Pastores ou pescadores?

Jesus come com os discípulos de James Tissot (1836-1902)
Ler João 21,13-17 facilitaria bem mais a compreensão desta meditação.

O pescador quando sai para pescar simplesmente sai para pegar o peixe, retirá-lo do seu habitat natural para vendê-lo ou consumi-lo. Um peixe que ele não ajudou a nascer, não cuidou nos primeiros anos, não alimentou ou sequer protegeu. A palavra “pescador” já não é tão bem vista nos dias de hoje, pois recebeu uma conotação predatória, uma atividade que precisa ser controlada, que não pode ser exercida em qualquer época do ano, nem com qualquer equipamento. Mais tem a ver com extinção do que com preservação. Além do que, é uma prática eminentemente enganadora. O pescador tem que armar sua rede de modo que fique invisível e em lugares estratégicos. Tem que preparar a sua isca de tal modo a ser bem atrativa, e a usa como
engodo, uma oferta para atrair, fisgar e conquistar.

Até hoje eu nunca vi ninguém preocupado com um peixe que se desgarrou, nem soube de pescador qualquer cujo trabalho fosse reconduzir o perdido ao cardume. Três anos de ensinamentos constantes para aprender como ser pastor, e mesmo assim Pedro ainda insiste em voltar a ser pescador. Sabem por quê? Porque ser pescador é muito mais fácil, até eu sou pescador. Sempre que posso, aos sábados pela manhã, estou na murada da Urca pescando. Digo que é fácil, porque eu fico lá pensando na vida. É o momento que não estou nem aí para o que está acontecendo. Se volto pra casa sem peixe, arranjo um monte de desculpas: a água estava fria demais, o mar estava sujo, tinha muita gente pescando, e vai ficar tudo bem. Pode até ser que alguém ria de mim, mas ninguém vai me cobrar nada. Mas se eu fosse pastor de ovelhas seria muito diferente e as cobranças seriam maiores. Voltar pra casa sem uma ovelha significaria a total incompetência. Existia um código de ética entre os pastores, um código que ainda é válido até hoje naquela região. Este código rezava que o pastor tinha que trazer de volta pelo menos uma parte do animal morto, mesmo que para tanto tivesse que resgatar da boca da boca das feras a pele dessa ovelha. Ainda assim ia ter que muito que explicar e apresentar desculpas convincentes. Teria que trazer no próprio corpo os sinais da luta pela vida daquela ovelha. Ao final ele diria: Eu a perdi, mas a perdi lutando, porque eu amava aquela ovelha e perde-la foi um golpe muito duro, me magoou muito.

É bem certo que Jesus, num primeiro contato, no momento do chamado, fez uma metáfora aproveitando-se dos elementos que eram bem conhecidos por aquelas pessoas. Elementos que formaram a ponte da comunicação entre Jesus e os seus primeiros discípulos. Elementos de atração e conquista que nunca mais usou em seu ministério que foi intrinsecamente pastoral. Jesus queria formar um grupo de pessoas que interagissem entre si e com o mundo à sua volta. Pessoas que pregassem a necessidade de se estabelecer laços de afetividade e de cuidado. Para isso ele precisava cultivar as melhores características dos verdadeiros pastores de ovelhas, ao mesmo tempo em que profeticamente os advertia contra o vício dos falsos pastores de Israel, que mais pareciam pescadores vorazes. Cada vez mais as artimanhas, os ardis e as ciladas do pescador, que insistiam em se revelar dentro de cada um deles, tinham que ir ficando para trás, para dar lugar a uma nova visão da igreja, assim como de toda a criação de Deus.

Na pesca há uma relação impessoal, o pescador não sabe quem é o peixe, e por sua vez, o peixe jamais o vira mais gordo. Aliás, toda representação que já se fez de Pedro tenta passar que ele era um homem gordo. Já os pastores retratados, pelo menos daquela época, nunca são gordos, nem deveriam ser. Eles tinham que acompanhar as ovelhas desde o seu nascimento, ajudar nos primeiros passos, protegê-las a ponto de darem a sua vida por elas. Mais do que chamarem as ovelhas para perto de si, iam atrás delas, mesmo que para isso precisem expor-se a perigos e incertezas.

Infelizmente o que prevalece na igreja hoje é a ideia do pescador, principalmente nas igrejas televisivas em que os métodos de atração são infinitamente mais criativos do que as antigas e cansativas campanhas de evangelização. O vinde está ganhando de goleada sobre o ide. Mesmo nas igrejas tradicionais, o ministério que era exercido através da visitação e dos cultos ao ar livre, está desaparecendo para dar lugar aos ministérios das grandes concentrações. Eu conheci uma pessoa que tinha um irmão mais velho que era o típico patriarca da família. Esse irmão era tão gordo quanto acomodado. De vez em quando, ele mandava um recado para esse seu irmão, meu amigo: Walter, vem aqui em casa que eu quero te visitar. Parece que estamos vivendo o ministério do Pedro gordo, do Pedro pescador. O ministério do menor esforço, muito mais “vinde a mim”, do que “ide por todo mundo”. O ministério onde os ministros tem que ser procurados, tem que estar em lugar de destaque, tem haver condições favoráveis para eles atuarem, para num final apoteótico, mostrarem todo o seu poder de persuasão através dos seus milagres. Quando passo pelo Aterro e vejo essas concentrações milhões de pessoas em nome de uma denominação ou mesmo de uma pessoa, fico pensando como Paulo era simplório. Em suas orações pedia a Deus que lhe abrisse ao menos uma porta para que ele, Paulo, um dos maiores pregadores que o mundo conheceu, pudesse pregar o evangelho.

Eu fico imaginando como deve ter parecido estranho àqueles pescadores de peixe, desculpe a redundância, serem convocados, não mais para serem pescadores, mas para serem pastores. Parece que foi a diferença entre esses dois chamados que Jesus tentou ensinar a Simão Pedro naqueles últimos momentos à beira do mar da Galiléia. A diferença entre ser pescador e ser pastor. Uma diferença que a todo custo e urgentemente precisamos reaprender. A ordem deixada por Jesus nos evangelhos nunca foi a de atrair pessoas para a igreja, e sim de ir ao encontro delas onde quer que estivessem. O limite estabelecido não foi uma cidade ou um estado, mas os confins da Terra. O mandamento que Jesus deixou não nos diz para ficarmos em segurança atraindo peixes gordos, mas deixarmos tudo para trás para ir ao encontro das ovelhas, principalmente das que estão mais perdidas. A ideia mais próxima da realidade pastoral que Jesus nos passou foi justamente aquela da parábola em que o pastor larga tudo que era significativo na sua vida para ir atrás de uma ovelha que está perdida.

Jesus precisou insistir muito para ter certeza de que Pedro havia entendido qual era a ênfase do ministério pastoral, que agora ele, Pedro, passaria a assumir como apóstolo. Apascenta as minhas ovelhas! Apascenta as minhas ovelhas! Apascenta as minhas ovelhas!Nesta hora ele não somente repetiu o milagre do primeiro chamado, como também reafirmou a índole da vocação. Agora não mais para serem pescadores de homens, mas, seguindo a linhagem profética do antigo Israel, os chama para serem pastores de ovelhas. Jesus sabia muito bem que a mudança que estava exigindo era radical, porque existe uma diferença absurda entre as duas profissões. Uma diferença que, com certeza, vai direta e permanentemente refletir na natureza do chamado e no objetivo da missão. 

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