeto. Pode não haver nos registros históricos algo que autentique sem contestação a vida e a obra de um rabi judeu, Jesus chamado Cristo. Como também não há narrativas de outros escritores, senão destes que estavam diretamente comprometidos, sobre a atuação deste vento que milagrosamente entra por portas fechadas. Mas um fato é incontestável: Alguma coisa transformou aquele grupo de pessoas temerosas e covardes em intrépidos pregadores de uma novidade revolucionária nada bem vinda. Na contramão das nossas penitentes orações, a predisposição do vento de Deus, não é nos livrar dos perigos que se apresentam em nossa caminhada rumo ao Reino, e sim nos encorajar a enfrentá-los. O que ele primeiro derruba é essa muralha que levantamos ao nosso redor, que nos dá a falsa sensação de segurança. Mais do que nunca precisamos anunciar que o vento de Deus precisa entrar nos condomínios fechados, nos carros blindados, nos conhecidos templos da segurança particular. Dizia Richard Bach: Se buscas a segurança antes da felicidade, a segunda será o preço que terás que pagar pela primeira.

A investida seguinte empreendida pelo vento de Deus é contra a relação oprimido x opressor, que naquela época estava bem definida. Os alicerces dos poderes políticos, por parte dos romanos, e religiosos, por parte dos líderes judaicos, estavam firmemente fincados, e tudo que viesse perturbar essa ordem não seria de imediato aniquilado. O vento veio para derrubar essa relação e nivelar a todos debaixo de um poder que pretende estabelecer-se pela solidariedade, pela justiça e pelo amor. As narrativas dos Atos dos Apóstolos nos contam que já não havia mais necessitados entre eles, pois indistintamente todos eram atendidos em suas necessidades mais prementes. Por onde passa o vento de Deus não subsistem barreias sociais.

Há de se notar também uma terceira investida do vento de Deus. Desta vez contra o sectarismo regionalista. O vento atravessa o coração de pessoas de procedência, de índoles e de propósitos essencialmente diferentes, fazendo com que todos falem a mesma língua e tenham todos um só coração. Sabemos bem que quebrar a barreira do regionalismo e do sectarismo é uma tarefa nada fácil. Está aí a ONU que, prestes a fazer 70 anos, tem em seu currículo muito mais tentativas e fracassos do que propriamente sucessos para contar. Onde a diplomacia, a boa intenção, a boa vontade dos homens com suas mirabolantes propostas de conciliação falham, o coração transformado pelo vento de Deus pode fazer toda a diferença. Não são poucos os cientistas políticos e historiadores que afirmam que a Inglaterra safou-se de uma revolução sangrenta como a que aconteceu na vizinha França, simplesmente pela pregação de John Wesley. Coincidentemente a partir do momento que este teve o seu coração transformado pelo vento de Deus.
Ainda podemos assinalar outra investida do vento de Deus. Esta contra a relevância das diferenças individuais. E acontecerá que naqueles dias, diz o Senhor, farei soprar o meu vento sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão, vossos jovens terão visões, e sonharão vossos velhos; até sobre os meus servos e sobre as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e todos eles falarão em meu nome. Velhos, crianças, servos, livres, homens, mulheres, ou seja, a pluralidade na sua mais expressiva forma. O vento investe contra a rigidez da doutrina, dos costumes, e eu diria até contra certos tipos de moral, que mais revelam a nossa intolerância do que o propósito de sermos fiéis a Deus. O vento veio para revelar que quem gosta do uniforme é o outro. Quem gosta do coturno é o outro. Quem gosta da padronização é o outro. Deus gosta mesmo da pluralidade das formas, das cores e das experiências. Nela ele sopra onde quer e sobre quem quiser. Ele vem de onde não esperamos e vai para onde jamais saberemos.

É por tudo isso que em certas horas eu duvido da sutileza do evangelho, cujas premissas levam em conta um Deus que bate à nossa porta e pacientemente aguarda ser convidado para entrar e agir em nossa vida. Ao testemunhar tantos fatos que corroboram diretamente com a narrativa de Lucas, sou impelido, quem sabe por este mesmo vento, a duvidar que seja sempre assim. Tenho pra mim que se o vento de Deus vai bater suavemente ou arrombar a nossa porta, vai depender do lado que estivermos dessa porta.

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Miseri-córdia é dar o coração ao miserável


Bom samaritano de Luca Giordano (1634-1750  
Bem aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia. Mt 5,7

Será que já paramos para pensar o que seria misericórdia? As regras de fé dizem que temos que ter obras de piedade e obras de misericórdia, será que sabemos qual é a

 diferença entre elas? O livro das lamentações de Jeremias diz que as misericórdias do Senhor são o motivo de não sermos consumidos. O Primeiro Testamento fala claramente pela boca de Oséas: Misericórdia quero e não sacrifício. Pedro na sua primeira carta afirma: Vocês não eram povo de Deus, mas agora são povo de Deus; antes, não conheciam a sua misericórdia. Como vimos, é um tema recorrente em toda a Bíblia, algumas de suas citações já conhecemos, mas seriam elas suficientes para entendermos o que é ser misericordioso?

Segundo o salmista, o maior castigo para o seu povo seria se Deus retirasse a sua misericórdia, pois ela é o clamor pela ajuda prometida e esperada de Deus. A própria palavra misericórdia, que em hebraico é hesed, possui o aspecto de devoção e solidariedade, mas tem um ingrediente a mais. Ela não é apenas um eco de bondade que pode se enganar quanto ao seu objetivo. Vou ser bom, para Deus ser bom comigo. É uma bondade consciente e uma resposta de fidelidade. Pois é assim que Deus age conosco, por isso ele exige de nós essa atitude, que juntamente com a ajuda e a providência, entreguemos também o coração ao necessitado.

Aí então nós vamos descobrir que há dois tipos de misericórdia: a misericórdia de Deus, e a nossa misericórdia. São essencialmente diferentes e incomparáveis, porque as misericórdias de Deus são o motivo da nossa existência e da nossa subsistência. Contudo, as outras pessoas não deixam de existir pela falta da nossa misericórdia. Com ela, poderiam viver bem melhor, mas nós não somos tão essenciais para os outros como Deus é para nós. Para a Bíblia é assim: Se nós estamos vivos, é porque Deus tem misericórdia para conosco. A essência da vida é a misericórdia, vivemos pela misericórdia de Deus, mas teríamos vida plena e abundante se tivéssemos misericórdia uns para com os outros.

Mas existe um segundo aspecto na misericórdia. É o desafio de Deus apresentado pelo profeta Oséias: Misericórdia quero e não sacrifício. É bom nos lembrarmos de que a palavra sacrifício não tem necessariamente a conotação ruim que a damos. Sacrifício é abrir mão do que nos é caro, é fazer renúncias em favor de alguém ou de alguma causa. Mas não é só isso, é tornar este ato sacro, separado de qualquer jogo de interesses. Paulo em I Co 13 diz: Eu posso distribuir todos os meus bens entre os pobres e entregar o meu corpo às chamas para salvar alguém, se o meu coração não estiver junto, nada disso vai me adiantar.

O Primeiro Testamento diz que a misericórdia é um ponto de ruptura com o paganismo. Desde muito cedo Israel entendeu que não adiantaria chegar-se para Deus pedindo o extermínio do inimigo, e invocá-lo para satisfazer a sua sede de vingança. Através de duras experiências foi aprendendo que para ser povo de Deus, exigia a tendência de ser misericordioso, porque o seu Deus é um Deus de misericórdia. Pode ser que aos olhos da modernidade a Lei de Talião: olho por olho, dente por dente seja uma crueldade, mas para os antigos era um exercício bem complicado. Entre os povos da antiguidade prevalecia o Anátema, o extermínio, o genocídio. Mas em Israel não poderia ser assim, quem experimentou a misericórdia de Deus, tem que colocar um freio na sua vingança, e o olho por olho era justamente esse freio. Dali para frente era permitido somente olho por olho, dente por dente. Não mais a matança desenfreada.

Mas a misericórdia não para aí, ela avança, ela progride até alcançar o perdão. O povo de Deus começa a aprende a perdoar, e os seus cânticos e provérbios ensaiam um novo tom: O caminho das pessoas boas e direitas é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais, até se tornar dia perfeito. Sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere. Já se nota nos escritos mais tardios do Primeiro Testamento essa inclinação para a misericórdia.
Ainda há um terceiro aspecto. Estava o povo experimentando a bênção do perdão até que veio Jesus e disse que deveríamos ir além, que só o perdão não era suficiente. Era preciso ter misericórdia, mas não a nossa, e sim a misericórdia de Deus, que não somente perdoa, mas que refaz, que restaura e que dignifica. Aqui entra a bem aventurança da misericórdia, de ir além do perdão, além do esquecimento, ir além de rasgar uma conta. Muito mais que ser uma moeda de troca, a misericórdia de Deus é uma via de mão dupla. Eu experimentei a misericórdia de Deus, por isso eu sou constrangido fazê-la conhecida. Ela precisa fluir além de mim, ela precisa alcançar o outro.
 
Talvez não haja na Bíblia exemplo mais evidente sobre este fluir do que a parábola do Bom Samaritano. Observem que ele não era amigo, pelo contrário, que ele não era conhecido, pelo contrário, e não tinha qualquer culpa pelo infortúnio do outro, mas aquele homem foi além. Foi além das suas obrigações, assistiu a quem não gostava dele. Foi além das suas possibilidades, não somente gastando o que tinha, mas também o que não tinha, para que o outro fosse atendido. Assim funciona a matemática da misericórdia de Deus: onde duas moedinhas valem mais que grandes somas; quando uma ovelha é mais importante que 99; quando aquele que trabalha por uma hora recebe o mesmo do que aquele que trabalhou o dia inteiro; onde apenas duas gotas de perfume bastam, ele derrama sem medida.

É difícil? Claro que é. Mud dizia que para ser cristão não é preciso muita coisa, para ser cristão é preciso tudo. É esse tudo que somos, indecisos, vacilantes, inconsequentes, mas em Deus alcançamos misericórdia. Essa misericórdia não pode ficar estagnada, dentro de nós ela é apenas uma bênção. Se fizermos dela uma corrente, fatalmente ela se tornará uma bem aventurança, pois assim disse Jesus: Vocês serão bem aventurados se todos forem misericordiosos, porque estarão condenados a viver num mundo de misericórdia.

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Perto do Trono

John Wesley (1703-1791) - João Wesley Dornellas (1933 -2012)
 Metodista, ler ou não ser. João Wesley de Moraes Dornellas
Não se trata de uma homenagem, porque esta Deus me deu a oportunidade de fazer-lhe em vida. Trata-se sim de acrescentar alguns itens que ficaram faltando ao texto original, porque, naquela época, fatalmente seriam censurados.
João talvez tenha sido a pessoa mais apaixonada pela Igreja Metodista que alguém pôde ter notícia após a morte do seu homônimo, o fundador do movimento que deu origem a esta igreja. Filho de pastor, João reunia mais conhecimento e prática pastoral que a grande maioria dos pastores que conheço. Haja vista a grande quantidade que o procurava, pedindo conselhos e orientações com a velada intenção de fazer sua alguma as ideias brilhantes desse meu amigo. João percebia de longe essa manobra, ficava injuriado, dizia que não, mas quase sempre acabava cedendo, porque a sua paixão pela igreja não media consequências.

João era tão reconhecidamente um pastor, que quando na ocasião da minha ordenação, foi convidado a participar da cerimônia da sucessão apostólica pela imposição de mãos, justificou a sua recusa pelo fato de não ser ele um pastor. Os reverendos Jonas Resende, Edson Fernando e Mozart Noronha, testemunhas da recusa, imediatamente retrucaram dizendo: Nada disso, segundo a nossa tradição, que é mais antiga que a sua, você é pastor sim!

Além do dom nato e hereditário para o ministério pastoral, João era o professor por excelência. O professor que qualquer aluno que leve a sério a Escola Dominical queria ter. Para ele não havia tema que não pudesse ser abordado, por mais herético que pudesse parecer. Por várias vezes o vi encrencado com perguntas, cujas respostas muitos teólogos se recusariam a dar, justamente para não se comprometerem, tornando público os segredos mais bem guardados dos subterrâneos da igreja. Mas o João era assim mesmo, não fugia de nada, e não sabia ficar omisso em qualquer situação, o que lhe resultava em broncas homéricas de sua fiel escudeira, Alice, que com seu temperamento manso e suave, o trazia de volta para a terra, todas as vezes que a sua paixão o elevava acima das nuvens. 

Muito mais do que isso, João era o membro cuja igreja tanto corria nas suas veias quanto batia em seu coração. Seu grande inspirador, John Wesley, se dizia homem de um só livro, pois João era homem de um assunto só. Versado em outras línguas, detentor de uma cultura excepcional, laureado com várias condecorações de mérito, nunca lhe faltou argumento para debater qualquer tipo de tema. Mas fosse qual fosse a conversa, ele sempre conseguia uma forma de colocar a igreja como parâmetro, para, a partir daí, falar do evangelho de modo claro e racional, a pessoas de todos os níveis.

João, assim como eu, possuía um temperamento inquieto, pronto para se tornar exaltado. Mas era evidente que para cada rompante, havia pelo menos a suspeita de que a sua amada igreja estava sendo lesada ou subtraída em alguma coisa. Por conta do nosso temperamento, perdemos muitos anos em uma absurda discordância, atitude da qual tive a oportunidade de lhe pedir perdão a tempo. No dia que levei em conta a sua verdadeira intenção, me vi forçado a render-me incondicionalmente à sua superior erudição e ao seu invejável conhecimento bíblico. Lembro-me bem do que disse naquela ocasião: Difícil não é questionar o João Wesley imaginando que ele esteja errado. Difícil é ter me render aos seus argumentos, na convicção de que ele está certo. Deste dia em diante, nossos laços se estreitaram, então, pude ver com clareza que aquele com quem discutia tolamente, e não poucas vezes asperamente, era o principal jogador do meu time, fato que eu não sabia.

Pelo seu modo apaixonado de defender a igreja, a sua tradição e os seus fundamentos, João angariou também algumas pessoas que não lhe tinham grande simpatia. Dentre esses, podemos contar muitos oportunistas e carreiristas, que quiseram fazer de sua igreja um mero trampolim para a sua autopromoção. Todos estes encontraram no João um ferrenho opositor, que por sua fidelidade, idoneidade e conduta ilibada, nunca se permitiu ser flagrado em contradição ou deslize.

Mas chegou o momento que Deus o chamou para si. Chegou a hora que Deus lhe disse: Basta de tanta luta, tanta indignação, de tanta disputa para preservar a mim e minha igreja. Venha para mim, meu filho. Venha e sente-se à mesa daqueles que, como você, se consumiram pelo zelo à minha Palavra. Venha realizar um dos seus grandes sonhos. Converse pessoalmente com Paulo, meu apóstolo, com seu xará, Wesley e com meu Filho. Pois este é o Reino que tenho preparado para aqueles que me amam.

Sinceramente eu espero que agora, nenhum desses desafetos venha ironicamente me perguntar se tenho esperança de encontrar João Wesley no céu. Vou me ver forçado a repetir o que George Whitefield, um admirador secreto de John Wesley, disse a respeito dele, quando lhe fizeram a mesma pergunta. Com toda certeza, não vou encontrá-lo de modo algum. Ele vai estar tão perto do trono de Deus, e eu tão distante, que esse encontro vai se tornar impossível.

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Profetas de quem?

Queremos Barrabás de Honoré Daumier (1808-1879)
O Senhor está no seu santo templo; nos céus tem o Senhor seu trono; os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos homens. O Senhor põe à prova ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a violência, a sua alma o abomina. Salmo 11,4-5

Toda religião que não diz que Deus está oculto não é verdadeira. Blaise Pascal

Diante dessas frases que são a mais pura realidade no contexto cristão, alguém já tentou conceber como era árdua a vida de um profeta? Deus estar no seu templo e jamais ter sido visto por homem algum, são a base de toda e qualquer mensagem profética, posto que a mais sutil iniciativa de partida divergente desta, já seria por si só um alerta de falsidade idolátrica. Relatado de forma mais compreensível nos Mandamentos, o reconhecimento da alteridade de Deus é um fundamento de fé imutável. O prefixo alter significa outro, e reconhecer que Deus é outro, que é alguém totalmente diferente de nós é o começo de qualquer manifestação no sentido de buscarmos com ele uma aproximação. Karl Barth dizia que Deus é totalmente outro, em absolutamente nada pode ser equiparado às suas criaturas.

Para a maioria do povo judeu, ver a face de Deus seria o prêmio máximo a ser alcançado durante o transcurso de uma vida. Não são poucos os salmos que expressão este desejo. Não sei se dado a inveja que tinha de seus vizinhos pagãos, que viam seus deuses a hora que desejassem, e os carregavam para onde fossem, consentido estar permanentemente na sua presença, mas o que o desejo era latente não ficou a menor sombra de dúvida. Por isso eu volto a insistir na cruel ambivalência em que viviam os profetas de Deus no passado. Como é não ver a face de Deus e mesmo contra vontade abdicar de uma vida para anunciar a sua Palavra? Talvez eu possa dramatizar um pouco mais ainda a situação. Como é não ter respaldo algum para suas palavras, e ser intimado a dizê-las assim mesmo, contrariando expectativas, poderes constituídos e a própria realidade que se mostrava divergente?

Para a teologia consensual da época, para quem Deus era mais um numa assembleia de deuses, mas que, de alguma forma, assentava-se no trono diante deles, alguém pretensiosamente dizer: Antes dele não houve Deus, e depois dele não haverá, teria de imediato seu passaporte carimbado para a inquisição. Levando-se em conta que esta teologia hoje ainda sobrevive no seio da Igreja, através de cânticos pretensamente piedosos que dizem não haver um Deus maior, como entender que ainda houvesse quem se aventurasse a ser profeta?

Às vésperas de mais uma conferência mundial sobre meio ambiente, algumas considerações precisam ser feitas. Quem pode citar uma única experiência positiva resultante do atrelamento da religião ao consenso humano? Entre as tragicamente negativas posso citar algumas, tais como a institucionalização da fé cristã como a oficial do Império Romano, a colonização da Américas sob a premissa de catequizar os indígenas, e a mais injusta de todas, a escolha de Barrabás, resultado conjunto da pressão dos sacerdotes com a quase totalidade da vontade popular. À primeira vista, o engajamento da igreja cristã, como num todo, nesse ultimato de preservação da vida na terra, parece ser um ato louvável. Há quem ande dizendo: Até que enfim a Igreja foi sensível ao apelo do povo. Por outro lado há quem diga que não, que a igreja embarcou numa grande canoa furada. Quem tem ou não razão, pouco importa para o momento, importa sim quem é aquele que traz consigo a mensagem profética de Deus para esse nosso tempo.

Considerando-se que o segmento que aterroriza o mundo com o holocausto do aquecimento global, produz lucros vultosos para si e para os países desenvolvidos. Considerando-se que a emergente competitividade de países subdesenvolvidos está abalando seriamente a economia do velho continente. Considerando-se que há menos de trinta anos, os mesmos que arautos do aquecimento previam que a crise mundial seria causada por um resfriamento global. Considerando-se que o Brasil é o único dos países emergentes a entrar de cabeça neste movimento. Não seria prudente ouvir as vozes contraditórias daqueles que por se oporem a essa ideia tiveram as verbas de suas pesquisas caçadas? Aqueles que nunca são convidados para as mesas de debate sobre o clima e o meio ambiente? Quem sabe dar uma oportunidade àqueles que não saíram na capa das revistas e jamais foi manchete de jornal?

Que eu esteja lembrado, a permissividade da Igreja cristã com o nazifacismo, foi o seu último erro de consequências mundiais. Tivemos mais de setenta anos, curiosamente o mesmo tempo que levou o exílio babilônico, para refletirmos sobre onde devemos ou não colocar o nosso aval. Qual seria, senão a Rio+20, a hora mais propícia para a igreja engajar-se por inteiro na autêntica mensagem profética, quer aponte ela para onde o Deus soberano, que põe a prova tanto o justo quanto ímpio, quiser apontar?  

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Entre a fé a razão III

A incredulidade de São Tomé de Caravaggio
Mas a nossa questão inicial é a incredulidade de Tomé. Dito dessa maneira parece que não há defesa nem perdão para ele. Como Tomé poderia caminhar junto com os demais discípulos se lhe faltava um dos três fundamentos? Como poderia ele ter amor e esperança se lhe faltava justamente a fé em Jesus? Ele estava errado de fato? Não tiremos conclusões tão precipitadamente assim. O texto
não afirma que Tomé duvidou de Jesus, e nenhum outro lugar do
evangelho se lê tal coisa. Sua fé em Jesus era tão incontestável, que ao primeiro contato com o ressuscitado caiu de joelhos na sua frente em sincera adoração. Tomé duvidou sim do que algumas pessoas disseram a respeito de Jesus. Ele queria mais evidências do que simples palavras para crer em algo tão absurdo. Mesmo que antes ele já tivesse visto Jesus ressuscitar pessoas mortas, ressuscitar a si mesmo era algo muito além disso. Jesus havia isso para o Hades, para o lugar onde não existe consciência, como poderia sair de lá por vontade própria?

Por outro lado, algumas outras incredulidades foram exaltadas na Bíblia, como foi o caso dos habitantes da cidade de Beréia, que não somente duvidaram do que Paulo e Silas anunciavam acerca de Jesus, como foram verificar nas Escrituras se havia respaldo para o que eles diziam. Os bereanos, ao contrário de Tomé, são exaltados pela sua incredulidade, porque o seu exemplo ainda serve para nos ensinar que não devemos acreditar em tudo o que dizem ser mandamento de Jesus e ação do Espírito Santo. Não creio que alguém que, naquela época, tenha lido simplesmente as profecias do Primeiro Testamento, fizesse uma associação imediata delas com a vida e o ministério de Jesus, a não ser em releituras a partir da sua ressurreição, como fizeram os evangelistas. Com quem ficamos então? O que para uns é uma sábia prudência, pode ser para outros falta de fé?

Não posso assegurar que a situação daquela época fosse propícia à atitude conservadora de Tomé. Havia todo um clima de expectativa em torno da ressurreição. Os discípulos não eram as únicas testemunhas, algumas mulheres também narraram seus encontros com Jesus ressuscitado. Talvez Tomé devesse escolher melhor as suas palavras e não se mostrar tão radicalmente incrédulo. Mas aqueles eram outros tempos. Havia um mínimo de consenso entre os testemunhos, pelo menos não apareceu ninguém para se autoproclamar detentor exclusivo da revelação divina. Tudo o que foi dito visava enaltecer a vitória daquele que vencera a morte. Mas hoje não. Para combater tanta divergência naquilo que as igrejas dizem a respeito de Jesus, e tanta prepotência hierárquica e tanta sede de poder entre os seus líderes, seria preciso muito mais do que um Tomé e a sua inocente incredulidade.

Já passou da hora de se dar um basta nesta situação. Eu vejo a igreja mergulhada de cabeça na defesa do clima e do meio ambiente, execrando a palavra profética de cientistas sérios que consideram isso tudo uma grande farsa, quando o clima dentro dela não é nada animador, e o seu meio ambiente é a lama onde seus pastores a estão chafurdando. Surpreendo-me em ver que ainda há entre nós aqueles que acreditam que os governos tomarão iniciativas coercitivas, quando eles são os principais beneficiários. Lógico que são. É sempre melhor ter duzentas mil pessoas suplicando por cura num estádio, do que cinco mil na rampa do Palácio do Planalto exigindo melhor atendimento nos hospitais. A igreja deveria pensar melhor antes de comprar determinadas brigas. Walt Lippman dizia: Quando todos pensam igual, é porque ninguém está pensando. Mas antes dele Jesus já havia dito: Ai de vós quando todos concordarem com o que você diz, porque foram estes que mataram os meus profetas que vieram antes de vós.

Mas Tomé não foi somente incredulidade. Diz a tradição que ele era construtor e foi chamado a pregar o evangelho nos países árabes. Logo foi contratado por um sheik para construir um palácio em um local isolado, recebendo para isso uma grande soma em dinheiro. Quando chegou a lugar predeterminado pelo sheik, sensibilizou-se pela pobreza do povo e distribuiu todo o dinheiro entre eles. Vez por outra, o monarca enviava um mensageiro para ter notícias da obra, que sempre voltava com a mesma resposta: Seu palácio está indo muito bem. Inconformado com a falta de resultados, o sheik resolveu ir pessoalmente ao local para verificar o resultado. Não encontrando sequer uma estaca fincada, perguntou: Onde está o meu palácio? Tomé lhe respondeu: Está bem aí na sua frente. Você pode não vê-lo agora, mas o verá um dia na glória dos céus.

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Entre a fé e a razão II

Cristo e Tomé, del Verrocchio (1435-1488)
Não fazendo uso de pieguismos ou mesmo de argumentos apelativos;,que no final das contas nos levariam ao mesmo lugar, mas usando argumentos extraídos da própria Bíblia e os comparando com fatos do cotidiano, vamos mergulhar no texto para descobrir quem está certo nessa história.

A grande questão é a contestação que se faz à famosa frase de Tomé que diz
que preciso ver para crer. Imagino que o mundo inteiro conhece essa frase. Mas Jesus já tinha se antecipado a ela quando disse: Se creres, verás a glória de Deus. O contexto é o diálogo de Jesus com Marta, irmã de Lázaro, momentos antes da ressurreição deste. Ele está morto já faz quatro dias, já cheira mal, diz Marta. Se creres, verás a glória de Deus, diz Jesus. Eu citei o contexto porque este é um versículo de difícil interpretação e pode ocasionar um duplo sentido. Ele pode nos levar a crer que Lázaro morreu porque suas irmãs não perseveraram, pode consequentemente afirmar que se as bênçãos não acontecem na nossa vida é porque não temos fé suficiente. Não é isso que Jesus quis dizer. Ele sempre pregou que a bênção de Deus faz brilhar i sol sobre a cabeça de bons e maus, e que ele faz cair a chuva sobre justos e injustos. O que o versículo quer dizer é que as grandes e reais manifestações de Deus são percebidas quase que exclusivamente no terreno da fé. Que elas estão acontecendo sempre, mas poucos são os que se dão conta.

O grande milagre da paixão e morte de Cristo não foi entendido por nenhuma testemunha no Calvário, nem pelos evangelistas canônicos ou apócrifos, nem por qualquer dos apóstolos originais, mas por um apóstolo adotivo que nem conhecera Jesus pessoalmente, Paulo de Tarso. Enquanto todos lamentavam os incidentes que levaram ao flagelo, à crucificação e à morte de Jesus, e se mostravam incertos quanto ao futuro daqueles que durante três anos acompanharam de perto o seu ministério, somente Paulo cantou hinos de vitória: Deus perdoou todos os nossos pecados e anulou o escrito da nossa dívida, com os seus regulamentos que nós éramos obrigados a obedecer. Ele acabou com essa conta, pregando-a na cruz. E foi na cruz que Cristo se livrou do poder dos governos e das autoridades espirituais. Ele humilhou esses poderes publicamente, levando-os prisioneiros no seu desfile de vitória. Portanto, por meio do Filho, Deus resolveu trazer o Universo de volta para si mesmo. Ele trouxe a paz por meio da morte do seu Filho na cruz e assim trouxe de volta para si mesmo todas as coisas, tanto na terra como no céu(Cl 1 e 2). Naquela cruz que significava derrota, Deus estava obtendo a maior de todas as vitórias, estava reconciliando o mundo consigo. Foi preciso Deus criar um Paulo para que alguém enxergasse algo tão grandioso.

O que havia sido pedido a Tomé é que reconsiderasse o que Deus, através de Jesus, havia feito anteriormente. Para que Tomé se lembrasse do quanto já havia testemunhado, o quanto já havia se surpreendido com as coisas que aconteceram quando Jesus estava presente. Ele até tinha o direito de se espantar com o poder de Deus, mas não tinha o direito de duvidar. Antigamente a igreja cantava um hino que diz: Conta as muitas bênçãos. É um hino para ser lembrado sempre, mas principalmente nos momentos de aflição e angústia, quando nós julgamos que Deus não está presente ou mesmo que ele não é capaz de resolver o nosso caso. Tens acaso mágoas, triste é o teu lidar. É a cruz pesada que tens de levar? Conta as muitas bênçãos, logo exultarás. E fortalecido, tudo vencerás. Se creres, verás a glória de Deus. Como disse o salmista no momento extremo da sua provação: Eu ainda o louvarei. Se não cremos, dificilmente a veremos. As bênçãos vão acontecer e nos ficaremos apenas lamentando as perdas do presente e as incertezas do futuro.

Contudo, existe uma contrapartida no crer para ver que é a fé cega. É assim o título de uma música popular: Fé cega, faca amolada. E é isso mesmo o que acontece quando se coloca o crer acima de qualquer outra coisa. Aí já não estamos mais falando de fé, mas sim de crendice. De pessoas que são atraídas para as igrejas que anunciam grande incidência de milagres e a lugares onde há abundante ação do Espírito Santo. Numa igreja onde há necessidade constante de curas, de seguidas libertações e de contínuos exorcismos, há sinais claros de que atitudes drásticas e ações Espírito de Deus, porque ele está impossibilitado de agir livremente, então é por isso que ele tem que fazer milagres. O grande duelo que se trava hoje na igreja, e na mente de muitos cristãos é entre a busca de dons e a busca do fruto do Espírito.

Vocês já reparam nos diferentes teores contidos nas cartas paulinas? Como Paulo tinha um tratamento para uma igreja diferente do que tinha para outra? Ele perguntou para os coríntios: Sabe por que vocês precisam de dons? Porque há doentes entre vocês. Por que essa igreja precisa de libertação? Porque ainda há nelas pessoas escravizadas pelo mal. É preciso que essa igreja tome medidas drásticas. A coisa está feia aqui. Paulo, na carta aos coríntios, não está se referindo apenas aos pecados do cotidiano, mas de incesto, de espoliação, de delitos, de transgressões da lei dos homens.  Já para os gálatas ele diz algo diferente: Vocês estão precisando de amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. E de quebra ainda disse: Contra essas coisas não há lei. Os coríntios precisam antes enquadrarem-se nas leis dos homens, já os gálatas, necessitam de um pouco de sensatez, para usufruírem de algo que está acima de todas as leis. Não se trata de comparar pecadinho com pecadão, mas aqui, bastam pequenos ajustes, ali somente medidas drásticas. Em qual das duas igrejas o Espírito de Deus age mais livremente?

Então por que a grande maioria dos cristãos está cada vez mais empenhada em buscar os dons e não o fruto do Espírito? Por que a tradição cristã, que atravessou séculos e sobreviveu a tudo e a todos, deve ser esquecida em favor de uma nova tendência? Talvez nas igrejas de Éfeso e de Corinto fosse assim, mas o contexto das outras igrejas do primeiro século era parecido com a igreja dos gálatas. Eram igrejas regionais, frequentadas por pessoas comuns, por gente do povo local. Vocês já repararam o nome das igrejas de hoje. Não tem nomes simples como Igreja Metodista, Igreja Batista ou Igreja Presbiteriana. O que existe hoje é Igreja Mundial, Igreja Universal, somente nomes pomposos e grandiosos. A doutrina do pensamento positivo entrou de vez na igreja. Nada de tristeza, nada de dúvida, nenhum temor, nenhuma incerteza.

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Entre a fé e a razão I

A incredulidade de Tomé, ter Brugghen (1588-1629)
Disseram-lhe, então, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas Tomé respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o dedo, e não puser a mão no seu lado, de modo algum acreditarei.
Entenderão o contexto ao ler João 20,19-29.

A narrativa nos leva a crer que Tomé cometeu o segundo maior crime contra o estabelecimento do Cristianismo. Induz-nos a pensar que ele
estaria em uma categoria um pouco abaixo de Judas, e que cometera um delito um pouco menos grave, porque uma nova religião necessita de crentes, de seguidores crédulos e fiéis, jamais de incrédulos. Diferentemente de hoje, quando as igrejas cristãs estão botando gente pelo ladrão. Essa é uma expressão estranha aos mais jovens não entendem. Não estou acusando ninguém de roubo. Ladrão nada mais é do que um pedaço de cano que se coloca nas caixas d’água para que elas não transbordem quando a boia falha ou mesmo quando ela nem existe. Então essa é a ideia, o que mais se tem hoje é gente se dizendo cristão. A sua soma já é quase a metade da população da Terra, ou seja, mais de três bilhões e meio de pessoas. Já não existe nem mais o antigo orgulho de identificar-se pela denominação, ninguém mais é batista ou assembleiano, hoje todo mundo é cristão.

Mas no começo não era assim, a igreja nascente carecia muito de adeptos que a divulgassem e de testemunhas que a afirmassem. Mas não precisava nem um pouco de críticos para contestá-la. Ainda era muito cedo pra André fazer uma coisa como essa. Não havido nenhum confronto com outra doutrina, ainda não tinha acontecido nenhuma controvérsia com outros religiosos, e a fé cristã já estava emperrada em si mesma, já estava travada dentro das suas próprias convicções. Nem bem a comoção causada pela paixão de Cristo havia sido absorvida e já havia dissidentes na igreja. Esse espanto se torna maior ainda porque não está se falando da totalidade dos discípulos de Jesus, que segundo as escrituras eram bem mais do que os setenta que ele enviou na primeira grande cruzada missionária. Mas porque aconteceu no estreito círculo dos doze que escolheu para segui-lo mais de perto. Entre os doze que puderam testemunhar todo o seu ministério, os doze escolhidos a dedo. Quando Jesus fala: Não foram vocês que me escolheram, mas eu que escolhi vocês, alguns cristãos de hoje não aceitam. Pelo menos é o que se canta na letra de algumas músicas modernas: eu decidi te servir, eu vou te adorar etc. Mas aqueles doze, não. Eles podiam contestar a fé de forma alguma. Foram escolhidos um por um, sem pressão e sem indicação pelo próprio Jesus.

Jesus iniciou um colegiado, mas parece que Tomé criou um grupo de estudo à parte, pois o que mais se ouve hoje nas igrejas hoje em dia é que é preciso ver para crer. Gente que se orgulha de ser como São Tomé. Se não exatamente com essas palavras, mas um conceito bem definido, principalmente pelas doutrinas triunfalistas, onde o poder de Deus está sempre em questão. Em igrejas que se pede que ele cada vez mais manifeste o seu poder para que mais pessoas alcancem as bênçãos desejadas e assim passem a crer nele. Para que pessoas sejam levadas à verdade por meio de sinais incontestáveis. As mensagens que são pregadas sobre Deus são muito semelhantes a uma campanha política. Mostra-se de antemão as vantagens que Deus pode proporcionar de uma forma tão mercantilizada que ele parece mais um candidato a Deus. Nada parecido com o Deus soberano e todo poderoso que ensina a Bíblia.

As tentações de querer ver o poder, de exigir provas, de comprovar indubitavelmente o poder e a ação de Deus sempre estiveram presentes na vida da Igreja, e não seria diferente no ministério de Jesus. Mal ele tinha ensaiado o seu enredo missionário, já foi desafiado pela própria mãe a transformar água em vinho. Não sei precisar se um pouco antes ou um pouco depois, mas também foi tentado a começar o seu ministério mostrando poder de transformar pedra em pão para que o povo cresse nele. Nem mesmo a cruz conseguiu livrá-lo dessa sua sina. Não é que o incômodo vizinho da cruz ao lado foi lá perturbá-lo naquela hora difícil? Prova aí, se tu és filho de Deus salva-te a ti e a nós. Pelo visto Tomé pode ter manifestado publicamente a sua necessidade de provas, mas está longe de ter inaugurado essa escola, de ter sido o único e muito menos o primeiro a sucumbir a essa tentação. Está longe de ser um contestador da fé solitário, e que no fundo demonstra uma dúvida que sempre tivemos, e ao que parece, sempre teremos: crer para ver ou ver para crer? Talvez aí a palavra ver tenha um sentido mais profundo do que enxergar uma situação. Ela vai até o entendimento, vai até a razão do porquê a situação se apresenta daquela maneira. Então seria: entender para crer ou crer para entender?

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Transfiguração III

Transfiguração de Carracci
A transfiguração é algo único em toda a história. Antes de Jesus não houve nada semelhante, e depois dele certamente não haverá. Deus estava antecipando um pouco daquilo que nos está reservado.
É como se nos permitisse olhar pelo buraco da fechadura de uma porta que esconde uma realidade incomensuravelmente maior do que a que vemos. Paulo dizia que as nossas tribulações tem um peso ínfimo diante da glória que nos está reservada. Os discípulos não experimentaram a transfiguração, apenas testemunharam, mas isso foi suficiente para eles. A exemplo do que aconteceu com eles, as mais simples manifestações do Reino deveriam ser suficientes para fartar os nossos olhos, em vez de cobrarmos a cada oração uma ação mais efetiva de Deus na nossa história.
Estamos a toda hora exigindo de Deus provas incontestes do seu poder para compensar a nossa fragilidade de seres humanos. Desta forma, estamos apenas negando a realidade de que é justamente na nossa fraqueza que o poder de Deus se aperfeiçoa. Paulo dizia que para esse poder se manifestar mais eficazmente é necessário que o preservemos em vasos de barro, para que a honra não seja nossa, mas exclusivamente de Deus.

Assim como os três discípulos, somos chamados testemunhar que o complemento da revelação de Deus é o livramento. É preciso anunciar em alta voz que todas as vezes que Deus se manifesta, o mal sai perdendo, e perdendo muito. Ficou mais do que evidente que a transfiguração que se dera em um local separado, santificado pela presença de Deus, e para um grupo escolhido, não terminou simplesmente assim. O êxtase pela breve visão da glória de Deus se completaria não ali, não em oculto, não para os discípulos, mas justamente no lugar onde o mal mais se fazia notar. Paulo ao observar os contrastes entre as situações onde o mal predominava, como quando ele próprio se encontrava na estrada de Damasco, e as intervenções mais que transformadoras, efetivamente transfiguradoras de Deus, só poderia chegar a uma única conclusão: Onde o mal aumenta, a graça de Deus aumenta muito mais ainda.     

Outro dado importante é o fato de que na transfiguração Deus não alardeou a sua onipotência. Jesus mostrou a glória que recebera do Pai diante de poucos, em um local isolado. Mas quando foi preciso resgatar uma vida que se esvaía, tragada pelas forças dominadoras do inferno, não vacilou em mostrar quem realmente Reina nesse mundo. Nem mesmo a incredulidade dos seus amigos mais chegados conseguiu conter aquela onda incontrolável de amor explicitamente revelada no serviço ao que estava tão carente da graça de Deus, a ponto de morrer. Ó geração incrédula e perversa, até quando estarei convosco? Até quando vos suportarei? Até quando suportarei estes louvores vazios? Essa ânsia em receber poder, apenas para ter poder? Esse descompromisso com a justiça, com o indigente, com o ignorante, com o aflito e com o sozinho? Essa permissividade excessiva com o mal?

Que a narrativa da transfiguração nos faça acreditar que Deus abre mão de qualquer manifestação de louvor, quando a necessidade de um dos seus filhos é premente. Mais ainda, que ela não nos faça apenas acreditar que o mal existe nos vales das nossas vidas, porque já sabemos que ele existe, mas que nos faça acreditar que o mal pode ser vencido.

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Transfiguração II

Transfiguração, Raphael (1483-1520)
Releia Lucas 9,28-41
Por outro lado, temos que considerar que existem muitos templos dedicados a outros credos que são lugares muito agradáveis. Alguns possuem em seus rituais manifestações musicais e expressões corporais mais ricas e mais belas que as nossas. Em outros, a fraternidade e a misericórdia são bem mais evidentes. Mesmo que Jesus nos tenha alertado sobre a necessidade de superarmos as instituições humanas indo além delas na justiça, no amor, na compaixão,
caminhando, se preciso for, mais um milha. Através do seu ensino ficamos sabendo também que devemos exceder as boas ações daqueles que professam outros credos, sem, contudo, omitirmos as práticas exclusivas do Cristianismo. Porém, o que se vê nas igrejas hoje em dia é a declarada guerra “espiritual” contra todas as pessoas e manifestações religiosas diferentes da nossa. Isso, quando sobra algum tempo das disputas domésticas.

O mais trágico disso tudo é que conseguimos transformar a igreja, um local predestinado por Deus para ser o principal centro de convergência pacífica e fraterna para indistintamente todos os povos e credos, em um autêntico campo de batalha. Pervertemos o lugar escolhido por Deus para que convertêssemos os confrontos e provações do dia a dia em esperança na plenitude do seu Reino, no mais acerado ringue de disputas mesquinhas de poder, apesar da narrativa da transfiguração nos mostrar que o verdadeiro combate não é o do monte, mas aquele que nos aguarda no vale.

Certa vez Jesus disse que a sua igreja seria edificada sobre a rocha e que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela. Tanto no consenso cristão quanto na Nova Tradução da Linguagem de Hoje da Bíblia, prevalece a ideia de que a igreja é suficientemente forte para resistir as todas investidas que o mal intentar contra ela. Que me perdoem os exegetas e teólogos de plantão, mas este não é um texto que serve para nos tranquilizar quanto à solidez estrutural da igreja. Pensando desta forma vamos concluir que mesmo que o inferno estabeleça suas fronteiras na porta da igreja, não terá poder para invadi-la e conquistá-la. A igreja que pensa assim já foi invadida e conquistada pelas forças do mal, só falta ser avisada. O texto quer dizer literalmente o contrário. As palavras de Jesus são a garantia de que as portas do inferno não resistiriam a qualquer investimento consciente da igreja contra elas. E isso não é uma falácia, a história está ai para provar. Aquela humilde, insipiente e perseguida igreja que se reunia nos porões fétidos das sombrias catacumbas de Roma, fez ruir não somente as portas, mas toda a estrutura do maior império que a civilização já conheceu.

Não precisamos voltar ao passado distante para atestar esta realidade. No passado recente uma das mais antigas e infames portas do inferno ruiu ante os olhos estupefatos do mundo. Aquilo que anos de diplomacia e negociações não foram capazes de concretizar, Deus o fez com umas poucas crianças. Quem acompanhou a queda do muro de Berlim pôde ver o horror que se instalou nos olhos daqueles bem treinados soldados, quando um grupo de crianças investiu contra eles fortemente armadas com ramos de flores. Eles viram algo que nem todas as TVs do mundo puderam registrar. Enquanto as câmeras registravam a marcha dos pequeninos, os soldados se viram diante da glória de Deus, e por isso fugiram em debandada. Quem quiser que acredite que foram as circunstâncias que derrubaram aquele muro, mas a igreja não. Ela tem o direito de crer assim. Precisa enxergar que as grandes e decisivas vitórias do evangelho se dão fora dela, no vale que fica abaixo dela.

Mesmo que o testemunho das manifestações de Deus na história sejam registros fidedignos, a igreja não tem porque esperar testemunhá-las para agir na direção e em favor delas. Quando o povo recém liberto do Egito se viu entre a cruz e a espada, melhor dizendo, entre o exército de Faraó às suas costas e a imensidão do mar à sua frente, imediatamente cobrou de Moisés uma atitude. Atônito que estava pela extrema dificuldade que se apresentava, Moisés suplicou a Deus por uma rota de fuga ou, quem sabe, por uma rendição razoável. Mas Deus simplesmente lhe disse: Diga ao meu povo que marche.

Quem ousa contradizer que a rotina mais perfeita da igreja seja justamente a marcha. A igreja que marcha ao alto do monte, buscando orientação, inspiração e consolo. A igreja que marcha de volta em direção ao vale para testemunhar o que Deus fez por ela, e partilhar o amor que está incontido em seu coração com todos aqueles que estão aprisionados atrás das portas do inferno. Diga ao meu povo que marche. Diga a minha igreja que desça do monte. Diga a todo cristão que vá a todo lugar onde o evangelho se faz necessário. (continua)

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Transfiguração I

Transfiguração de Ernesto Thomazini
pintada em 1924, em Iguape, SP
É importante ler Lucas 9,28-41
Jesus acabara de anunciar pela primeira vez a sua paixão e morte, mas, ao que parece, os discípulos não tiveram uma visão esclarecida deste momento singular. Para eles, Jesus veio trazer, juntamente com o Reino, a hegemonia de Israel sobre todos os povos, mais particularmente sobre os romanos. A partir daí Jesus começa a mostrar que o seu Reino fará muito mais do que uma simples inversão no poder, e que isso não se dará através da contemplação.

Jesus escolhe três dos seus discípulos para acompanhá-lo em um retiro espiritual. Curiosamente os mesmos três que o acompanhavam mais de perto: Pedro, Tiago e João. Enquanto Jesus orava e eles dormiam, transfigurou-se diante deles. Transformou-se naquilo que Paulo mais tarde chamaria de corpo incorruptível e suas roupas resplandeceram. Ainda que não totalmente despertados, os três discípulos experimentaram de imediato duas reações diferentes: temor e êxtase. É muito provável que foi esta combinação de sentimentos que os levaram a subornar Jesus com a oferta tentadora de três tendas, de onde podemos tirar igualmente três conclusões:
O ser humano imagina que pode de alguma forma pagar pelas manifestações de Deus.
Por ter uma visão curta, pensa que o Reino é exclusivamente para si e cria redomas para retê-lo.
O ser humano ainda acredita em um Deus criado à sua imagem e semelhança.

Pediria a atenção de vocês para a sequência dos acontecimentos e do quantos eles corroboram com as conclusões acima.

Primeiramente ressaltar o fato de que eles subiram o monte para orar. Não há nada de errado em querermos um pouco de privacidade na hora de uma conversa íntima com Deus. Existem coisas na minha vida que somente eu e Deus conhecemos. O isolamento é o local propício para um diálogo franco e sem chavões, porque somente assim posso abrir o coração diante daquele que me conhece por inteiro.

Em segundo lugar, também não há nada de errado em querermos contemplar a glória do Senhor. O salmista há muito tempo manifestou que o objeto do seu desejo era contemplar a beleza do Senhor e meditar no seu templo. Seria muito bom que ficássemos apenas nisso, em vez de tentar contemplá-lo através de suas criaturas.

Da mesma forma, não há nada de errado em se sentir bem na presença de Deus. Quando Pedro disse: É bom estarmos aqui, falou por todos nós. Por mais que Jesus condenasse os delitos praticados no templo, o seu amor pela casa do seu Pai era incontestável, e seu maior desejo era vê-la engajada no propósito para o qual foi edificada: A minha casa será chamada casa de oração e será para todos os povos. É muito bom estarmos na casa de Deus, principalmente quando temos a consciência de que a casa é realmente de Deus. É um local diferenciado da minha casa e da casa dos meus pais, porque é onde nos sentimos nivelados. Desde o mais letrado teólogo, ao que se inicia na catequese; do mais antigo membro, ao que a visita pela primeira vez, a igreja é onde deveríamos nos sentir mais à vontade, onde deveríamos dizer com toda sinceridade: É bom estarmos aqui.

Ainda há um quarto elemento válido, e sobre o qual não paira qualquer recriminação. Fazer tendas, ampliar as instalações ou construir igrejas em locais afastados, é extremamente positivo. Se existe uma responsabilidade nossa para com a construção que recebemos pelo esforço, pelo carinho e pela dedicação dos nossos antepassados na fé, é a de repassá-la às gerações futuras em melhores condições do que a encontramos. Se devolvermos a quantia exata de talentos que recebemos, o melhor que se dirá de nós, é nos chamarmos de servos inúteis.

Uma vez ditas essas coisas, vamos passar a falar mais propriamente do assunto proposto: a transfiguração. Uma rápida análise do texto nos fará conscientes de que a principal finalidade do evangelho não está sendo conseguida. Orar, louvar, contemplar, conservar e construir igrejas é tudo muito bom, mas ainda são passos tímidos em direção ao propósito de Deus de salvar o mundo. Vamos descobrir que ainda estamos no monte, como simples espectadores das ações concretas de Deus. Muitos outros discípulos se juntaram e outros tantos ainda se juntaram a nós, porque, assim como nós no passado, também descobrirão que permanecer no monte é de fato muito bom. Mas Jesus nos fará descer para o vale, porque lá há um filho de Deus sofrendo e ele precisa ser alcançado pela maravilhosa graça. (continua)

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Adoração ou comunhão? III

Ló e suas filhas de Gentileschi (1563-1639)
Por último, a nossa adoração a Deus deve estar em sintonia com os acontecimentos do mundo contemporâneo. O culto jamais deve ser uma fuga do mundo real. Eu mesmo já fiz algumas vezes, por isso não estou acusando ninguém, mas tem muitos vão à igreja adorar a Deus como o propósito de escapar do mundo real. Para entrar num mundo religioso que nada tem a ver com a realidade. Fazendo isso nós divorciamos um mundo do
outro. Tem coisas que a gente faz na igreja que, de modo algum, faz fora da igreja. Até aí menos mal, muito mais temeroso seria o contrário, as coisas que a gente faz lá fora. Nós oscilamos entre esses dois mundos: o sagrado e o secular. Vivemos uma vida dupla. Temos que tomar cuidado porque se o nosso momento de adoração nos encoraja a deixar de fora a nossa casa, o nosso trabalho, nossa comunidade e os nossos amigos, estamos adorando da forma mais antibíblica possível. Se for assim, estamos adorando a Deus numa esquizofrenia espiritual que contribui cada vez mais para o divórcio irrevogável entre o mundo e a igreja. Talvez a coisa mais infeliz que jamais aconteceu à história do Cristianismo.

Temos que reconhecer de uma vez por todas que o Deus a quem adoramos é um Deus vivo. Vocês sabem que Deus ainda não morreu? Posso ir além disso. O Deus a quem adoramos é o Deus que reina neste mundo. O Deus a quem adoramos é o Deus que criou o mundo, que criou o mundo onde se trabalha, o mundo que tem lares, o mundo de comunidades e de pessoas. Seu Filho encarnado nasceu, viveu e, contra vontade, morreu neste mundo. Refugiar-se na igreja para fugir do mundo é negligenciar a obra e o sacrifício que o amor de Deus dedicou a esse mundo, dando a ele o melhor que tinha.

Os telescópios estão descobrindo uma quantidade enorme de planetas como o nosso, e isso significa possibilidade de vida. A existência de vida fora da Terra não é mais uma ficção, é um dado estatístico. Mundo mais avançados, mundos mais justos, mundos onde há mais fraternidade. Mas foi esse o mundo que Deus escolheu para enviar seu Filho. Acho impressionante a quantidade de pessoas que só enxergam o quanto o Diabo é poderoso. Só ouço gente falando do que o coisa ruim é capaz. Dificilmente eu ouço alguém dizer: Olha como Deus está reinando neste mundo, olha como Deus é poderoso! Vamos dar razão aos pais da suspeita? Vamos dizer que Freud, Nietzsche e Marx estavam certos, que Deus deixou o mundo à sua sorte?

Deus reina neste mundo, e reconhecer a soberania de Deus é reconhecer que todas as coisas lhe são sujeitas. Eu não posso deixar o mundo debaixo da soberania de Deus, mas eu posso proclamá-la nessa pequena parte do mundo em que eu estou envolvido. Quando, na adoração, deixamos de fora o trabalho, a minha casa, a minha cidade e meus amigos, estamos abrindo mão daquilo que o próprio Deus predestinou para nós. Mas vocês são a raça escolhida, os sacerdotes do Rei, a nação completamente dedicada a Deus, o povo que pertence a ele. Vocês foram escolhidos para anunciar os atos poderosos de Deus, que os chamou da escuridão para a sua maravilhosa luz.

Adorar a Deus é viver por Deus. A Bíblia nunca registrou sequer um momento de Jesus explicitamente adorando a Deus, com as mãos para o alto, com olhos fechados, completamente desligado de tudo à sua volta. Jesus adorava a Deus no mundo através de um relacionamento calcado no amor e no serviço a esse mundo. Não estou querendo inventar moda, mas é assim que se adora a Deus. A hora e meia que passamos cantando, orando e estudando no culto de adoração a Deus focaliza, visualiza e verbaliza toda a expectativa da nossa vida. O sacrifício agradável a Deus não é tanto que o vem da nossa adoração, mas dos lábios daqueles que passam a adorá-lo porque se sentiram incluídos na comunhão. De tal maneira brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vendo as suas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos céus.

Mas virá o tempo, e, de fato, já chegou, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e em verdade. Pois são esses que o Pai quer que o adorem. Deus é Espírito, e por isso os que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade.

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Adoração ou comunhão? II

Abertura do quinto selo de El Greco
Meditação inspirada em João 4,20-24

O que faz essa diferença na adoração cristã? O que faz o nosso culto distinto? Quais são as características que fazem a adoração ser aceitável a Deus e agradáveis a nós?

Primeiramente, a adoração a Deus tem que ser instruída e inspirada pelas Escrituras. É uma ilusão imaginar que somos
nós quem tomamos a iniciativa na adoração. Toda a adoração é uma resposta à ação de Deus. Foi ele quem nos amou primeiro. Foi ele quem mandou seu Filho unigênito para nos salvar. O texto bíblico lido nos mostra isso. Jesus disse para a mulher samaritana: São estes os que o Pai quer que o adorem. Por mais absurdo que possa parecer, é Deus quem dita as regras da adoração. É ele quem se revela a esse mundo tão injusto, nos dando o melhor de si. Mas parece que nós estamos em Atenas na época de Paulo. O nosso tipo de adoração é tão diversificado, eu diria, tão contraditório que parece que estamos adorando a um deus desconhecido. Isso mesmo, a falta do conhecimento de Deus faz com que inventemos práticas ridículas, sob o pretexto de estamos ligados em Deus de tal maneira nós, que é o Espírito que está nos conduzindo. Isso simplesmente faz com que ignoremos por completo o tipo de louvor que agrada a ele. Se ele é desconhecido, como vamos saber que tipo de adoração ele aceita? Eu não me sinto capaz de dizer exatamente tudo o que é agradável a Deus, mas, consultando a Bíblia eu posso muito bem dizer o que não lhe é agradável.

No Sermão da Montanha, Jesus faz críticas severas à adoração hipócrita fundamentada no paganismo, com suas orações compridas e repetições vãs. Faz também crítica à adoração que tem a finalidade de atrair a atenção para si. Isso é paganismo, os pagãos adoram assim. Outro tipo desaprovado é a adoração rotineira, aquela que a pessoa não está realmente empenhada. Jesus diz que o Deus em quem cremos, o Deus revelado nele, simplesmente não quer este tipo de adoração. Uma das primeiras exigências da oração que ele nos ensinou é que todos reconheçam que o seu Nome é santo. Jesus veio para nos mostrar quem é esse Deus. Ele é o Criador, nosso Pai, aquele que nos aceita como nós somos, e isso é muito importante. Isso determina o tipo de Deus em que cremos, determinando, da mesma forma, o tipo de adoração que é agradável a ele. Então por isso a nossa adoração tem que ser instruída e inspirada na sua Palavra.

Em segundo lugar, ou a segunda característica é que a adoração tem que ser oferecida pela igreja toda. Durante a Idade Média, e eu não me refiro à Igreja Católica porque ainda não havia acontecido a reforma, a adoração era um espetáculo teatral. O teatro era a igreja; o palco, o altar; os atores, seus sacerdotes; a língua, o latim. As pessoas na congregação eram apenas espectadores, assistindo passivamente o drama desempenhado por aqueles cujo altar era sua propriedade exclusiva. Mas alguns padres do baixo clero, das igrejas mais humildes da periferia, revoltaram-se contra aquela encenação e começaram a promover cultos, ou missas, como queiram, com a participação de toda a congregação. Isso foi o estopim para a reforma da igreja que viria mais tarde. Como nós devemos dar graças a Deus por aqueles anônimos, que mesmo antes de Lutero aceitaram essa verdade. Foi essa indignação que trouxe de volta a adoração ao nível do povo, que fez com que o que era dito no altar fosse entendido por todos, e que todos pudessem adorar com a mesma intensidade e sinceridade.

Infelizmente esse ranço ainda permanece na igreja. Para muitos o pastor ou o padre são pagos para fazer tudo o que a congregação deveria fazer. É claro, se o pastor não faz um sermão que agrade ou se o padre não consegue fazer uma missa animada, nós vamos procurar outra igreja. Está bem claro que ainda é assim que funciona. Se o pastor não toca violão e se não faz o povo sair do chão, ele não serve pra ser pastor aqui. Eles tem que fazer de tudo, enquanto a congregação assiste, escuta, nem sempre atentamente, alguns até dormem, interrompendo seu sono apenas na hora de voltar a cantar animadamente. Que diferença existe entre a missa medieval e os cultos atuais? Que diferença existe entre os atores antigos e os atuais?  A adoração a Deus tem que ser muito mais do que a exibição individual dos dons de um pastor, padre, levita, ministro de louvor ou qualquer outro astro hollywoodiano que venha a ser inventado. Já é um grande erro teológico sentarmos um atrás do outro na igreja. A adoração tem que ser coletiva porque ela exige intimidade, exige envolvimento, exige aproximação. Resumindo, exige comunhão. (continua)

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