Moisés 8.0

Charlton  Heston como Moisés em os X Mandamentos - 1956
Mesmo que uma pessoa que não tenha conhecimento profundo da Bíblia, já ouviu história de Moisés, do seu nascimento, de como foi colocado num cesto para descer o rio, do seu encontro com a filha de Faraó e da sua educação no palácio real. Moisés é o protagonista da história mais fantástica jamais contada. Porém, poucos chegam a tomar conhecimento da fase mais determinante da sua vida, o momento que se definiu a sua trajetória para que ele viesse a se tornar o maior
herói da fé hebraica. Poucos são os que sabem quais foram os
acontecimentos que o levaram à imortalidade, a condecoração máxima que a História pode confere a um ser humano.

Contrariando tudo o que se pode esperar como pré-requisito para a escolha de um herói, este momento aconteceu para Moisés quando muito pouco deveria se exigir ou se esperar dele, pois este já tinha nada mais nada menos que oitenta anos de idade. A narrativa do Êxodo é suficientemente detalhista para nos mostrar os seus enormes desafios e para ditar as condições sob as quais deveriam ser aceitos, mas sem omitir qualquer deficiência de uma pessoa no curso daquilo que chamamos hoje de terceira idade.

A pergunta que se estabelece de imediato é esta: Por que Deus chamou logo Moisés?

Em primeiro lugar, Deus o chamou porque mesmo aos oitenta anos ele ainda era capaz de sonhar. Eu não conheço o Egito, mas faço uma idéia da grandeza e da imponência dos seus monumentos propriamente chamados de faraônicos. O que não sou capaz de imaginar é como eles eram na época de Moisés. Se as suas ruínas são tão magníficas, o que não seriam quando recém construídos? Diante desse detalhe, como podemos conceber que Moisés, ao sair do palácio, não ficasse estarrecido com as pirâmides ou com a esfinge, mas sim com o sofrimento do seu povo? Como imaginar que Moisés diante do poder quase infinito de Faraó pudesse sonhar com a liberdade, quando a sua realidade era pesadelo e escravidão?

Existem duas palavras no nosso vocabulário que dificilmente andam juntas: sonhos e planos. Isto não acontece pelo fato de não sermos capazes de sonhar uma realidade melhor, mas sim, porque estabelecemos planos que, diante nos nossos sonhos, esbarram no pessimismo da realidade. Contudo, uma das exigências que a conduta cristã nos impõe é que sejamos exceções a esta regra. Pelo contrário, para o cristão a realidade é a sonhada e não a visível. Muito depois de Moisés, um judeu chamado Paulo vai declarar que a vitória do sonho sobre a realidade não é uma utopia, mas uma necessidade. Dizia ele: “Porque nós não prestamos atenção nas coisas que se vêem, mas nas que não se vêem. Pois o que pode ser visto dura apenas um pouco, mas o que não pode ser visto dura para sempre.” Assim como fez com Moisés, Deus nos impulsiona para planejarmos a realidade não palpável, a realidade dos nossos sonhos mais impossíveis.

Todo o investimento de Deus em nós é para que sejamos seus colaboradores na construção de algo em que os sonhos e os planos andem sempre juntos. Mais precisamente na direção do único sonho e do maior dos seus planos: o seu Reino. A escolha de Moisés também serve como prova definitiva para aqueles que acham que a vida humana tende a se definhar com o passar do tempo. A vida é que nos foi dada, deve ao seu final triunfar coroada por uma morte gloriosa de uma trajetória farta em dias e realizações.

Mas Deus escolheu Moisés por outro motivo bem relevante. Moisés foi escolhido porque tinha uma enorme capacidade de superar as suas deficiências. Eu sou capaz e apostar que nem mesmo Moisés tinha esse conhecimento de si mesmo. A Bíblia nos conta que Moisés desfiou um rosário de desculpas para não aceitar o desafio de libertar o povo. Desculpas e impedimentos bem pertinentes para uma pessoa na sua idade. O que seria mais comum de se esperar, segundo a nossa concepção de fé, é que Deus fizesse em Moisés uma “recauchutagem geral” e que ele rejuvenescesse uns quarenta anos, e aí sim, novo em folha assumisse este indescritível encargo. Nada disso. Deus enviou Moisés a Faraó com toda a sua gagueira, dores nas costas, pernas inchadas e coração fraco. Não dá para conceber como é que certas falhas impregnaram o caráter cristão. Temos por costume achar que o que serve para ser usado por Deus é sempre o mais forte, o mais inteligente, o mais bonito e o mais bem adaptado. Existe até mesmo um ditado corriqueiro em nosso meio que diz: “Deus não escolhe os capacitados, capacita os escolhidos”. Este jogo de palavras que tomou força de um versículo bíblico, não reflete nem de longe a realidade. Moisés e de outros heróis da fé a renegam com veemência. Paulo nos assegura que o poder de Deus não se aperfeiçoa na capacitação e sim na fraqueza. “Quando estou fraco é que estou forte”, disse ele.

O que Faraó viu na sua frente não foi um oponente firmemente convicto ou guerreiro fortemente cingido de armaduras, e sim um coroa de oitenta anos que se respondeu sim a um desafio que nem mesmo ele julgava ser possível. A escolha de Deus prioriza antes de tudo a entrega que o homem faz de si mesmo, e jamais leva em conta o seu potencial ou circunstâncias que o cercam. Dizem os rabinos: “Se as circunstâncias estão contra Deus, pior para elas”. Foi exatamente isso que Faraó, de forma bastante amarga, aprendeu com Moisés e suas deficiências.

Mas ainda existe um terceiro motivo para a escolha de Moisés. Deus escolheu Moisés para fazer o impossível porque sabia que ele o faria. A coisa mais terrível para o evangelho é a clã dos bem intencionados. Wesley chegou a dizer que a estrada do Inferno está pavimentada de boas intenções. Paulo fala daqueles que tem muita vontade de se tornarem cristãos, os quase cristãos. Jesus também foi categórico em denunciar este mal na parábola que contou sobre o filho rebelde que voltou atrás e seu irmão bem intencionado, que ficou na intenção. Diante disso Jesus nos pergunta: Qual deles fez a vontade do pai? É justamente aí que Moisés se insere. Mesmo se julgando incapaz e mesmo supondo ser impossível, se apresenta para fazer a vontade de Deus, e uma voz que saía de uma sarça pegando fogo foi a sua única garantia.

Até mesmo o conhecer nome deste Deus lhe foi negado. Eu Sou o que Sou. Parece que Deus está lhe dizendo: “Não te interessa quem eu sou. Eu sou quem eu sou”. Foi assim que Moisés percebeu que estava diante de um Deus que é. Um Deus que é, enquanto os deuses do Egito não são, os deuses da Babilônia não são e os deuses da Assíria também não são. Um Deus que não precisa que fazer propaganda de si mesmo porque é o único que é, enquanto todos os demais não são. Essa identificação de Deus foi determinante para que Moisés se empenhasse na sua obra.

Entender Deus como mais um entre tantos deuses, mesmo que aceitemos que ele seja o Deus Supremo, cria a possibilidade de jeitinhos e subterfúgios. Moisés não teve escolha quando perguntado em nome de que Deus estava agindo. Faraó, por sua vez, ficou sem argumentos de defesa, não se tratava ali de uma questão entre ele e Moisés, e sim entre o Eu Sou e seus deuses. Isto fez toda a diferença. Faraó entendeu que de nada adiantaria agir diretamente contra Moisés, mandar prende-lo ou até matá-lo. Moisés estava determinado a fazer o que deveria ser feito, não por convicções pessoais, mas porque diante da vontade de um Deus que é, nada cabe, senão obediência.

Um fato que difere a Bíblia dos escritos épicos é a mudança de foco do humano para o divino. Podemos até mesmo ter simpatia por este ou aquele herói bíblico, mas dois fatores são inegáveis: precisamos fechar os olhos para as suas falhas de conduta e reconhecer que existe um Deus por trás de seus feitos. A realidade de Moisés e de todos os heróis e heroínas que conhecemos e admiramos é uma só: nunca existiram nem existirão grandes homens ou grandes mulheres na história da salvação. Ela será escrita por pessoas pequenas e comuns, contudo, grandemente usadas por Deus. Pois será justamente quando estes e estas se sentirem fracos, ignorantes, incapazes e indignos estarão e aptos a fazerem a vontade de Deus.

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