O Zelo de Deus (final)

A Morte de Sócrates de Jaques-Louis David (1748-1825)
Outro problema que ocorre quando não o zelo que Deus tem pelo seu nome não é considerado, é tentar fazer do seu culto uma transposição melhorada de um culto pagão. É bem certo que nos primórdios da fé isso acontecia de fato. Contudo, as novas experiências, o contato mais íntimo com Deus e a renovação das suas consciências fizeram com que cada vez mais se apercebessem da exclusividade de Deus, o que
propiciou que as danças extasiantes em volta das fogueiras fossem dando lugar à solenidade do culto no templo. Isso trouxe um a enorme diferença nos usos e costumes do povo. A sensualidade dos véus transparentes foi substituída pelo recato, a sobriedade, se não extinguiu, reduziu ao mínimo o uso de álcool e a ministração de alucinógenos, as perdas inconsequentes de bens materiais e o sacrifício de inocentes foram abolidos. Que ninguém pense que através dessas palavras venho engrossar o coro daqueles que defendem o uso das burcas evangélicas. Sei muito bem apreciar o belo, mas sei também que precisa existir alguma diferença.


Sinto-me um privilegiado em não conhecer pessoalmente qualquer astro gospel; mais ainda por conseguir identificá-los na multidão; e infinitamente mais por poder fazer parte de uma comunidade de fé onde esses nomes sequer são mencionados. Mas isso não é regra, é exceção. Tento me colocar na pele de um bem intencionado servo de Deus que após uma semana de trabalho árduo, dispõe-se a acordar toda a família, para, contra a vontade de alguns, levá-los à igreja. Fico tentando imaginar como essa pessoa ainda consegue conciliar a postura rígida que a custa de beliscões e puxões de orelha aprendera no passado, com a diversidade, vou chamar assim, das manifestações cúlticas atuais. Também não quero fazer apologia à violência, se pancada endireitasse alguém eu seria o Papa ou, no mínimo, um bispo primaz. Mas o cidadão em questão é a testemunha viva de que aquilo deu certo. Os seus pais, ainda que através de métodos toscos, conseguiram superar o maior de todos os desafios evangelísticos: fizeram com que o filho abraçasse a mesma fé que eles professavam.

Não faço ideia de como funciona nas igrejas que tem dono, mas sei muito bem quais são os imediatos e nefastos efeitos nas comunitárias igrejas tradicionais. Porém, jamais saberei como os antigos que não ministravam, não coreografavam e nem determinavam, conseguiram erigir os maravilhosos templos que os superungidos de hoje mal conseguem pintar.

Quando ofereceres sacrifícios ao Senhor, fazei-o de modo a que sejais aceitos (Lv 22,29). Com esta prescrição do Antigo Testamento eu encerro esta breve meditação. Penso eu que ela responde a uma série de questionamentos levantados hoje em dia. Diz, por exemplo, porque eu não posso ser espontâneo no culto”, porque não posso adorá-lo da maneira que eu achar melhor, diz que eu não posso ceder às manifestações do meu subconsciente, nem mesmo àquelas que julgo que sejam guiadas pelo Espírito Santo. Neste caso, até o Espírito Santo é submisso. Disse Jesus: O Espírito Santo só faz o que me viu fazer.

São exatamente essas coisas que nos colocam diante da revelação, e nos afastam da adoração natural e espontânea própria dos cultos pagãos. Tais cultos não identificam qualquer ação de Deus na História. Para esses adoradores só existe o destino, o acaso e o carma. Todo aquele que atreve a colocar-se contra as leis naturais é consequentemente punido por elas. Eles são individualistas, os seus rituais destinam-se a beneficiar o individuo ou no máximo o seu grupo. São realizados exclusivamente para a sua segurança. O culto cristão antevê que o mundo ideal passa longe dos condomínios fechados e não anda de carros blindados. Não é o lugar onde a paz da mordaça e as consciências supersticiosas encontram espaço. O culto pagão se satisfaz com a promessa de dias melhores, o culto ao Deus verdadeiro fundamenta-se na esperança de que inevitavelmente estaremos com ele no seu Reino.

São tantas as diferenças que fica difícil conceber que esses dois tipos de culto venham a se sobrepor. Fica mais difícil ainda entender o porquê disso ter virado regra. Foi para uma situação bastante parecida com essa que Jesus fabricou um chicote especial, e com ele expulsou aqueles que não se davam conta de que a terra onde estavam pisando era sagrada. A despeito dessa atitude irada, ele nos ensinou que o zelo de Deus não é somente para ser louvado e admirado, é para ser encarnado. E Jesus disse isso da forma mais didática e dramática que lhe foi possível: o zelo pela tua casa me consumirá.

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