Aqui não, aqui tem Deus!

Michael Clarke Duncan em A Espera de um Milagre (1999)
Calendário Litúrgico indica que a leitura de hoje do AT seja II Rs 5,1-15, que narra a cura do general sírio Naamã. É um texto bem interessante de se ler como reflexão pessoal, mas que também tem proporcionado aos pregadores bastante material para as suas meditações. Gostaria de em rápidas palavras analisar de forma sintética a atuação dos personagens ativos que estão diretamente envolvidos nesta história.

O primeiro personagem em questão é uma menina que fora levada cativa para servir como escrava na casa do general. E é justamente ela que eu vou deixar para comentar no final.
Pulemos para o segundo personagem que é o rei da Síria, o vencedor da batalha e dominador de Israel. Sua atuação não tem nada de extraordinário. Ele fez o que qualquer rei opressor faria, exigiria o impossível dos povos conquistados. É impressionante como a religião de Israel impunha respeito naquela região. Todas os povos tinham adivinhos, cartomantes e prognosticadores. Todos os povos tinham feiticeiros, curandeiros e magos. Todos os povos tinham agoureiros, amaldiçoadores e imprecadores, menos Israel. Em Israel Deus não permitia que houvesse senão profetas. E mesmo sendo uma religião tão desprovida de mistérios e magias, era temida e respeitada. E é baseado nessa premissa que o rei sírio ordena que Naamã seja curado por meio de um decreto. Ele sabia bem que se havia alguma possibilidade de Naamã ser curado, era mesmo em Israel.

Depois temos o rei de Israel, vassalo da Síria, que também faz exatamente o que podia se esperar dele. Dá um chilique ao receber tal ordem. Temos que admitir que realmente o que rei sírio pede é absurdo, mas admitir também, que é bastante apropriado ao perdedor reclamar de qualquer exigência condicionada a sua derrota. Quando alguém perde alguma coisa sempre acha que aquilo é tudo de ruim que poderia ter acontecido, e que nada mais há para piorar a sua situação. É justamente na hora que sobrevém as consequências da perda, que se rasga a roupa, que se blasfema, enfim, que se coloca para fora toda a indignação pela circunstância. É justamente nessa hora que se joga toda a responsabilidade do infortúnio em cima da fé, da igreja e da religião, como bem soube fazer esse rei.
Em seguida falemos um pouco do leproso ansioso pela cura. Sua esperança se mostra tamanha que antecipadamente estipulou o pagamento que faria quando esta se realizasse. Naamã chega à humilde tenda do profeta com toda a pompa que a situação exigia: com a soberba de alguém que tem poder sobre alguém que tem um poder que ele não possui, mas que encarecidamente necessita. A ordem do profeta para que se lave sete vezes no rio Jordão joga na lama todo seu orgulho, toda a sua pretensão de a sua cura seria um espetáculo pirotécnico. Eu pensei que ele viria a mim, invocaria seu Deus para que estivesse presente, fizesse cair fogo do céu sobre mim, e aí sim, eu ficaria curado.

Esta é a imagem mais bem fotografada daquele que se achega a um credo necessitando de algo que por meios naturais não pode conseguir. Esta é a única razão dos mercadores da fé se procriarem com a abundância que se vê hoje em dia. Por mais absurda que seja a idéia, ela vai encontrar um seguidor fiel. Em uma reunião eu comentava sobre alguns textos bíblicos que não haviam sido explorados pelos coreógrafos da fé. Eu mesmo que eu houvesse tinha dito que não diria quais eram, porque não ia dar carne a gato, ainda teve um sujeito que, em separado, me pediu que lhe dissesse.
Outra coisa que a expectativa da cura faz é não atentar para os detalhes que julga ser ínfimos em demasia. Entrar e sair sete vezes do rio Jordão não era nada extraordinário, a população local faz isso todos os dias e nada acontece. Além do mais, os rios da Síria são realmente rios, não como esse córrego que corta Israel. Por conta disso, esta pessoa também acredita que Deus precisa usar o que há de melhor a seu alcance para obter bons resultados. É isso que sempre motivou oferendas e sacrifícios, a ideia de que a divindade se deixa corromper pela qualidade da oferta. Não o Deus de Israel: misericórdia quero, e não sacrifício.

O outro personagem que fez justamente o que deveria ter feito foi o profeta Eliseu. Ele sequer saiu de sua tenda da receber a comitiva do rei da Síria. É assim que o profeta de Deus deve agir: de forma alguma exaltar o poder político acima do lugar que lhe é devido. Ao ver o general vitorioso chegar com pose de chefe de estado nem vai e ele pessoalmente dizer, ordena que alguém o faça: manda esse cara tomar banho. Não estou bem certo que ele tenha dito exatamente isso, porque os profetas eram bem desaforados, não se investiam de escrúpulo conveniente e nem se mostravam com a falsa moral que temos hoje. Amós chamava as mulheres de vacas, Ezequiel dizia que elas se deitavam com jumentos. Por isso acho que foi uma expressão muito branda para causar tanta indignação a Naamã.

Eliseu lhe joga na cara toda a sua realidade inconsequente: vá tomar banho, vá lavar essa lama de orgulho que cobre o seu corpo, vá se livrar dessa poeira de soberba, vá tirar esse lodo dos olhos. Você não está diante de um deusinho qualquer da sua terra, que se deixa seduzir por tão pouco. Você está diante do Deus verdadeiro, aqui em Israel tem Deus.
O mais sensato de toda a história e o servo de Naamã. Homem ponderado, de medidas cautelosas, alguém que realmente sabe onde está. Sua palavra é conciliatória, é um oásis de sensatez em um deserto de absurdos. E se Eliseu tivesse pedido algo impossível, como o senhor faria? Isso é uma coisa tão simples, por que não fazer?  Ele talvez já tivesse presenciado inúmeros outros rituais ridículos e tentativas frustradas de cura. Quando se viu diante da simplicidade da ação de um Deus de verdade, que não precisa nada além de sua Palavra, não teve como não se render às evidências.

Finalmente chegamos à menina, aquela que foi levada cativa, provavelmente acorrentada para um país longínquo e de língua estranha. Arrastada à força para longe da sua família, dos seus amiguinhos, dos seus brinquedos e distante das coisas que aprendera a gostar. Logo ela, tão frágil, e tão machucada, foi a única que fez diferença em toda narrativa. Apesar da sua dor, mesmo sem entender o porquê não odiou seu carrasco, pelo contrário, amou aquele que tanto lhe fez mal. Ela foi como o sândalo que perfuma o machado que o fere. Ela antecipa o mandamento primordial da fé cristã: amar o inimigo. Ela é mais bem aventurada, porque não viu e creu. No seu pequeno e ferido coração ela ainda guardava uma fé imensa no Deus dos seus pais. É ela quem dá sentido a toda história, quem faz a perfeita exegese da situação. Muito antes de Paulo é ela quem nos assegura do meio de sua angústia que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam a Deus.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

0 comentários:

Postar um comentário