Deus da Bênção (final)

Florence Nightingale (1820-1910)  em
ilustração do London News de 24/02/1855. 
Mas a palavra bênção também pode significar benzer. Embora esta palavra para os evangélicos pareça mínimo estranha, é bom que se saiba que benzer não é somente fazer o sinal da cruz sobre uma perna doente, aliás, este gesto é o menor dos significados, pois benzer é primeiramente falar bem, falar coisas boas de alguém, é bendizer. O adjetivo usado por Jesus quando queria enaltecer uma pessoa ou um grupo de pessoas não era outro senão esse: bendito ou bem aventurado. Traduzia-se pela alegria incontida do mais fraco quando se via inundado pela generosidade do mais forte e ficava sem palavras para agradecer. Os
levitas no tempo de Neemias, ficaram tão extasiados com a possibilidade de reerguer o Templo, que expressaram em uma oração toda a sua perplexidade: Bendito sejas tu Senhor nosso Deus, de eternidade em eternidade. Que se bendiga o teu santo nome que excede a toda bendição e a todos os louvores. O reconhecimento deles é tamanho que não encontram palavras. Nem mesmo as mais separadas ou as mais sagradas serviam para transmitir o excedente da bênção que eles experimentavam naquela hora.

Este é o único tipo de bendição apropriada ao nosso Deus. Não existe nada de aproveitável nos louvores subjetivos, não estamos aqui para louvar por louvar. No capítulo 29 do seu livro, Jó nos dá uma ideia do quanto é bom sentir esta bênção que lhe chegou sob a forma de bendição. Ele faz uma retrospectiva do seu passado de prosperidade e se lembra das pessoas que se levantavam para que ele sentasse, de quando se calavam quando ele passava, de como beijavam respeitosamente a sua mão. Apesar de tudo ser muito bom, nada se emparelhava à alegria da bênção dos menos afortunados. Jó encontrou uma maneira de demonstrar o quanto o rico fica feliz ao ser abençoado pelo pobre, e ele faz isso através de uma pequena mas definitiva frase: A bênção do moribundo pousava sobre mim quando eu fazia rejubilar o coração da viúva. Jó 29,13.

Mas existe ainda um terceiro e o mais forte de todos os significados da palavra bênção. Quando a palavra bênção aponta para o próprio bendito, para o bem aventurado, o abençoado ou para aquele que é o portador da bênção. Enfim, aquele que é a própria bênção. Muitos evangélicos não dão à Virgem Maria o inegável valor que lhe é devido. Em uma rápida alusão do anjo, que sempre nos passa despercebida, Maria é colocada como a detentora da expressão maior de tudo o que já se conheceu sobre bênção. Ela ouviu da boca do anjo a saudação que fazia dela este ser único e inigualável: Salve Maria, cheia de graça. Bendita és tu entre as mulheres. Uma saudação celestial que imediatamente encontrou eco entre os humanos. Sua prima Isabel também a reconheceu como tal, e foi mais além: Você é a mais abençoada dentre todas as mulheres, e a criança que você vai ter é abençoada também.

Uma bênção linda, inusitada, incontestável, mas que ninguém a quer para si. Esta bênção fez Maria ver seu Filho nascer em condições sub humanas. Fugir às pressas para o Egito. Ver que o bendito fruto do seu ventre não era mais do que o exilado político mais novo que a história conheceu. Fez com quem não entendesse a sua participação na criação de uma criança tão diferente das demais. Viu essa criança se tornar um líder controverso. Para uns era louco, para outros um beberrão. Sofreu a dor maior ao vê-lo humilhado, açoitado e pregado numa infamante cruz para morrer. Esta menina adolescente, recém saída da infância, enxerga o quão doloroso é o caminho ao qual essa bênção conduz, e ainda assim não foge ao seu chamado: Aqui está a serva do Senhor; que se cumpra em mim conforme a tua palavra.

Maria é a advertência de Deus contra a vontade de se querer bênçãos, mas também o seu ultimato contra a pretensão de se possuir ou tomar posse de bênçãos. Mais uma vez é ratificada em Maria a promessa feita a Abraão. Deus a chamou para ser, a despeito de toda a angústia que isso significava, uma bênção para todos os povos. Existe uma clara diferença entre o santo e o abençoado. O santo é aquele que anuncia a grandeza e o poder de Deus, o abençoado é o que espalha o seu amor e a sua generosidade. O santo, em nome de Deus, invoca a benção, o abençoado é aquele que é em si mesmo a resposta a esta bênção.

Quando falamos dos personagens bíblicos, parece que falamos de pessoas de outra dimensão ou de um mundo que não é o nosso. Mas nos nossos dias Deus convoca pessoas para serem bênçãos. Quem já viu um anel de enfermagem reparou na letra N gravada. Muitos pensam ser de nurse, enfermeira em inglês. Mas é nada disso. É a inicial do sobrenome de Florence Nightingale. Florence era uma moça da nobreza que orava angustiada pelos soldados que ao voltarem feridos da guerra da Criméia e morriam de infecção nos hospitais. Sua angustia durou até o dia em que se colocou à disposição de Deus para ser ela mesma resposta às orações que dirigia a Deus. Ainda que sem o conhecimento da infecção microbiológica, ela passou a cuidar daqueles soldados com extremo zelo e cuidado com a limpeza, tanto dos feridos, como dos instrumentos, como também do ambiente. Passou a proporcionar-lhes uma melhor alimentação e locais mais arejados e com ela a enfermagem moderna teve início.

Eu não sei qual é a nacionalidade de Florence Nightingale, nem qual é a sua denominação ou mesmo qual igreja que ela frequentava. Mais uma coisa eu sei. A humanidade tem uma dívida eterna de gratidão a ela, porque se o mundo de hoje tem uma enfermagem eficiente, deve á decisão daquela moça em se colocar nas mãos de Deus, para ser ela mesmo uma bênção. Florence não foi apenas uma bênção aqueles soldados, nem uma bênção restrita à sua comunidade, nem uma bênção que durou um determinado tempo. Assim como em Abraão e com Maria, Deus fez de Florence Nightingale uma bênção. Uma bênção para todas as famílias da Terra.

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Deus da Bênção

Jesus Cura o Servo do Centurião de Paolo Veronese (1528-1588)
Nós cremos em um Deus que podemos dizer que tem prazer em abençoar. Se vivêssemos nos passado e adotássemos o costume de agregar adjetivos ao nome de Deus, teríamos que chamá-lo de o Deus da Bênção. Aquele, que faz nascer o sol sobre bons e maus, e faz cair a chuva sobre justos e injustos. Embora existam alguns grupos religiosos que pensam que podem monopolizar a bênção de Deus, fazendo dela uma conquista pessoal, algo que pode ser obtido através de fórmulas mágicas, de expressões recitadas entre dentes e de rituais e sacrifícios estranhos, ainda restam alguns cristãos que não
compactuam com eles. Aqueles que não aceitam no seu linguajar de evangélico expressões do tipo, correr atrás da ou tomar posse da bênção. Aqueles que não entendem a bênção como prêmio que se pode conseguir pelos próprios esforços. Aqueles que creem, pela Bíblia, que a bênção não está na área de ter e sim na área do ser. Pelo menos foi assim quando Deus instituiu a bênção. Ele não chamou Abraão para ter uma bênção, não chamou para possuir uma bênção, não chamou para tomar posse de uma bênção, e sim para ser uma bênção. Eu te abençoarei de tal modo que tu serás uma benção para todos os povos da Terra.

Contudo, a palavra bênção na Bíblia possui uma variedade considerável de significados: alguns extremamente nobres, outros mais imediatos e menos ricos de sentido. O problema se estabelece quando os cristãos teimam em reter para si apenas os significados mais superficiais, considerando os mais profundos mistérios da graça e da ação de Deus. Eu gostaria de aproveitar a oportunidade e comentar, em rápidas palavras, alguns destes significados mais nobres e mais elevados da bênção.

O primeiro sentido da palavra bênção é presente no sentido material, destes que se ganha quando se faz aniversário, um presente pode e deve ser uma bênção. O presente que Jacó deu a Esaú foi chamado de bênção e não de lembrancinha, pelo que significou como arrependimento e perdão. Um presente se torna uma bênção, porque independentemente do seu valor intrínseco faz com que as pessoas tenham a certeza de que não nos esquecemos delas. O presente é uma bênção quando promove a paz, a reconciliação e a profunda alegria, tanto daquele que dá quanto do que recebe.

Jesus durante o seu ministério terreno recebeu alguns desses valiosos presentes. Não falo apenas dos presentes dos magos que o visitaram em Belém, mas presente de pessoas cujas atitudes se constituíram em verdadeiras bênçãos para ele. Certa ocasião ele estava observando as pessoas que, ao entrarem no Templo de Jerusalém, depositavam as suas ofertas. Foi quando viu uma viúva pobre colocar ali suas duas únicas moedinhas. A narrativa nos faz pensar que Jesus dá um grito de tão surpreso: Aquela mulher deu a maior oferta. E aproveitou a ocasião para estabelecer a distinção entre oferta e bênção: Outros, na sua abundância, deram aquilo que lhes sobrava, ela, porém, na sua penúria, deu tudo que o tinha para seu sustento. Ela foi uma bênção. Os discípulos não entenderam absolutamente nada da contabilidade de Jesus. Em que mundo duas moedinhas vale muito mais que polpudas ofertas? O que ele faz questão de destacar é que, quando a oferta, a dádiva ou o presente levam junto o coração, transforma-se na mais verdadeira e completa bênção.

Temos também para a nossa reflexão a narrativa da prostituta louca, que invade atabalhoadamente a casa onde Jesus se encontrava. Aquela mulher, saída sabe-se lá de onde, ajoelha-se aos pés de Jesus, lava-lhe os pés com suas lágrimas e os enxuga com seus cabelos.  Não bastasse, derrama sobre sua cabeça um caríssimo vidro de perfume. Essa simples, porém marcante atitude constrange a todos que ali estavam de varias formas: pelo fato de ser uma mulher, por ser uma prostituta e por desperdiçar sem critério um valiosíssimo perfume. Jesus consegue enxergar naqueles apelos à racionalidade a maldade oculta em cada coração. Por que aborreceis esta mulher? Entrei aqui e ninguém me lavou nem me secou os pés. Não me ungiram nem com óleo barato, quanto mais com perfume. Ela não, me deu um presente, me proporcionou uma bênção. Em verdade vos digo. Onde quer que se pregue o Evangelho, e será em todo lugar, também o que ela fez será contado em sua memória. Jesus ficou tão extasiado que fez do gesto dessa mulher tema obrigatório de sermão para todos aqueles que pregassem o seu evangelho. Jesus estabelece aí a diferença entre gostar e amar. Vocês gostam de estar comigo, mas ela fez de uns poucos momentos na minha presença a própria razão da sua vida. Vocês me dão lembrancinhas, ela me deu uma bênção.

Mas talvez não houvesse presente maior do que aquele dado pelo centurião romano que intercedera junto a Jesus pelo seu criado. Jesus sensibilizado pelo seu pedido dispôs-se a acompanhá-lo, mas o centurião achando-se indigno de tão grande privilégio, o interrompeu dizendo: Eu estou acostumado a dar ordens. Quando eu digo a um soldado vai, ele vai. Quando digo a outro vem, ele vem. Por isso eu creio que basta uma palavra sua e ele ficará curado.  Aquele era um homem que conhecia muito bem o poder da autoridade, o poder de um império que detinha em suas mãos a vida e a morte. Mais do que qualquer outro antes dele, o centurião reconhece que está diante de um poder muito maior do que toda a estrutura do império a quem serve. Reconhece a autoridade daquele que tem o poder de curar, de restaurar e de dar a vida apenas por uma única palavra. Basta uma palavra sua, e ele ficará curado. Diante desse presente Jesus lava a alma. Parece que ele diz: Até que enfim encontrei alguém que realmente crê em mim. Nem mesmo em Israel eu vi fé como esta. Jesus estabelece aí a diferença entre acreditar e ter fé. Vocês para a creditarem em mim querem ver sinais, é preciso que eu multiplique pães, que ande sobre as águas, que me transfigure. Para este homem basta apenas uma palavra para que toda a bênção do mundo se materialize diante dele. (continua)

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Romerito, o bispo dos pobres

Se me matarem, 
ressuscitarei na luta do meu povo.
Peço licença para abrir um espaço nas postagens deste blog, que é totalmente dedicado à propagação do evangelho, para dedicar umas poucas palavras em homenagem a um dos poucos heróis da fé que tenho fora da Bíblia. Quero falar de Dom Óscar Arnulfo Romero Galdámez, Monsenhor Romero ou Romerito, como gostava de ser chamado. Dom Romero era o arcebispo da Igreja Católica em El Salvador quando foi assassinado em 24 de março de 1980. Pacifista ferrenho foi comparado à Gandhi e a Martin Luther King, tornando-se desta forma o maior mártir latinoamericano da fé cristã. Pode parecer que esta homenagem chega um pouco atrasada, em virtude do aniversário da sua morte ter se dado no último
sábado, mas a referência que faço leva em conta que o seu covarde assassinato aconteceu na semana anterior à Semana Santa. Dias que julgo oportuno para esta lembrança que enche o coração da igreja de Cristo de orgulho.

Quando eu menino em uma Igreja Metodista, no Rio, a congregação cantava um hino que dizia assim:
Que a beleza de Cristo se veja em mim.
Toda a sua admirável pureza e amor.
Ó tu, Chama Divina,
Todo o meu ser refina.
Té que a beleza de Cristo se veja em mim.

Embora seja uma música de tradição protestante, ainda não conheci até hoje alguém que a pudesse cantar com mais propriedade do que Dom Romero. Justamente pelo fato de ter morrido nas vésperas da Páscoa é que esta relação se torna mais evidente. Permitam-me citar algumas semelhanças entre o martírio de Dom Romero e a Via Crucis de Jesus, seu e nosso Salvador.

Dom Romero viu o rosto do seu assassino. Enquanto a congregação estava de costas para a porta do templo, ele viu a chegada do soldado que o alvejou fatalmente. Dizem os que participavam da missa que ele não mudou de atitude, continuou firme no seu sacerdócio. Exatamente o que aconteceu com Jesus. Enquanto seus discípulos dormiam ou se distraíam ele viu chegar a guarda armada para prendê-lo.

Dom Romero foi morto por um atirador de elite do exército salvadorenho, da mesma forma que a escolta que levou Jesus ao Calvário era composta dos mais bem preparados soldados daquela legião romana.

Assim como seu mestre, o arcebispo de El Salvador fez uma clara opção pelos párias, renegados e isolados da sociedade, o que lhe valeu o título de Bispo dos pobres. Tudo fez sem fomentar qualquer sentimento de vingança ou ódio. Nos passos de Jesus pregou a convivência pacífica, uma vez que a justiça fosse a voz mais ouvida. Disse certa vez: Creio que fazer esta denúncia, na minha condição de pastor do povo que sofre a injustiça, seja meu dever.

A sua morte não foi uma ato isolado. Vários outros pregadores do evangelho foram assassinados na América do Sul naquele período. Na Bíblia temos o relato da morte de João Batista, de Teudas e de Jesus, o justo, mas há registro de muitos outros que foram martirizados pela liberdade.

Jesus foi por diversas vezes ameaçado de morte, e não por poucas vezes aqueles que lhe eram próximos tentaram dissuadi-lo. O mesmo se deu com Dom Romero que por várias vezes lhe sugeriram uma inaceitável transferência. Fui frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer-lhe que, como cristão não creio na morte sem ressurreição.

Como Jesus, Dom Romero não somente aceitou a morte como consequência inevitável, como também perdoou antecipadamente os seus assassinos: Minha morte, se for aceita por Deus, que seja pela libertação do meu povo e como testemunho de esperança no futuro. Você pode escrever: se chegarem a me matar, desde já eu perdoo e abençoo aquele que o fizer.

A despeito de tudo o que foi relatado, tenho pra mim que a maior semelhança se deu entre o seu funeral e a entrada de Jesus em Jerusalém. Quando Jesus entrava triunfalmente na cidade, não faltaram aqueles que o desdenharam. Muitos até disseram que não passava de uma manifestação de bêbados. Pois bem, em minúsculos espaços a imprensa brasileira noticiou a morte de Dom Romero, fazendo-lhe a infeliz referência: Morreu um padre terrorista em El salvador.

Nem penso em querer aproximar a vida e o sacrifício de Dom Romero ao patamar do sacrifício de Jesus, o Cristo, e nem ele aceitaria que se fizesse tal comparação. Mas é inevitável concluirmos que aqueles que se dispõe a seguir o Salvador tem por obrigação perecerem-se, como pede o hino acima, o máximo possível com ele. E que ninguém se iluda que a trajetória e desfecho de suas vidas sejam diferentes da que se deu com o nosso Mestre.

Termino com o hino de vitória do nosso irmão, pastor e mártir do passado recente: Se me matarem, ressuscitarei na luta do meu povo. 

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Pão ou pedra? (final)

"Isto é o meu corpo"
De antemão devemos nos lembrar de que, a não ser o amor de Deus, nada mais na consciência de Jesus era definitivo. Isso ficou evidente quando disse que os Mandamentos, as prescrições da tradição e até mesmo a própria Palavra de Deus teriam que estar condicionadas e serem interpretadas a partir desse amor. Por várias vezes ele os reinterpretou dizendo: visto o que está escrito? Eu, porém vos digo.  Ele disse uma vez que não veio para revogar a lei, mas na verdade revogou muita coisa. Ele mudou o sentido de praticamente tudo no que se fundamentavam aqueles que não queriam que o Reino de Deus fosse implantado. Então, não há porque esperar que na sua pregação fatalmente não houvesse uma hora em que ele faria o dito pelo não dito e colocaria pedra no lugar de pão, e pão no lugar de pedra.


Quando Jesus foi levado ao deserto para definir as prioridades da sua missão, o tentador se apresenta com propostas excepcionalmente válidas. Numa delas ele desafia Jesus com numa das suas principais necessidades básicas: Você está com fome? Se eu estivesse no seu lugar mandaria que estas pedras se transformem em pães. E Jesus responde: nem só de pão o homem viverá. O tentador ousou sugerir que ele transformasse pedras em pães, que através de magia transformasse uma coisa ruim em uma coisa boa, que transformasse maldição em bênção. Mas Jesus percebeu por trás daquela intercessão amorosa a voz do Diabo tentando mostrar os atalhos para o sucesso da sua missão. Deixe a pedra aí. Ela foi criada para ser pedra e não pão. Se Deus quisesse transformar as pedras em algo útil, não faria delas pão, mas sim verdadeiros filhos de Abraão, coisa que vocês se vangloriam de ser e não são

Há uma segunda condição a ser observada no conceito entre bem e mal. É o que está embutido na escolha entre os dois elementos. No transcurso do ministério de Jesus fica bem claro que a questão implica em uma escolha. Só que a escolha não é mais a mesma do texto base desta reflexão, que é a escolha do que um pai deve dar ao filho. Também não é exatamente a escolha das prioridades deste ministério. A solução proposta pelo tentador não comprometia a sua decisão de servir a Deus, mas sim as suas prioridades. Mas a principal escolha é bem mais complexa, muito mais sutil e muito mais decisiva. Fragilizado pela fome Jesus tem que decidir quem vem primeiro na sua vida, Deus ou pão. Não há nada de errado em comer, mas Jesus é taxativo: Quando temos que decidir entra as necessidades imediatas e a obediência aos propósitos de Deus, Deus tem que vir primeiro.

É muito comum se ouvir das pessoas que trabalham com assistência social nas igrejas a seguinte máxima: Vamos dar ao necessitado o pão, para depois então falarmos de Deus. Assim ele há de nos escutar. O esquema do trabalho social nas igrejas quase que invariavelmente obedece este raciocínio. Eu sei que as situações podem ser diferentes, por isso digo quase. Não se pode generalizar, mas no caso específico da tentação de Jesus, a escolha era exatamente esta. De imediato, o homem comum não veria qualquer problema em fazer o milagre dos pães, mais tarde Jesus faria este mesmo milagre diante de uma enorme multidão. O problema é saber a quem o necessitado irá creditar aquela oferta, ao Deus da Bíblia ou ao Deus do pão? Ao Deus que dá o pão, mas que na hora em que ele se torna escasso  também é Deus, ou ao Deus que é avaliado segundo os seus benefícios imediatos para conosco?

Vocês não estão me seguindo pelos sinais que apontam mudanças radicais, mas porque comeram e se saciaram. Não trabalhem pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna. Jesus disse isso porque era comedido com os pecadores como nós. Se acontecesse algo semelhante com Paulo ele diria: Vai trabalhar vagabundo!

Não vim para transformar pedra em pão, pelo contrário, eu vim para transformar a mim mesmo em pão e a ser a pedra que calça o caminho verdadeiro. Sou o pão que foi triturado em favor de muitos, sou também a pedra que vocês rejeitaram. Mas Deus fez de mim a pedra angular, a mais importante em toda construção, me fez dar o meu corpo como quem dá um pão, que partido é dividido entre todos. Que essa Páscoa nos ensine a fazer escolhas, certas ou incertas, não importa. Mas que sejam dignas da grandeza do amor com que nos amou o Pão vivo que desceu dos céus. Que nos ajude a deixar de ser pedra de tropeço para nos tornarmos Ebenezer, pedra de socorro. Que nos ajude a reconhecer entre tantas a que se oferecem a verdadeira pedra angular, aquela mesma que no começo desta meditação concordamos em rejeitar. 

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Pão ou pedra?

A Última Ceia de Jacopo Bassano (1510-1592)
O Calendário Litúrgico recomenda que um dos assuntos das meditações de hoje seja Números 21, que tem por tema a serpente levantada por Moisés no deserto. Um tema que considero bem apropriado, menos pela ocasião da Quaresma, do que pelos vários papéis que a serpente representa na tradição judaicocristã. Era sobre isso que deveríamos meditar, porém, dois motivos me levaram a não fazê-lo. O primeiro é que ainda preciso investigar bem mais este instigante tema, e depois, embevecido pela grande aceitação da
mensagem dos dois últimos dias, as mais lidas até então, me senti à vontade para falar do que quiser.

Para não me orgulhar por muito tempo, alguém me fez deparar com as palavras pão e pedra, que são igualmente controversas, em se tratando do texto bíblico de Mateus 7, em que Jesus pergunta quem é o pai, que por pior que seja, dará pedra ao filho lhe pede pão? Embora tenha uma serpente aí também, a questão do texto não são as ofertas que fazemos aos nossos filhos. Logicamente que aqui existe um grande consenso. Indistintamente qualquer pai ou qualquer mãe pensaria da mesma forma. Essa não é a questão do texto. Mas sim o que nós realmente queremos receber? Qual é a nossa preferência, pão ou pedra? Nenhum de nós que tivesse que fazer tal escolha diante da oferta desses dois elementos, vacilaria, sem sombra de dúvida, em escolher o pão. É claro. Numa análise imediata do texto, concluiríamos que o pão representa a bênção e a pedra, a maldição. O texto deixa bem claro que estamos fazendo uma escolha acertada: é pão mesmo, não é pedra, não. Jesus disse que não é só quem é bom que dá pão, até quem é mau também dá. É preciso ser muito mal, extremamente perverso, é preciso ser desumano para dar uma pedra a um filho que pede pão, e uma cobra quando ele pede peixe. As pessoas boas escolhem sempre dar pão. Pedra não, pedra é um perigo, é igual à serpente: morde feito doido. Pão é alimento, é força, é vida. Pedra serve pra fazer a gente tropeçar e não serve nem pra travesseiro. São Pedro que o diga.

Dito isso, será que definimos toda a pregação de Jesus sobre esses dois elementos tão comuns na nossa vida? É assim mesmo que ele posiciona esses elementos? Aqui está o pão, ocupando lugar no mais alto dos céus, e aqui a pedra, que vai queimar eternamente no quinto dos infernos. É assim mesmo e acabou? Pão e pedra. Está tudo resolvido? Tá tudo dominado? Não sei não. Por mais definitivos que estejam para nós estes dois elementos; mesmo que a distinção entre eles seja inequívoca; por mais clara que seja a diferença entre pão e pedra, não seria possível, que, contidas nestas duas palavras, estejam presentes as maiores ambiguidades dos evangelhos? Não seria possível também que fossem estas as palavras que mais oscilaram na pregação de Jesus? Porque não são poucas as ocasiões onde elas trocaram de posição, ou seja: quando o pão passou a ser uma coisa ruim, um tropeço e a pedra uma coisa boa, uma verdadeira bênção divina.

Logo depois da multiplicação dos pães, que obviamente foi uma coisa boa, Jesus reparou que o número dos seus discípulos aumentara assustadoramente. Aí ele matutou consigo mesmo: será que eles estão atrás de mim porque viram os sinais de um novo tempo, ou porque comeram do pão e se saciaram? Jesus notou que eles claramente optaram por seguir o Deus que dá pão, o Deus que só oferece vantagens. Não optaram pelo Deus que na sua vontade pode fazer tudo o que quiser, mas pelo Deus que pode fazer tudo o que a nossa vontade quer. É importante observarmos este detalhe, porque sempre houve cristãos passando por dificuldades, sofrendo e até morrendo, apesar de terem fé. As igrejas estão lotadas de pessoas que sincera e honestamente a vida inteira buscaram cura, e nunca foram curadas. Será que o diferencial nestes casos é a falta de fé dessas pessoas? Vamos supor que seja. Vamos dar um crédito aos profissionais da fé. Mas vai ter um problema. Se observarmos a época em que os evangelhos foram escritos, vamos ver que a situação era bem mais complicada. Também havia cristãos sofrendo e não poucos estavam morrendo, apesar de terem fé. Mas naquela hora eles estavam morrendo por causa da sua fé. A partir daí ninguém mais tem o direito de ligar o sofrimento à falta de fé, e sim ao extremo oposto, a exuberância de fé.  

Também não podemos nos esquecer de que embutida na oferta gratuita de pão havia uma política de dominação do Império Romano que funcionava como uma terrível arma. Para o povo sofrido e oprimido, os imperadores ofereciam pão e circo. O pão era um atrativo para uma escravidão silenciosa, sem contestação. O pão servia como um cala boca, como um prêmio de consolação, para que o povo suportasse por mais tempo o estado de opressão que os dominadores romanos lhes impuseram. Será que Jesus teve mesmo essa intenção? Será que ele queria chamar pessoas para o Reino de Deus atraindo-as com pão? É claro que com pedra ele não ia arrumar nada. Como se dizia antigamente: nem pro café.

Diante dessa dúvida que foi aqui levantada, imagino que esta seja uma boa hora de revermos estes conceitos de mal e bem, de bom e mau na pregação de Jesus. Assim como um aperitivo para esperarmos que a serpente venha ocupar o seu espaço aqui neste blog. Mas é só aperitivo mesmo, o restante vem amanhã.




Parábola da pedra citada acima (autor desconhecido)

Um dia Jesus estava falando com seus discípulos e disse:
— Eu quero que vocês carreguem uma pedra pra mim!
Foi só isso que ele falou. Simão Pedro não entendeu o porquê. E também Jesus não explicou. Então Pedro deu uma olhada em volta e pegou o menor pedregulho que pôde achar e pôs no bolso. E Jesus disse: "siga-me!"
Então eles andaram a manhã inteira e na hora do almoço Jesus pediu para que todos se sentassem.
— Cada um pegue a sua pedra.
Ele fez um gesto e todas as pedras viraram pães. Era hora do almoço!
Depois de 20 segundos de almoço, Pedro terminou. Quando o almoço acabou Jesus disse:
— Em pé! E eu quero que cada um de vocês carregue uma pedra pra mim.
Pedro ouvindo isso logo olhou em volta e viu uma rocha pequena, colocou-a nos ombros, doeu muito; ele mal conseguia andar. Ele dizia: "Tá difícil, mas mal espero ver a hora do jantar!"
Na hora do jantar Jesus os levou a beira de um rio e disse-lhes:
 — Cada um jogue a sua pedra no rio e venham, sigam-me! E quando ele começou a ir embora e largar tudo para trás, Pedro e todos os outros ficaram embasbacados com Jesus.
— Vocês não entenderam? - disse Jesus - Pra quem vocês estão carregando esta pedra? Eu pedi
para vocês carregarem a pedra para mim!

Conclusão do autor
Aquele que segue a Cristo não obedece a Deus para ganhar dinheiro e nem para conseguir coisas materiais. O verdadeiro cristão obedece a Deus para conseguir Deus, para ficar perto dele, para que se pareça com ele. Mas e a sua pedra? Você carrega pra quem?

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Pecado e Graça (final)

A Conversão de São Paulo de Luca Giordano (1634-1705)
Mas existe também um segundo aspecto nessa luta entre o pecado e a graça. Nós estamos separados uns dos outros, porque nós estamos separados de nós mesmos. Você já percebeu o quanto estamos separados de nós mesmos? Já sentiu que dentro si existe uma pessoa dividida? A nossa vida é uma luta interna que revela constantemente por meio de agressões, por meio de ódios, por meio de desespero. Comigo por meio de uma raiva repentina incontrolável. Já me disseram várias
vezes que eu não deveria falar isso no púlpito, mas é impossível não me ver por inteiro nesse quadro.

Eu preguei tanto contra o amor próprio, contra a valorização pessoal, e confesso agora o quanto eu errei nessas pregações. Eu deveria ter atacado é essa mistura de egoísmo e ódio que nos impede de amar a nós mesmos e aos outros. Deveria ter pregado contra a repugnância do nosso próprio ser que nos faz cada vez mais separados de nós mesmos. Contra essa agressividade interior que nos impede de amar até a nós mesmos. Como para mim é difícil aceitar que eu não gosto de mim mesmo. A minha luta é contra essa falta de autoestima. Só pode amar ao outro quem ama a si mesmo. Só pode aceitar o outro, aquele que aceita a si mesmo. Talvez seja por isso que na maioria das vezes eu prego o evangelho com raiva. A raiva está dentro de mim, me dividindo.

Se existe dentro de nós um instinto de autopreservação, existe também um instinto de autodestruição. Se existe a tendência de abusarmos dos outros, existe também a tendência de abusarmos de nós mesmos. Crueldade contra os outros é sempre crueldade contra nós mesmos. Quando eu faço alguém sofrer é porque eu estou querendo sofrer também. Estou sempre dividido entre a minha consciência e a minha inconsciência. Por um bom tempo eu pensei que era o único que se sentia assim. Eu só ouvia gente contar vitórias, alardear conquistas, e pensava comigo mesmo: será que só eu que sofro dessa divisão interna? Foi assim até o dia que eu li atentamente o versículo 19 de Romanos 7. Paulo falou: o bem que eu quero fazer, eu não faço; mas o mal que não quero fazer, este está sempre diante de mim.

Paulo percebeu muito antes da psicologia moderna, muito antes de Freud, que ele também era uma pessoa dividida em si mesma. E continuou falando como um psicólogo de hoje: mas se eu faço o que não quero, já não sou quem faço, mas o pecado que está dentro de mim. Paulo percebeu muito bem esta divisão dentro dele. Ele sentiu a divisão entre a vontade consciente do que ele queria fazer e o que realmente fazia. Ele sentiu a divisão entre si mesmo e algo estranho dentro dele. Ele sentiu-se separado de si mesmo, e essa separação não chamou de demônio, não chamou de encosto, não chamou de espírito obsessor. Chamou simplesmente de pecado. Paulo identificou o pecado como um agente que atuava em corpo e o impelia a fazer o mal. Uma compulsão irresistível, pois ele não queria fazer o mal, mas fazia; queria fazer o bem, mas não conseguia fazer. Bom, esta foi a experiência de São Paulo, e de certa forma, a minha experiência também.  Mas será possível que somente nós dois tenhamos passado por isso? Claro que não, é a experiência de cada um de nós. É a experiência de separação de nós mesmos. É a experiência real e visível de pecado aumentando.

Mas nessa luta existe também um terceiro aspecto. Nós estamos separados uns dos outros porque estamos separados de nós mesmos, e estamos separados de nós mesmos porque estamos separados de Deus. E é justamente nessa separação que ficamos alienados de vez, porque perdemos todas as nossas referências. Ficamos sem saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Ficamos separados do mistério e da grandeza da nossa própria existência. E esse abismo de separação é profundo demais. Querem saber o quão profundo é esse abismo? Querem saber como ele se manifesta? Este abismo se manifesta principalmente pela nossa incapacidade de aceitar o amor gratuito de Deus, isso porque estamos apegados demais à lei. No íntimo, não queremos a liberdade, nós queremos mesmo é a lei.

Nós queremos sempre saber quantas vezes devemos perdoar, com quanto devemos contribuir e até onde se deve amar o próximo. A lei parece que nos dá um tipo de segurança porque diminui a margem de erro. Com a lei nós estamos propensos a errar menos. E é por isso que, para nós, é difícil compreender e aceitar o amor de Deus. O apóstolo Paulo sabia muito bem disso, quando escreveu o nosso texto de hoje: onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda. Foi a experiência maior e mais expressiva da sua vida. Foi no momento da sua separação maior. Lá na estrada de Damasco, quando o livro dos Atos dos Apóstolos nos diz que ele respirava ameaças contra a igreja. Uma luz brilhou, e uma voz lhe falou: você é aceito. Você é aceito, apesar de não merecer ser aceito; apesar da sua separação, você é aceito. Foi no exato momento em que Paulo sentiu-se aceito por Deus que ele pode aceitar a si mesmo, e assim passar a aceitar os outros. Foi lá, na estrada de Damasco, que Paulo foi alcançado pela graça.

E o que significa ser alcançado pela graça? Ser alcançado pela graça não significa que de repente passamos a acreditar em Deus, e achar que a Bíblia é a verdade. Não significa que aceitamos de imediato que Jesus é o Salvador. E nem significa também que progredimos em nossa conduta moral. Tudo isso pode ser o fruto da graça, mas não é a graça em si. Porque isso não é uma coisa que está em nós, que vem de nós ou da nossa capacidade. Ninguém pode transformar a si mesmo. Ou nós somos transformados pela graça, ou nós não somos transformados. É uma coisa ou outra. Acontece a graça de Deus na nossa vida, ou não acontece. E certamente não acontece quando nos julgamos dignos, quando queremos forçá-la a acontecer ou quando achamos que não precisamos dela.

A graça nos toca quando atravessamos o vale escuro de uma vida vazia e sem sentido. A graça nos toca quando sentimos a separação de nós mesmos mais aguda do que nunca. A graça nos toca quando sentimos a mais completa repugnância do nosso ser. A graça nos toca quando ano após ano, aquela perfeição tão desejada simplesmente não acontece conosco. A graça nos toca, quando as velhas compulsões continuam reinando em nós. A graça nos toca quando o desespero destrói toda alegria de viver. É como um raio de luz quebrando a escuridão da nossa vida. É uma voz nos dizendo: você é aceito. Você é aceito apesar da sua separação, apesar do seu pecado, apesar de não merecer ser aceito. Simplesmente aceite o fato de que você é aceito por Deus. E quando isso acontece, experimentamos a graça de Deus. Depois dessa experiência, tudo é transformado.

Sei que estou pegando pesado, me desculpem por isso. Mas quando se fala sobre a graça de Deus as pessoas pensam que qualquer coisa serve, pelo contrário. Quando a graça de Deus nos transforma, nós somos transformados mesmo, e o resultado disso é uma vida totalmente diferente de tudo que havia antes, não pelos padrões normais que conhecemos, mas pela novidade da graça. Porque nesse instante, a graça vence o nosso pecado dentro de nós e começa a derrubar todas as barreiras que existem entre nós e os outros. Quebra as barreiras que por anos estamos construindo dentro de nós e passamos a aceitar aos outros e a nós mesmos. Foi assim com o apóstolo Paulo, pode ser assim comigo, pode ser assim com você também. Porque a lei veio para aumentar o mal. Mas onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda.

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Pecado e Graça

Jacó abençoa os filhos de José,Jan Victors(1619-1676)
A lei veio para aumentar o mal. Mas, onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda. Rm 5,20

Neste versículo Paulo não somente fez um resumo completo de evangelho como nos ditou os dois elementos primordiais da nossa vida: pecado e graça. Será que
alguém já reparou o quanto essas palavras são velhas? E o quanto são familiares também? Talvez seja por isso que elas tenham perdido o seu potencial, o seu poder genuíno. Hoje quando se fala em pecado e graça parece que
ninguém está nem aí. Por isso que eu e você temos que resgatá-las para nós. Precisamos fazer com que elas tenham a devida atenção, e sejam devidamente observadas. Para isso Paulo nos deixou o versículo: A lei veio para aumentar o mal. Mas, onde aumentou o pecado, a graça de Deus aumentou muito mais ainda.

Você já parou para pensar no que significa a palavra pecado. Você sabia que o pecado antes de ser um ato é um estado? Sabia que a palavra pecado não deve ser usada no plural. Não são os meus pecados e sim o meu pecado. Sabia também que é arrogante tentar classificar as pessoas em grupos de pecadores e retos? Sabia que tudo que falamos sobre pecado é muito diferente e está muito distante do que a Bíblia diz ser o pecado? Na Bíblia pecado é separação, e desse mal todo mundo sofre, este mal todo mundo pratica. Alguém pode dizer: Sergio, esse negócio de separação não é comigo. Pelo simples fato de dizer isso, já significa que está separado da maioria e vai passar a ser olhado com desconfiança. Separação é um fato universal, por isso é que nós sentimos sozinhos, por isso é que nós sofremos; porque estamos em pecado, e estamos mesmo.

 O curioso disso tudo, é que mesmo estando em polos opostos, pecado e graça estão intimamente ligados, porque um não existe sem o outro. Eu jamais conhecerei a extensão do meu estado de pecado, se não for um dia alcançado pela graça. E, por conseguinte, a graça de Deus de forma alguma poderá me redimir, se eu não estiver mergulhado até o pescoço no pecado.

Então o que dizer da palavra graça? Assim como a palavra pecado, ela também é bem complexa. Não é nada fácil definir o que é graça. Então, o que seria graça? A graça seria como um rei de coração grande que simplesmente olha para as pessoas e perdoa todas as suas idiotices e fraquezas? Claro que não. A graça seria como um Papai Noel gigante que tira de um saco enorme perdão e restauração, e os distribui para quem foi bonzinho? Logicamente que essa não é uma boa definição de graça. Graça é uma palavra mágica que eu invoco nas horas de provação? É isso, a graça não é uma nova consciência que não permite que eu peque mais? Nada disso. A graça de Deus é muito mais. Na graça algo é superado. A graça acontece apesar de tudo. Ela acontece, apesar do meu pecado, apesar da minha separação. Ela é a reconciliação do inconciliável. Ela é a união dos que estavam definitivamente separados. Ela é a única esperança daqueles, que, assim como nós, estão irremediavelmente perdidos e alienados. Se alguém supõe não estar enquadrado neste caso, dá um sinal de que está separado de nós outros, e também vai ser olhado com desconfiança, daqui pra frente.

Mas a graça de Deus também não é só isso, ela possui elementos transformadores que vão além da restauração e da valorização pessoal. Ela possui elementos que não somente a fazem vencer o pecado, mas abre uma incomensurável vantagem sobre ele. A graça transforma o nosso medo e humilhação em coragem e força. O estado do indivíduo após ser alcançado pela graça em nada se assemelha ao seu estado anterior, pois vitória da graça sobre o pecado é algo que não pode ser descrito. Não é à toa que um autor de músicas sacras dedicou a ela sua mais preciosa pérola, quando deu o nome à sua composição de Maravilhosa Graça. Contudo, eu ainda não queria utilizar qualquer rótulo antes de fazermos uma meditação mais profunda sobre o conflito da separação, que é o pecado, e a conciliação, que é a graça. Neste conflito existem três aspectos.

O primeiro motivo de nos sentirmos separados pelo pecado, é porque estamos separados uns dos outros. Você já reparou bem nesta separação? Quem nunca se sentiu sozinho e separado numa festa animada e cheia de gente? É assim mesmo. Talvez o lugar onde essa nossa separação se torne mais evidente, seja num lugar de barulho e agitação de pessoas. Querem saber em que lugar eu me sinto mais sozinho e me sinto mais ameaçado? Quando eu atravesso o Camelódromo para ir à Sociedade Bíblia. Eu me sinto ameaçado e parece que eu corro um enorme perigo. Justamente no lugar onde tem gente pra todo lado, que eu deveria me sentir mais amparado e mais seguro, mas não. É que lá, cada indivíduo está recolhido dentro de si mesmo e eu não tenho como saber quais são as suas intenções. Eu não posso penetrar no pensamento deles para saber o que eles querem, o que eles pensam ou o que vão fazer. Mas não posso, e o fato de não conhecermos o íntimo das pessoas nos assusta, pois nem o maior amor consegue quebrar a barreira do íntimo.

Toda geração diz a mesma coisa, mas a nossa geração, com muito mais convicção do que qualquer outra na história conhece a hostilidade profunda que existe dentro de cada ser humano. Cada vez mais a psicologia, as ciências sociais, o estudo sistemático do comportamento descobrem mais causas dessa agressividade que existe dentro de cada um de nós. Descobrem também as diversas maneiras, mesmo as mais sutis, de como expressamos essa agressividade. Você pode não se dar conta, mas muitas vezes o infortúnio dos nossos melhores amigos é para nós motivo de satisfação, e ninguém honestamente pode negar que isso acontece. Nós estamos sempre de prontidão para abusarmos da primeira pessoa que quebra a cara. Fazemos isso não por maldade consciente, mas para nos autoexaltarmos, para nos autoafirmarmos, para sermos os bons. É claro que fazemos de modo refinado, mas que fazemos, fazemos. Nem que seja com a sutileza de um simples “eu não disse?” E é analisando este tipo de comportamento que essas ciências nos fazem conhecer a profundidade da separação de vida que existe entre nós e os outros. E é aí que podemos ver claramente o pecado aumentando.

Outra coisa com respeito à nossa geração, é que antigamente para nos inteiramos sobre o pecado, precisávamos ir à igreja. Para compreendermos o que Paulo disse sobre o pecado aumentando, precisávamos ouvir sermões. Esse era o lugar da igreja, nos alertar sobre a progressão do pecado no mundo. Mas isso mudou. Hoje a gente assiste em nossa própria casa, em alta definição, diariamente esse continuado aumento do pecado.   
  
Não faz muito tempo assisti a um filme que mostrava isso claramente. Era a história de um rapaz que tinha tudo. Ele tinha talento, tinha riqueza, beleza, prestígio, ele tinha uma esposa linda e dedicada, tinha filhos maravilhosos. Mas esse rapaz, um dia, começou a beber exageradamente. E em uma hora e meia o filme mostrou como ele foi gradativamente perdendo tudo que tinha. Nos intervalos eu ficava imaginando como ele ia recuperar tudo o que perdeu. Imaginei que ele ia cair em si como o filho pródigo, que ele ia se converter como Zaqueu. Ele não podia perder tudo só porque bebia, mas não aconteceu nada disso não. Ele perdeu mesmo tudo e ficou perdido. No final era apenas uma figura sórdida, solitária, separada de tudo que tinha, inclusive de sua família. As últimas cenas eram de fazer chorar. Uma tragédia real mostrando como o pecado aumenta. Acho que este foi o sermão mais contundente sobre o pecado que eu ouvi na minha vida. O testemunho fiel de separação de vidas, o testemunho fiel de pecado aumentando. (continua)

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Começa o messianismo

A Crucificação de Cristo, Vassili Golinsky  
Responderam-lhe: “Porventura és também tu galileu? Informa-te bem e verás que da Galiléia não saiu profeta. Leia Jo 7 40-53

Na língua hebraica antiga, Messias é uma palavra comum que significa ungido, e que no Grego foi traduzida por Cristo. Indica, apenas, que a pessoa foi untada com óleo ou ungüento com um fim específico, em um ritual religioso. Por se tratar de título conferido exclusivamente a seres humanos, o Antigo Testamento nunca concebeu um ser celestial sequer que o tenha recebido. Na história antiga de Israel somente os sacerdotes eram ungidos, por serem eles
os escolhidos para a sagrada função de intermediação entre o povo e Deus. Com o surgimento da monarquia, a unção foi concedida, também, a Saul, que embora fosse escolhido pelo povo por método usualmente empregado pelos pagãos, que privilegiava estatura e força física, ainda assim teve a sua unção confirmada por Deus como primeiro rei de Israel. E assim se procedeu com todos os que subiram ao trono deste reino.

Diante de tantas cerimônias protocolares e de rituais públicos, como imaginar que este Messias, com o passar do tempo, deixaria de lado a linhagem sacerdotal e a realeza para ter seu nome associado à resistência, à revolução, à guerra, à libertação, e na expectativa judaica, mais tardiamente, à única esperança para toda a humanidade? A verdade é que, passando por cima de todos os legalismos e formalidades, a palavra evoluiu e obteve um significado de importância tal, que sobrepujava em autoridade a do sumo-sacerdote e a da mais nobre realeza, relegando a esta última a incumbência de servir, apenas, como instrumento para a chegada de um ungido em especial, cuja simples presença seria o sinal que marcaria a chegada de um novo tempo.
Depois da decepção causada pelo desastroso governo de Saul, um outro rei foi escolhido, desta vez por indicação do próprio Deus. Por todos os padrões conhecidos para escolha de um monarca, esta foi uma escolha que até hoje causa controvérsias. Como explicar que um chefe de quadrilha, adúltero, ladrão e assassino seria a opção preferencial de Deus para ser o maior rei do povo que se chamava pelo seu nome? Por razões que jamais alguém entenderá, Davi, a despeito de todas as suas falhas, era amado por Deus com um amor tão particular, que fez com que esta escolha não ficasse restrita ao período de duração do seu reinado, mas que consolidasse a sua figura como o protótipo ideal de um rei para Israel e fundador da linhagem na qual surgiria o grande e esperado Messias.

Davi foi sem dúvidas, o grande herói de Israel: derrotou os históricos inimigos filisteus, unificou os estados de Judá e Israel, fixou a capital em Jerusalém e livrou a Terra Prometida de todos os invasores. Por instaurar, pela primeira e única vez, a dinastia sob a qual Israel se viu uma nação livre e soberana, passou a personificar não mais a imagem de um simples rei, mas a fonte inspiradora do libertador prometido que iria trazer novamente a paz e a prosperidade; em resumo, o Messias. Por vinte gerações, os descendentes de Davi reinaram absolutos, até que, em 586 a.C., o ideal sucumbe perante um inimigo inexorável, os babilônicos. O orgulho de nação livre e soberana é perdido para sempre e um sem número de nações opressoras se sucedem subjugando o povo que outrora se julgava escolhido, mas que agora sente a vergonha de ter se reduzido a apenas um punhado de sobreviventes; na linguagem dos profetas, a um pequeno resto, o resto de Israel.

É neste cenário de desespero que nasce a esperança da chegada de um novo rei, que à semelhança de Davi, viria para restaurar a liberdade e a hegemonia de Israel, a partir do resto, sobre todos os seus inimigos. Peculiarmente acontecia que nos momentos de maior opressão, quando o povo se encontrava mais submisso, era justamente a hora em que mais crescia a esperança neste ungido de Deus. Aproveitando-se desta expectativa, vários “Messias” despontaram como libertadores de Israel, e para tanto não somente se apresentaram com características intrinsecamente guerreiras, a exemplo de Davi, como também se faziam ligados a ele por herança de sangue. Judas Macabeus, que, em 164 a.C., libertou o povo que estava sob domínio selêucida, e Bar-Kokeba, que se insurgiu contra os romanos em 135 d.C., foram os que mais se aproximaram da idealização de um Messias, mas que ao final, se mostraram autênticas fraudes, pois o que de fato conseguiram foi atrair mais escravidão, mais morte e mais sofrimento para o povo. Estes e outros, se auto-proclamaram Messias reivindicando serem descendentes diretos de Davi, atraindo, desta forma, uma legião de seguidores disposta a se sacrificar em nome e por dedicação ao ungido que, mais do que esperado, se fazia necessário.

Em meio a esta sucessão de pretensos Messias, nasce no século um de nossa era, alguém sobre quem recaem grandes questionamentos. Se por um lado preenchia as expectativas proféticas que iam desde o local do seu nascimento até a um sinal inconfundível na entrada triunfal que fez em Jerusalém, por outro, não preconizou de imediato o tempo de glória, paz e prosperidade prometido ao povo judeu, o que seria a marca indelével da chegada do Messias. Os judeus olhavam as profecias que anunciavam mudanças radicais na vida do povo e na própria natureza e diziam: este não pode ser o Messias. De fato, Jesus não seguiu o trâmite regular de alguém que postulava o cargo: não atraiu para sua causa um número suficiente de seguidores; não despertou temor entre os romanos de um levante armado; nunca se envolveu diretamente em questões político-partidárias; enfim, jamais executou publicamente qualquer movimento que pudesse atrair para si a evidência de um Messias.

Em se tratando de situações domésticas, mesmo entre seus poucos seguidores, havia quem não aceitasse esta sua postura como definitiva, e persistiam em acreditar que, de uma hora para outra, a sua face guerreira iria despontar e que ele pegaria nas armas para destruir os inimigos, o que nunca aconteceu. Então, que Messias é esse que vem para subverter uma expectativa secular? O que ele possuía de tão especial que justificaria transtornar um ideal que já perdurava por quase seis séculos? No entendimento e na esperança do povo, o Messias é um rei guerreiro que vem conclamar o povo para uma vitória avassaladora e inquestionável, ou simplesmente, não é o Messias.

Para se entender Jesus como sendo este Messias prometido, uma mudança radical na abordagem a respeito do Plano de Deus se faz necessária, fato que não se daria durante a sua existência terrena nem no momento imediatamente seguinte. Somente após muita reflexão, é que alguns passaram a aceitar e a acreditar que a vinda deste Messias não causaria apenas a simples inversão no cenário mundial, onde os opressores trocariam de lugar com os oprimidos, mas anunciaria a erradicação de qualquer tipo de opressão e de sectarismo. Uma idéia muito à frente da mentalidade do Período Clássico, quando a preservação do sistema que se baseava exclusivamente na relação entre classes dominantes e dominadas era vital. Além disso, imaginar o poder das armas cedendo lugar à força do amor, que é a marca deste novo tempo messiânico, é algo que não se assimila de imediato. Sobretudo, um aspecto é de capital importância: ter, como Jesus, a fé inabalável em que, enquanto este novo tempo não se faz presente, vale a pena sofrer e morrer apenas por esta esperança, sendo ou não o Messias.

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O Zelo de Deus (final)

A Morte de Sócrates de Jaques-Louis David (1748-1825)
Outro problema que ocorre quando não o zelo que Deus tem pelo seu nome não é considerado, é tentar fazer do seu culto uma transposição melhorada de um culto pagão. É bem certo que nos primórdios da fé isso acontecia de fato. Contudo, as novas experiências, o contato mais íntimo com Deus e a renovação das suas consciências fizeram com que cada vez mais se apercebessem da exclusividade de Deus, o que
propiciou que as danças extasiantes em volta das fogueiras fossem dando lugar à solenidade do culto no templo. Isso trouxe um a enorme diferença nos usos e costumes do povo. A sensualidade dos véus transparentes foi substituída pelo recato, a sobriedade, se não extinguiu, reduziu ao mínimo o uso de álcool e a ministração de alucinógenos, as perdas inconsequentes de bens materiais e o sacrifício de inocentes foram abolidos. Que ninguém pense que através dessas palavras venho engrossar o coro daqueles que defendem o uso das burcas evangélicas. Sei muito bem apreciar o belo, mas sei também que precisa existir alguma diferença.


Sinto-me um privilegiado em não conhecer pessoalmente qualquer astro gospel; mais ainda por conseguir identificá-los na multidão; e infinitamente mais por poder fazer parte de uma comunidade de fé onde esses nomes sequer são mencionados. Mas isso não é regra, é exceção. Tento me colocar na pele de um bem intencionado servo de Deus que após uma semana de trabalho árduo, dispõe-se a acordar toda a família, para, contra a vontade de alguns, levá-los à igreja. Fico tentando imaginar como essa pessoa ainda consegue conciliar a postura rígida que a custa de beliscões e puxões de orelha aprendera no passado, com a diversidade, vou chamar assim, das manifestações cúlticas atuais. Também não quero fazer apologia à violência, se pancada endireitasse alguém eu seria o Papa ou, no mínimo, um bispo primaz. Mas o cidadão em questão é a testemunha viva de que aquilo deu certo. Os seus pais, ainda que através de métodos toscos, conseguiram superar o maior de todos os desafios evangelísticos: fizeram com que o filho abraçasse a mesma fé que eles professavam.

Não faço ideia de como funciona nas igrejas que tem dono, mas sei muito bem quais são os imediatos e nefastos efeitos nas comunitárias igrejas tradicionais. Porém, jamais saberei como os antigos que não ministravam, não coreografavam e nem determinavam, conseguiram erigir os maravilhosos templos que os superungidos de hoje mal conseguem pintar.

Quando ofereceres sacrifícios ao Senhor, fazei-o de modo a que sejais aceitos (Lv 22,29). Com esta prescrição do Antigo Testamento eu encerro esta breve meditação. Penso eu que ela responde a uma série de questionamentos levantados hoje em dia. Diz, por exemplo, porque eu não posso ser espontâneo no culto”, porque não posso adorá-lo da maneira que eu achar melhor, diz que eu não posso ceder às manifestações do meu subconsciente, nem mesmo àquelas que julgo que sejam guiadas pelo Espírito Santo. Neste caso, até o Espírito Santo é submisso. Disse Jesus: O Espírito Santo só faz o que me viu fazer.

São exatamente essas coisas que nos colocam diante da revelação, e nos afastam da adoração natural e espontânea própria dos cultos pagãos. Tais cultos não identificam qualquer ação de Deus na História. Para esses adoradores só existe o destino, o acaso e o carma. Todo aquele que atreve a colocar-se contra as leis naturais é consequentemente punido por elas. Eles são individualistas, os seus rituais destinam-se a beneficiar o individuo ou no máximo o seu grupo. São realizados exclusivamente para a sua segurança. O culto cristão antevê que o mundo ideal passa longe dos condomínios fechados e não anda de carros blindados. Não é o lugar onde a paz da mordaça e as consciências supersticiosas encontram espaço. O culto pagão se satisfaz com a promessa de dias melhores, o culto ao Deus verdadeiro fundamenta-se na esperança de que inevitavelmente estaremos com ele no seu Reino.

São tantas as diferenças que fica difícil conceber que esses dois tipos de culto venham a se sobrepor. Fica mais difícil ainda entender o porquê disso ter virado regra. Foi para uma situação bastante parecida com essa que Jesus fabricou um chicote especial, e com ele expulsou aqueles que não se davam conta de que a terra onde estavam pisando era sagrada. A despeito dessa atitude irada, ele nos ensinou que o zelo de Deus não é somente para ser louvado e admirado, é para ser encarnado. E Jesus disse isso da forma mais didática e dramática que lhe foi possível: o zelo pela tua casa me consumirá.

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O zelo de Deus

Escultura de uma tonelada de ouro 24 quilates
em um prédio em Huaxi, Jiangyin, China
Desviaram-se depressa do caminho que lhes prescrevi; fizeram para si um bezerro de metal fundido, prostraram-se diante dele e ofereceram-lhe sacrifícios, dizendo: eis, ó Israel, o teu Deus que te tirou do Egito. Ex 32 7,14 
Existe em alguns grupos de igrejas uma tendência muito forte em negar certas prescrições contidas no Primeiro Testamento.
  Algumas negam terminantemente que este escrito seja a base para o testamento essencialmente cristão.  Parece que o último mandamento da Bíblia hebraica ainda vigente é o do dízimo, e quando alguém faz isso, deixa e lado importantes doutrinas bíblicas, e uma delas é a que diz que o nosso Deus é um Deus zeloso. Algumas traduções chegam a afirmar que Deus é ciumento, não que concebam que Deus tenha essa virtude, para uns, ou mazela, para outros, mas numa forma clara de nos fazer entender como Deus se sente quando a sua glória é confundida.

Deus é único, antes dele não houve, depois dele não haverá, dizia Isaías. Assim como ele é único, a sua ação e a sua revelação também são únicas. Contraditoriamente aos costumes dos povos pagãos, Deus não pode ser encontrado através da observação dos fenômenos da natureza e nem por qualquer mergulho na existência humana, seja de que profundidade for. Quando perdemos essa noção de revelação única deixamos de perceber o inominável abismo que existe entre ele e os deuses cultuados através dos elementos naturais, e quando isso acontece, nos permitimos achar que qualquer forma de adoração é válida, porque a intenção é o que fala mais alto. Passamos a adotar formas, até então, estranhas de culto, onde objetos se tornam sagrados, surgem elementos com poderes específicos, atitudes inusitadas e gestos inconsequentes. Deus é único, a sua revelação é única, portanto, o seu culto também haverá de ser único.

Por mais que essas palavras pareçam anacrônicas, que caberiam melhor na boca de Moises, que o Antigo Testamento ficou no passado, porque é para os antigos que elas foram escritas, o propósito do ser humano continua o mesmo. Não estamos aqui para viver consoante as leis naturais, e sim para fazer a vontade de Deus. O texto acima , sugerido que foi sugerido pelo Calendário Litúrgico, é apenas um exemplo entre outras tantos outros, do que acontece quando perdemos a noção do zelo de Deus. Algumas conclusões podemos tirar dessas situações concretas.

O pecado passa a ser considerado uma aberração, ou algo que aconteceu, mas que não deveria ter acontecido. O status quo de cristãos nos colocou em um estágio superior, e neste estado podemos até nos sentir culpados, lamentarmos, ou mesmo nos indignarmos pelo fracasso de nós mesmos, mas, por desconhecimento da vontade de Deus, passamos longe da contrição, do arrependimento e não sentimos a experiência da necessidade imperiosa de perdão. Certos procedimentos que aproximam o homem da divindade, como normalmente acontece nas religiões pagãs, que permitem ao indivíduo o poder de por seus próprios esforços chegar à iluminação, à consciência superior acima do bem e do mal, e, porque não dizer, à santidade, é completamente estranho à fé cristã, porque a Bíblia diz exatamente o oposto. Quanto mais perto de Deus tentamos chegar, mas se revelará a nossa degradação. Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!

Qualquer intenção sincera na direção de Deus não nos vai fazer passar pelo caminho da glória ou por crescentes estágios de sublimidade.  Não vamos nos sentir mais puros, nem mesmo mais conscientes. O que vai ficar patente é o nosso pecado, o que vai ficar evidente são as nossas limitações, o que vai se fazer necessário é a obediente submissão à sua vontade. Porque a diferença não está em nós. Somos tão idólatras quanto nossos antepassados no deserto, entre nós há disputas maiores que entre xiitas e sunitas, tão maquiavélicos quanto qualquer terrorista e infinitamente mais pecadores que todos os feiticeiros do Voo Du juntos. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniquidade. Is 59,4

Diferente é o nosso Deus, que de forma alguma vai aceitar um “foi mal” como desculpa, uma oferta generosa como suborno, uma maquiagem como sinal de transformação. Ele zela pelo seu nome, para que esse nome seja exaltado entre os pagãos e para que venha dele, e não do sol ou qualquer outro astro a única luz que guie o seu povo. Nunca mais te servirá o sol para luz do dia, nem com o seu resplendor a lua te alumiará; mas o Senhor será a tua luz perpétua, e o teu Deus, a tua glória. Is 60,19. (continua)

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Não te esquecerei jamais

Heros, O Dilúvio de Antonio Carracci (1583-1618) 
Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca. Is 49,8
Experiências trágicas como a do tsunami que devastou o Japão há um ano, tem criado justas oportunidades para pessoas repetirem aquilo que os estudiosos chamam de “desabafo joanino”. O evangelista resumiu todo a sua indignação e pesar pela terrível perseguição que o Império Romano infligia à sua igreja em uma expressão que, contraditória a tudo mais que deixou escrito, o marcou irremediavelmente como pessimista.
Disse ele, tomando pela dor da tragédia: O mundo jaz no maligno.
Ainda que racionalmente não façamos coro com seu desabafo, temos que admitir que quando a realidade nos assalta com os seus porquês, ficamos tão atônitos que este desabafo se imediatamente instala na ponta da língua, e por muito pouco não é liberado. 

Não tenho, e nem quero ter, um conhecimento profundo das causas que resultaram em algumas tragédias naturais, como essa do Japão em particular. Porém, algumas tantas outras que ocorreram ou que estão prestes a ocorrer, não tenho o menor receio em colocar a maldade e o egoísmo humanos como as únicas origens. Como por exemplo, as pessoas que expõem suas vidas diariamente a calamidades por morarem em locais de risco sob a justificativa de não terem para onde ir, para não falarmos daquelas que vivem, trabalham ou estudam em locais de alta criminalidade. Não creio que este seja o caso dos locais atingidos pelo tsunami. No Japão pessoas hospedadas em hotéis de luxo também sofreram perdas.

Uma coisa eu aprendi com meu mestre Boff: de nada adianta tratarmos o mundo em que vivemos de maneira tão predatória e contabilizarmos vidas humanas como perdas aceitáveis, para depois suplicarmos a Deus que nos livre de todas as consequências desse aviltamento. Isso nada mais é do que tentar colocar Deus no mesmo patamar dos já tão esquecidos anjos da guarda. Aqueles seres angelicais de quem se valiam os aflitos. Aquelas mesmas que serviam para tirar do sufoco, que tinham uma responsabilidade sem limites, sem, contudo, exercer sobre nenhuma autoridade ou voz de comando.

Talvez seja por este motivo que não conseguimos enxergar Jó esperneando na sua angústia, e injustamente o laureamos com o título de campeão bíblico da resignação. Esquecemos também que seus “amigos piedosos” foram severamente advertidos por Deus: Tendo o SENHOR falado estas palavras a Jó, o SENHOR disse também a Elifaz, o temanita: A minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó (Jó 42,7). Quanto mais atentarmos detalhadamente sobre a revolta de Jó, mais teremos que admitir que João tinha total razão em reclamar e não se conformar com seu estado, em ser pessimista com o futuro da sua igreja. Assim como Jó, João também levou um tempo enorme para entender os desígnios Deus na profundidade.

Bem sabemos que última fronteira da dor antes do desabafo é a pergunta que indistintamente todos fazemos: O que eu fiz para merecer tamanha desgraça? Não é de modo algum uma pergunta do nosso tempo, os discípulos de Jesus a fizeram, quando o questionaram acerca da origem da cegueira de um homem: Quem pecou, ele ou seus pais? Jesus, contudo, responde de forma estranha: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus. Logicamente que ninguém vai admitir que Deus possa ter usado as calamidades naturais, como o tsunami, com o propósito de manifestar a sua glória. Sabemos que esse é o tributo cobrado aos pela natureza às pessoas que moram em locais onde avanços excepcionais das marés deveriam ser mais bem avaliados e considerados.

Nas palavras de Isaías nos deparamos com a importância que Deus dá ao afligido. Sem querer discutir os motivos do sofrimento do seu povo, o profeta apresenta um Deus pronto a reconstruir uma aliança que foi quebrada pela maldade humana. Comparado ao sentimento materno, o cuidado de Deus é ainda mais presente e eficaz. E esse cuidado está sendo celebrado no Japão de hoje através da gratidão que os nossos irmãos orientais manifestam com aqueles que os socorreram.

Alguém disse: A obrigação da humanidade de reduzir a injustiça na Terra está sendo expressa pela explosão de generosidade que refuta o cinismo do ateísmo. A explosão de solidariedade, generosidade e de compaixão que o restante do mundo tem demonstrado com o infortúnio alheio, tem calado a boca dos mais céticos e balançado as estruturas dos mais incrédulos. O que por sua vez tem teimosamente reiterado uma fé cada vez maior em um Deus de amor, que além de criador, é mantenedor da vida e consolador em todas as circunstâncias. Deus tem usado as calamidades para manifesta a sua glória, sim, mas fazendo despertar no coração do homem moderno um amor incontido por pessoas que estes jamais supunham ter em sua conta.

A missão do cristianismo não é pregar um mundo sem tragédias e sem violência, isso seria o Reino de Deus. Sua função, enquanto esse reino não chega, é de dizer que Deus se importa e que sofre junto. Stanley Jones dizia: A ideia que a fé cristã oferece uma fuga ao sofrimento, é completamente estranha a essa fé. O destino nos lança, inevitavelmente, um punhal. Ninguém escapa. Se o segurarmos pela lâmina, nos feriremos. Mas se o segurarmos pelo cabo, poderemos usá-lo como instrumento de defesa. Quando a vida colocou uma cruz diante de Cristo, ele tomou o que de pior podia lhe acontecer e transformou no que de melhor poderia nos ocorrer.

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