Pão ou pedra? (final)

"Isto é o meu corpo"
De antemão devemos nos lembrar de que, a não ser o amor de Deus, nada mais na consciência de Jesus era definitivo. Isso ficou evidente quando disse que os Mandamentos, as prescrições da tradição e até mesmo a própria Palavra de Deus teriam que estar condicionadas e serem interpretadas a partir desse amor. Por várias vezes ele os reinterpretou dizendo: visto o que está escrito? Eu, porém vos digo.  Ele disse uma vez que não veio para revogar a lei, mas na verdade revogou muita coisa. Ele mudou o sentido de praticamente tudo no que se fundamentavam aqueles que não queriam que o Reino de Deus fosse implantado. Então, não há porque esperar que na sua pregação fatalmente não houvesse uma hora em que ele faria o dito pelo não dito e colocaria pedra no lugar de pão, e pão no lugar de pedra.


Quando Jesus foi levado ao deserto para definir as prioridades da sua missão, o tentador se apresenta com propostas excepcionalmente válidas. Numa delas ele desafia Jesus com numa das suas principais necessidades básicas: Você está com fome? Se eu estivesse no seu lugar mandaria que estas pedras se transformem em pães. E Jesus responde: nem só de pão o homem viverá. O tentador ousou sugerir que ele transformasse pedras em pães, que através de magia transformasse uma coisa ruim em uma coisa boa, que transformasse maldição em bênção. Mas Jesus percebeu por trás daquela intercessão amorosa a voz do Diabo tentando mostrar os atalhos para o sucesso da sua missão. Deixe a pedra aí. Ela foi criada para ser pedra e não pão. Se Deus quisesse transformar as pedras em algo útil, não faria delas pão, mas sim verdadeiros filhos de Abraão, coisa que vocês se vangloriam de ser e não são

Há uma segunda condição a ser observada no conceito entre bem e mal. É o que está embutido na escolha entre os dois elementos. No transcurso do ministério de Jesus fica bem claro que a questão implica em uma escolha. Só que a escolha não é mais a mesma do texto base desta reflexão, que é a escolha do que um pai deve dar ao filho. Também não é exatamente a escolha das prioridades deste ministério. A solução proposta pelo tentador não comprometia a sua decisão de servir a Deus, mas sim as suas prioridades. Mas a principal escolha é bem mais complexa, muito mais sutil e muito mais decisiva. Fragilizado pela fome Jesus tem que decidir quem vem primeiro na sua vida, Deus ou pão. Não há nada de errado em comer, mas Jesus é taxativo: Quando temos que decidir entra as necessidades imediatas e a obediência aos propósitos de Deus, Deus tem que vir primeiro.

É muito comum se ouvir das pessoas que trabalham com assistência social nas igrejas a seguinte máxima: Vamos dar ao necessitado o pão, para depois então falarmos de Deus. Assim ele há de nos escutar. O esquema do trabalho social nas igrejas quase que invariavelmente obedece este raciocínio. Eu sei que as situações podem ser diferentes, por isso digo quase. Não se pode generalizar, mas no caso específico da tentação de Jesus, a escolha era exatamente esta. De imediato, o homem comum não veria qualquer problema em fazer o milagre dos pães, mais tarde Jesus faria este mesmo milagre diante de uma enorme multidão. O problema é saber a quem o necessitado irá creditar aquela oferta, ao Deus da Bíblia ou ao Deus do pão? Ao Deus que dá o pão, mas que na hora em que ele se torna escasso  também é Deus, ou ao Deus que é avaliado segundo os seus benefícios imediatos para conosco?

Vocês não estão me seguindo pelos sinais que apontam mudanças radicais, mas porque comeram e se saciaram. Não trabalhem pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna. Jesus disse isso porque era comedido com os pecadores como nós. Se acontecesse algo semelhante com Paulo ele diria: Vai trabalhar vagabundo!

Não vim para transformar pedra em pão, pelo contrário, eu vim para transformar a mim mesmo em pão e a ser a pedra que calça o caminho verdadeiro. Sou o pão que foi triturado em favor de muitos, sou também a pedra que vocês rejeitaram. Mas Deus fez de mim a pedra angular, a mais importante em toda construção, me fez dar o meu corpo como quem dá um pão, que partido é dividido entre todos. Que essa Páscoa nos ensine a fazer escolhas, certas ou incertas, não importa. Mas que sejam dignas da grandeza do amor com que nos amou o Pão vivo que desceu dos céus. Que nos ajude a deixar de ser pedra de tropeço para nos tornarmos Ebenezer, pedra de socorro. Que nos ajude a reconhecer entre tantas a que se oferecem a verdadeira pedra angular, aquela mesma que no começo desta meditação concordamos em rejeitar. 

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