Os céus declaram (final)

Dilíuvio de Annibale Carraci (1560-1609)
Existe outra narrativa onde a nossa fé na soberania de Deus é testada. Recorrendo agora ao Primeiro Testamento, encontramos outro desabafo que se deu também em meio a uma grande tribulação. O salmo cento e trinta e sete, no verso um, pergunta: Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha? Este primeiro verso é apenas o início de uma sequência de juras de amor e maldições que
incitam o ódio e a vingança como única postura diante da situação a qual o salmista e seu povo se viam forçados a viver. Em uma das linhas mais infelizes da literatura bíblica, mais precisamente no verso nove, o salmista chega ao cúmulo de dizer: Bendito é aquele que pegar a cabeça das tuas criancinhas e esmagá-las com pedras. Nem mesmo o estilo de guerra mais horrendo da antiguidade, que era o anátema, consentia que o extermínio do derrotado acontecesse desta forma tão brutal. O que começou com um simples pedido de uma canção, resultou na mais bárbara expressão de ressentimento e ódio de toda a Bíblia.

Por mais que estas palavras nos incomodem, e por mais que a mensagem central do Cristianismo as desaprove, somos forçados a concluir que, em certos momentos, realmente fica quase impossível cantar o cântico do Senhor. Como cantar cântico do Senhor na terra estranha onde os magistrados deveriam ser levados aos tribunais para se sentarem na cadeira dos réus? Como cantar as maravilhas de Deus em meio à mortalidade e o abandono de crianças, que não morrem esmagadas por pedras porque a fome dá cabo delas? Como exaltar a soberania de Deus com músicas que enaltecem a criação, quando nós mesmos nos incumbimos de destruí-la? Como cantar o cântico do Senhor numa terra tão estranha? Eu não tenho respostas e peço perdão por levantar estas questões sem mostrar um final feliz. Talvez porque pela própria complexidade do tema um final feliz fosse uma solução simplista demais.

Apesar de tudo ainda me resta a esperança. Não falo de esperança baseado em visões, nem em interpretação de promessas, e menos ainda movido por qualquer revelação alucinatória. Minha esperança nem está no futuro, nas coisas que esperamos que um dia aconteçam. Ela está lá no passado, nas coisas que teimosamente, contra todas as expectativas, insistiram em acontecer. Quando me lembro da minha infância na igreja, lembro também de que cantávamos hinos de um passado não muito distante, cujos primeiros versos também se expressam na mesma linha de raciocínio do salmista. Um deles diz: Sou forasteiro aqui, em terra estranha estou. Mas as semelhanças pararam aqui, porque logo a seguir o hino muda radicalmente o desfecho encontrado no salmo e revela qual deve ser a verdadeira face da indignação. Em vez de lançar agouros e imprecações contra as raízes do mal, o hino simplesmente declara o único sentido válido da vocação profética: Embaixador por Deus do Reino lá dos céus, venho em serviço do meu Rei.

A partir daí, os questionamentos mudam. Em vez de me perguntar como posso cantar que os céus proclamam a glória de Deus nesta terra tão indiferente ao seu amor? Passo a perguntar qual é a razão da primavera florida para um mundo que caminha a passos largos para a extinção? Por que será que nos lugares mais inóspitos, como os lixões, onde não vemos qualquer possibilidade da regeneração da natureza, Deus faz brotar do lixo uma flor? É complicado entender como, por mais crueldade que se instale no mundo, Deus continue a nos enviar crianças. Por que será que ele ainda insiste em investir nós, em mandar as suas joias mais preciosas, as criaturas que lhe são mais caras, a este mundo no qual nós mesmos não depositamos qualquer confiança. O profeta denuncia como se fosse um ambientalista, fica tão indignado quanto o que mais padece do mal. Sente na pele a mesma intensa dor do afligido, mas acredita fielmente que nenhum mal, por maior que seja, tem em si o controle deste ou de qualquer outro universo. Richard Bach, autor de Fernão Capelo Gaivota, dizia: O que a lagarta chama de fim do mundo, o homem chama de borboleta. O que os apocalípticos chamam de juízo final, Jesus chamava de Banquete Messiânico. Para cristão convictos de que o final violento é inevitável, Deus o conclama a ser um embaixador. Para os que ainda creem que o mundo jaz no maligno, a Bíblia os desafia dizendo com com convicção que: O Reino desse mundo já passou a ser de nosso Senhor e de seu Cristo, e ele reinará para sempre.

Eu disse anteriormente que ia apresentar três textos, mas o bom senso pede que eu pare por aqui. Não é intenção do blog estragar o dia de ninguém. Mas é importante que se diga que esta insistência de Deus em investir no mundo e na humanidade, mais solidamente que a contemplação dos céus, venha a acrescentar mais questões às nossas dúvidas do que realmente respostas às nossas inquietações. Talvez a resposta não esteja na razão, muito menos no contexto. Talvez esteja a indignação do salmista transformada em poesia por Bilac. Talvez somente aquele que ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender as estrelas. Talvez somente aquele que tenha paixão pela criação de Deus encontre justa medida entre o êxtase diante da maravilha e a responsabilidade para com ela.

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