Pecado e Graça (final)

A Conversão de São Paulo de Luca Giordano (1634-1705)
Mas existe também um segundo aspecto nessa luta entre o pecado e a graça. Nós estamos separados uns dos outros, porque nós estamos separados de nós mesmos. Você já percebeu o quanto estamos separados de nós mesmos? Já sentiu que dentro si existe uma pessoa dividida? A nossa vida é uma luta interna que revela constantemente por meio de agressões, por meio de ódios, por meio de desespero. Comigo por meio de uma raiva repentina incontrolável. Já me disseram várias
vezes que eu não deveria falar isso no púlpito, mas é impossível não me ver por inteiro nesse quadro.

Eu preguei tanto contra o amor próprio, contra a valorização pessoal, e confesso agora o quanto eu errei nessas pregações. Eu deveria ter atacado é essa mistura de egoísmo e ódio que nos impede de amar a nós mesmos e aos outros. Deveria ter pregado contra a repugnância do nosso próprio ser que nos faz cada vez mais separados de nós mesmos. Contra essa agressividade interior que nos impede de amar até a nós mesmos. Como para mim é difícil aceitar que eu não gosto de mim mesmo. A minha luta é contra essa falta de autoestima. Só pode amar ao outro quem ama a si mesmo. Só pode aceitar o outro, aquele que aceita a si mesmo. Talvez seja por isso que na maioria das vezes eu prego o evangelho com raiva. A raiva está dentro de mim, me dividindo.

Se existe dentro de nós um instinto de autopreservação, existe também um instinto de autodestruição. Se existe a tendência de abusarmos dos outros, existe também a tendência de abusarmos de nós mesmos. Crueldade contra os outros é sempre crueldade contra nós mesmos. Quando eu faço alguém sofrer é porque eu estou querendo sofrer também. Estou sempre dividido entre a minha consciência e a minha inconsciência. Por um bom tempo eu pensei que era o único que se sentia assim. Eu só ouvia gente contar vitórias, alardear conquistas, e pensava comigo mesmo: será que só eu que sofro dessa divisão interna? Foi assim até o dia que eu li atentamente o versículo 19 de Romanos 7. Paulo falou: o bem que eu quero fazer, eu não faço; mas o mal que não quero fazer, este está sempre diante de mim.

Paulo percebeu muito antes da psicologia moderna, muito antes de Freud, que ele também era uma pessoa dividida em si mesma. E continuou falando como um psicólogo de hoje: mas se eu faço o que não quero, já não sou quem faço, mas o pecado que está dentro de mim. Paulo percebeu muito bem esta divisão dentro dele. Ele sentiu a divisão entre a vontade consciente do que ele queria fazer e o que realmente fazia. Ele sentiu a divisão entre si mesmo e algo estranho dentro dele. Ele sentiu-se separado de si mesmo, e essa separação não chamou de demônio, não chamou de encosto, não chamou de espírito obsessor. Chamou simplesmente de pecado. Paulo identificou o pecado como um agente que atuava em corpo e o impelia a fazer o mal. Uma compulsão irresistível, pois ele não queria fazer o mal, mas fazia; queria fazer o bem, mas não conseguia fazer. Bom, esta foi a experiência de São Paulo, e de certa forma, a minha experiência também.  Mas será possível que somente nós dois tenhamos passado por isso? Claro que não, é a experiência de cada um de nós. É a experiência de separação de nós mesmos. É a experiência real e visível de pecado aumentando.

Mas nessa luta existe também um terceiro aspecto. Nós estamos separados uns dos outros porque estamos separados de nós mesmos, e estamos separados de nós mesmos porque estamos separados de Deus. E é justamente nessa separação que ficamos alienados de vez, porque perdemos todas as nossas referências. Ficamos sem saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Ficamos separados do mistério e da grandeza da nossa própria existência. E esse abismo de separação é profundo demais. Querem saber o quão profundo é esse abismo? Querem saber como ele se manifesta? Este abismo se manifesta principalmente pela nossa incapacidade de aceitar o amor gratuito de Deus, isso porque estamos apegados demais à lei. No íntimo, não queremos a liberdade, nós queremos mesmo é a lei.

Nós queremos sempre saber quantas vezes devemos perdoar, com quanto devemos contribuir e até onde se deve amar o próximo. A lei parece que nos dá um tipo de segurança porque diminui a margem de erro. Com a lei nós estamos propensos a errar menos. E é por isso que, para nós, é difícil compreender e aceitar o amor de Deus. O apóstolo Paulo sabia muito bem disso, quando escreveu o nosso texto de hoje: onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda. Foi a experiência maior e mais expressiva da sua vida. Foi no momento da sua separação maior. Lá na estrada de Damasco, quando o livro dos Atos dos Apóstolos nos diz que ele respirava ameaças contra a igreja. Uma luz brilhou, e uma voz lhe falou: você é aceito. Você é aceito, apesar de não merecer ser aceito; apesar da sua separação, você é aceito. Foi no exato momento em que Paulo sentiu-se aceito por Deus que ele pode aceitar a si mesmo, e assim passar a aceitar os outros. Foi lá, na estrada de Damasco, que Paulo foi alcançado pela graça.

E o que significa ser alcançado pela graça? Ser alcançado pela graça não significa que de repente passamos a acreditar em Deus, e achar que a Bíblia é a verdade. Não significa que aceitamos de imediato que Jesus é o Salvador. E nem significa também que progredimos em nossa conduta moral. Tudo isso pode ser o fruto da graça, mas não é a graça em si. Porque isso não é uma coisa que está em nós, que vem de nós ou da nossa capacidade. Ninguém pode transformar a si mesmo. Ou nós somos transformados pela graça, ou nós não somos transformados. É uma coisa ou outra. Acontece a graça de Deus na nossa vida, ou não acontece. E certamente não acontece quando nos julgamos dignos, quando queremos forçá-la a acontecer ou quando achamos que não precisamos dela.

A graça nos toca quando atravessamos o vale escuro de uma vida vazia e sem sentido. A graça nos toca quando sentimos a separação de nós mesmos mais aguda do que nunca. A graça nos toca quando sentimos a mais completa repugnância do nosso ser. A graça nos toca quando ano após ano, aquela perfeição tão desejada simplesmente não acontece conosco. A graça nos toca, quando as velhas compulsões continuam reinando em nós. A graça nos toca quando o desespero destrói toda alegria de viver. É como um raio de luz quebrando a escuridão da nossa vida. É uma voz nos dizendo: você é aceito. Você é aceito apesar da sua separação, apesar do seu pecado, apesar de não merecer ser aceito. Simplesmente aceite o fato de que você é aceito por Deus. E quando isso acontece, experimentamos a graça de Deus. Depois dessa experiência, tudo é transformado.

Sei que estou pegando pesado, me desculpem por isso. Mas quando se fala sobre a graça de Deus as pessoas pensam que qualquer coisa serve, pelo contrário. Quando a graça de Deus nos transforma, nós somos transformados mesmo, e o resultado disso é uma vida totalmente diferente de tudo que havia antes, não pelos padrões normais que conhecemos, mas pela novidade da graça. Porque nesse instante, a graça vence o nosso pecado dentro de nós e começa a derrubar todas as barreiras que existem entre nós e os outros. Quebra as barreiras que por anos estamos construindo dentro de nós e passamos a aceitar aos outros e a nós mesmos. Foi assim com o apóstolo Paulo, pode ser assim comigo, pode ser assim com você também. Porque a lei veio para aumentar o mal. Mas onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda.

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