Humilhante graça

O Massacre dos Inocentes de Rubens (1577-1640)
I Co 1,22,29
Pelo contrário, Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisa fracas do mundo para envergonhar as fortes;e Deus escolheu as coisas humildes, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são.

Nada melhor do que estes versículos para explicar o verdadeiro estado emocional de Paulo após o seu “insucesso” em Atenas. Naquele que
para mim foi o seu mais excelente sermão, ele viu a derrocada total de qualquer expressão do sabedoria diante da mensagem da cruz. Paulo experimentou toda a humilhação a que se expõe todo aquele que confronta a graça de Deus imbuído de algum tipo de soberba. A graça é humilhante porque o que Deus nos concede é por graça e não por merecimento. Em outra ocasião Paulo vai dizer: É tudo pela graça. Pela graça sois salvo por meio da fé, e isso não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras para que ninguém se glorie.

Nunca antes desses versículos dirigidos aos coríntios, Paulo havia discriminado tantos detalhes acerca do poder da graça em inverter situações de vitória em derrota ou vice versa. É aqui que Paulo vai nos dizer o quanto essa graça pode nos surpreender. Ele começa dizendo: a graça escolhe os fracos para confundir os fortes. 

Quando Israel, contra a vontade de Deus, quis escolher um rei, o critério usado foi o quanto maior, melhor. Eles queriam o mais alto, o mais forte e o mais bonito. Apareceu-lhes Saul. A Bíblia nos diz que poucos lhe passavam da cintura. Foi escolhido, foi um desastre. Mas Deus escolheu outro. Deus através do profeta vai à casa de Jessé e diz: quero escolher um filho teu para rei de Israel. E Jessé, seguindo o protocolo vigente, manda que se apresentem os filhos mais velhos e mais fortes. O profeta não se vendo inclinado a escolher nenhum deles, pergunta: não há nenhum outro? Jessé diz que há mais um, mas que não passa de um menino e que é bem franzino. Era justamente aquele o escolhido. E Davi vai lutar contra Golias, o gigante filisteu, e vai riscá-lo da lista de preocupações que assolavam o seu país. Deus escolhe as coisas fracas envergonhar as fortes. Escolheu no passado, e continua escolhendo no presente.

Nos anos de chumbo, quando a igreja se calou diante da ditadura militar, um grupo de cantores e artistas decidiu fazer-lhe oposição. De uma forma acintosa organizaram um festival de música no Rio Centro, às vésperas do dia do trabalhador. Agentes do então governo, um sargento e um capitão do Exército, estavam destinados a colocar bombas em locais estratégicos, para que matassem o maior número de manifestantes possível. No plano constava que a oposição seria culpada pelo trágico atentado. Pois bem, as bombas explodiram no colo dos especialistas, matando o sargento e ferindo gravemente o capitão. Não posso garantir que forças agiram naquela hora, mas só um milagre poderia salvar aquelas multidão do iminente atentado, um milagre que deixou a igreja estarrecida e humilhada.

Mas Deus escolhe também as coisas loucas para confundir as sábias. E tu, Belém-Efrata, posto que és a menor das cidades, pequena demais para figurar entre os grupos das milhares cidades de Judá, de ti saíra o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade. Deus escolheu a obscura e ínfima vila de Belém, para que ali nascesse o seu Filho. Deus não escolheu Roma, Deus não escolheu Babilônia, Deus não escolheu nem Jerusalém. Escolheu uma pequena vila, e nessa peque vila, uma pequena estrebaria, para que ali nascesse o Salvador.

Deus escolhe as coisas loucas para confundir as sábias. Quando nasceu meu filho, eu estava atravessando uma crise financeira das mais complicadas. Numa noite que cheguei em casa, com a cabeça unicamente voltada para os meus problemas, peguei no colo aquela criança de dias, que estava com uma gripe muito forte, quase não conseguíamos ouvir o seu choro. Quando o pequenino olhou para mim deu-me um sorriso. Eu nunca senti tanta vergonha em toda a minha vida. Quando vi a criança enfrentar a sua dificuldade com um sorriso, toda a minha capacidade de ação e todo o meu raciocínio despencaram, e por muito pouco eu não caí de joelhos. Ali eu vi que Deus realmente escolhe as coisas loucas para confundir as sábias. O sabidão que eu julgava ser foi severamente humilhado pelo simples sorriso de uma criança.

Mas Deus escolher as coisas humildes, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são. Quando Israel chegou à Terra Prometida, não a encontrou vazia. Havia nela um povo que lhe era superior em número, organização e tecnologia. Os hebreus depararam-se de imediato com a antiga e bem fortificada cidade de Jericó. Como imaginar que a conquistariam, embora Deus houvesse garantido que seria uma conquista sem precedentes na História. Para a inominável conquista Deus quis contar com uma pessoa muito especial desta cidade, e logicamente que em Jericó havia pessoas muito especiais pela sua justiça, pela sua bondade, e cujo caráter as qualificava para tal escolha. Contudo, a escolhida, aquela que não morreu, a que teve o seu nome escrito na genealogia do Cristo foi Raabe, uma prostituta.

Deus escolhe as coisas vis para confundir as nobres. A palavra confundir no grego tem o significado de fazer corar, ficar vermelho de vergonha, envergonhar-se. Não é uma simples mudança de ponto de vista, é a humilhação total. Durante anos passei buscando em um paralelo para esta situação nos dias atuais, até o dia que eu vi um julgamento ao vivo pela TV. Eu já devo ter contado esse fato neste blog, mas ele foi tão marcante que não tenho vergonha de repeti-lo. Um homem que estava sendo acusado de crime, sequestro, tráfico de drogas e uma série enorme de delitos, encarou o juiz e o júri chamando para si toda culpa. Disse ele: fui eu mesmo. Isso me fez recordar as muitas vezes que me escondi por trás de em colarinho clerical para fugir da minha culpa. Das muitas vezes que permiti que alguém ou alguma situação amenizasse o meu pecado. Foi aí que mais uma vez eu tive a certeza de que Deus escolhe as coisas vis para envergonhar, fazer corar, ficar vermelho de vergonha todas as coisas nobres.

Mas Deus escolheu você, Deus escolheu a mim. Não pelo que somos ou pelo que fizemos, mas pela sua graça. Quando tomo ciência da profundidade em que me jogou o meu pecado eu me lembro do que disse um velho pastor batista: A graça de Deus busca a desgraça do homem como as águas do oceano buscam as profundezas. Quanto mais profundeza, mais água. Quanto mais desgraça, mais graça.

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