Inferno: agora ou nunca

Dante e Virgílio no Inferno
de William Bouguereau (1825-1905)
Por mais que eu fuja dos temas que a Bíblia aborda apenas superficialmente, mais pessoas aparecem para me questionar sobre eles. Sempre adotei o princípio de não me aprofundar em assuntos em que a Bíblia não se detém para explicá-los com clareza, e as citações sobre inferno talvez esteja entre aquelas que mais apresentem lacunas na sua concepção. Estaríamos nós diante de um caso clássico em que o texto bíblico não oferece elementos suficientes para elaboração de
uma doutrina? Aliado a isso, também não sou daqueles que fazem uso de estatísticas bíblicas para sustentar argumentos, porém, neste caso, vou me permitir fazê-lo. Não seria sintomático que esta palavra, na tradução para o português mais recente, em virtude disso, mais bem elaborada da Bíblia que é a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, esteja contida apenas dezessete vezes?

Como o meu estado de inquietação hoje está mais elevado que o normal, por conta desta situação vou abordar esse inquietante assunto sem a menor pretensão de ser conclusivo. Peço a sua atenção apenas este esboço mal alinhavado de pensamentos.

Em primeiro lugar não devemos nos deixar impressionar pela grande quantidade de pessoas sempre prontas a tirar conclusões precipitadas sobre esse assunto. A Bíblia nos adverte sobre o juízo precipitado e impiedoso sob pena de sermos também julgados pelos mesmos critérios. Se ela fala assim sobre juízos simples, quanto mais não seria temerário julgar sobre temas tão complexos que escapam a nossa capacidade como o do misterioso inferno? Lembremo-nos de que uma besteira repetida por 500.000 pessoas continua sendo uma besteira.

Em segundo lugar a doutrina da condenação irrevogável já está sendo revista em vários casos. A Igreja Católica hoje vê com olhos bem mais complacentes as pessoas que cometem suicídio, e o fez após analisar vários casos em que padres lançaram mão deste recurso para escapar de insuportáveis torturas, como foi oi caso recente de padres brasileiros torturados pela ditadura militar de 64. Essa e tantas outras doutrinas foram eficazmente combatidas por Martinho Lutero em 1517, quando instituiu a Reforma na Igreja Cristã. Para fins de julgamento, o uso da palavra inferno é totalmente inconcebível nestes casos. Muitos deles podem sem considerados mártires, porque preferiram encarar a morte antes de renegarem a sua fé.

Quando se fala sobre a questão do suicídio, invariavelmente é citada a grande quantidade de pessoas que nos países nórdicos lançam mão deste lamentável recurso. Mas que autoridade temos nós brasileiros para julgarmos estas pessoas que arbitrariamente tiram as suas vidas, quando vivemos em um país cuja mortalidade infantil atinge índices astronômicos; apenas os assassinatos que são registrados, são em maior número que qualquer guerra ou revolução mostrada pela TV; o trânsito faz mais vítimas que qualquer epidemia que assola a humanidade? Ainda que trágico, é melhor deliberar sobre a própria vida, do que, sem a possibilidade de escolha, morrer de bala perdida.

Deixando de lado as especulações e voltando para o que se pode extrair da Bíblia, podemos observar que se traduziram por inferno duas palavras, cujos sentidos não querem especificar lugar de tormento eterno. A palavra SHEOL, descrita no Primeiro Testamento como Lugar dos Mortos, é um lugar de isolamento total, não há consciência, portanto, não poderá haver dor ou castigo. Foi exatamente a este lugar que Jesus desceu para pregar aos que dormiam, assim diz o nosso Credo Apostólico. A outra palavra é GUEHENA ou Vale da Carnificina. Lugar que fica ao sul de Jerusalém onde se sacrificavam crianças (Jr 19.5-6). Nos tempos de Jesus não era mais que um depósito onde se jogava, além de lixo, animais mortos para serem incinerados. Um lugar onde o fogo ardia visível e constantemente. Em ambos os casos não há referências à punição, e muito menos à punição eterna.

Por mais intensidade e quantidade que a Bíblia nos apresente condenações sumárias, a pré disposição de Deus em perdoar e abençoar é sempre maior. Em um dos textos em que a condenação extrema é mais evidente, e justamente por isso um dos preferidos dos mestres nesta doutrina, diz que Deus visitaria a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que o aborrecem. Palavras colocadas na boca de Deus, que mais tarde seriam consideradas como não inspiradas pelos profetas, que a exemplo de Ezequiel assim profetizaram: A alma que pecar, essa morrerá; o filho não levará a iniquidade do pai, nem o pai, a iniquidade do filho; a justiça do justo ficará sobre ele, e a perversidade do perverso cairá sobre este. E quando queriam sem mais objetivos assim diziam: O Senhor me disse o seguinte: Por que será que na terra de Israel o povo vive repetindo o ditado que diz: “Os pais comeram uvas verdes, mas foram os dentes dos filhos que ficaram ásperos”? Juro pela minha vida — diz o Senhor Deus — que vocês nunca mais repetirão esse ditado em Israel. Pois a vida de todas as pessoas pertence a mim. Tanto a vida do pai quanto a vida do filho são minhas. A pessoa que pecar é que morrerá.

Contudo, mesmo nesta antiquada visão, Deus se apresenta mais pronto a perdoar do que efetivamente a condenar, porque que se mostra propenso a abençoar até mil gerações daqueles que o amam e guardam os seus mandamentos. Certo apóstolo dizia que Jesus veio para salvar os pecadores dos quais ele era o maior. Este foi um homicida frio e um implacável perseguidor da igreja, ou seja, alguém talhado para sofrer eternamente no inferno. Mas Deus na sua infinita misericórdia foi resgatá-lo para si superando a barreira do seu enorme pecado. Navalha de Occan é o princípio que diz que: Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor. Seria possível que qualquer postulado já escrito sobre a doutrina do inferno tem uma explicação mais simples do que: Onde abundou o pecado, superabundou a graça?

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Messias rival ou aliado fiel?

Degolação de João Batista, de Victor
Meirelles (1832-1903) M.B.A. - RJ
A pergunta de Zacarias no primeiro capítulo do evangelho de Lucas ainda ecoa nos dias de hoje sem que tenhamos uma resposta precisa: Que virá a ser, pois, este menino? O Evangelho de Lucas narra o nascimento de João Batista quase bem próximo do de Jesus. Já se perguntaram qual a finalidade disso? Por que Jesus diante de Moisés, Isaías e Jeremias, enaltece o Batista como o maior profeta nascido de mulher que já existiu? Que grande mistério rondou a sua infância, juventude, ministério e
morte? Através de um esforço concentrado vamos tentar buscar algumas pistas para estas respostas.

A Bíblia nos diz que João era filho de pais idosos, Zacarias, sacerdote e Isabel, descendente de uma família de sacerdotes. Maria, mãe de Jesus, era sua prima, este fato o coloca dentro da linhagem sacerdotal também, além da linhagem real, que ele já possuía. Diz também que ele viveu na mesma época que Jesus que foram bastante próximos na infância. Testifica que a primeira aproximação dos dois foi miraculosa. O primeiro encontro das grávidas dá a entender que João creu em Jesus, o filho de Deus, mesmo antes do seu nascimento. Assim como na vida de Jesus, existe uma lacuna entre a sua infância e seu surgimento como adulto. Mas qual era o papel de João Batista na Bíblia? Ficar à sombra de Jesus? Tinha realmente a intenção de preparar o caminho para o Messias? Ou era ser um messias rival?

Zacarias anunciou que seu filho precederia o Senhor; milhares de pessoas se reuniam para ouvi-lo no deserto pregando e profetizando; muitos tremiam diante de suas visões apocalípticas que falavam da chegada do fim do mundo e da vinda de um Messias; outros veriam nele a esperança para a libertação de um governo opressor; a própria Bíblia faz questão de retratá-lo como uma figura selvagem, de olhar intimista e acusador, portador de uma mensagem agitadora; na verdade ele era o tipo que não gostaríamos de encontrar numa noite escura. Como ele veio a se tornar esta pessoa? A resposta talvez esteja numa seita antiga que vivia reclusa no deserto naquela mesma época: os essênios. Talvez João tenha se tornado um deles. Esta afirmativa até bem pouco tempo era especulativa, mas com a descoberta dos pergaminhos do Mar Morto pode se constatar a grande similaridade entre a mensagem deles e a de João. Se João viveu entre eles, experimentou uma vida dura de jejuns, orações e banhos de purificação constantes. João adotou o batismo como sinal de purificação de pecados. Ele estendeu o ritual para fora das piscinas de imersão para o rio Jordão, ato que remetia à entrada dos hebreus na terra prometida. O rio veio mais significar uma passagem para a redenção, liberdade e salvação.
João encarnou o estilo dos grandes profetas do Antigo Testamento.

Sua mensagem era apocalíptica, desafiava tradições, falava da salvação para os pobres e anunciava o que Deus já estava fazendo no mundo. Da sua profecia, ninguém escapava. Aos sacerdotes do templo, chamou-os de raça de víboras. Disse que seu arrependimento apenas para escapar da ira vindoura e que eles tinham que transformar o coração. João não somente angariou simpatizantes à sua mensagem, como também um grupo fiel de seguidores que aumentava constantemente. Um dos que veio para ouvir a mensagem de João e ser por ele batizado foi um jovem de Nazaré que tinha o nome de Jesus. Uma das razões de Jesus ter deixado seu lar e seu trabalho, talvez tenha sido porque ouvira falar de um novo profeta que estava anunciando as novidades de Deus, não sabemos. Mas ao ser por ele batizado ouviu uma voz celestial que o proclamou Filho de Deus. Será que João e seus discípulos o reconheceram somente como Messias e não como o Filho de Deus segundo a voz? Em Mateus 3,14 existe uma pista para essa questão. O texto diz que além de João se subjugar a Jesus, reconhecendo sua superioridade, lhe foi também obediente, reconhecendo a sua autoridade. Mas ainda assim não deixa clara a resposta para si: Jesus era um Messias ou o Filho de Deus?

Ouvir dos evangelistas que João anunciava a vinda de um messias, e que este se configurou em essência no Filho de Deus é uma leitura às avessas. Uma vez que eles já conheciam o desfecho dos acontecimentos, dizer que João o anunciava como Messias é uma conclusão simplista. Mas não era esse o ministério de João. Ele veio para anunciar a vinda do próprio Deus. Voz do que clama no deserto; Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas. Pelo simples fato de João anunciar para breve a vinda de Deus ao mundo, muitos de seus adeptos pensaram ser ele o Messias. Se surgisse um elemento humano com características de um redentor de Israel, ele era imediatamente chamado de Messias, assim como Ciro, Bar Kochba e Judas Macabeus o foram. Mas o que tornou a vinda do Messias tão relevante na época? Política ou religião? A escravidão romana não era menos aviltante que as práticas pagãs no culto a Javé.

Jesus foi o primeiro a entender realmente João, e assim reconhecê-lo como o maior profeta da história. Tanto que colocou a si mesmo sob o seu controle. Após ser batizado por João, Jesus se vai levando consigo dois discípulos de João. João reconhece o papel único de Jesus no batismo, mas apesar disso ainda tem dúvidas a seu respeito. João não tinha muito claro quais eram os motivos e objetivos de Jesus. A mensagem de Jesus soou de forma estranha diante da expectativa que João, seus discípulos, os próprios discípulos de Jesus e todo o povo depositavam no Messias. O Messias viria restaurar o trono de Davi e com ele a prosperidade de Israel nos moldes antigos, mas Jesus falava de amar os inimigos e de orar por aqueles que os perseguiam. Mesmo questionado por João, Jesus continuaria a enaltecer a sua grandiosidade. O encontro resultou que ambos tomaram caminhos diferentes proferindo diferentes ênfases em suas mensagens. Por causa de suas insinuações políticas, a mensagem de João tornou-se cada vez mais ameaçadora para Herodes e para os romanos. A agitação social, a presença de um profeta e a expectativa de um Messias eram responsáveis pelo clima de insegurança política prevalecente. Os romanos já dominavam Israel há quase 100 anos, e as tentativas de rebelião eram constantes. Por tudo isso, Roma impunha um domínio cada vez mais duro sobre a província, e não era improvável que vissem João Batista como uma ameaça.

Uma análise superficial em sua mensagem leva-nos a crer que João visava principalmente às autoridades estabelecidas. Ele era uma figura popular e reverenciada, estivesse ou não condenando a soberania de Roma, pagou o preço por isso. Herodes mandou prendê-lo em seu palácio e a voz que clamava no deserto foi definitivamente calada. Seu ministério durou menos de dois anos. A morte violenta de João foi um recado a Jesus sobre o destino dos profetas. Jesus tinha pleno conhecimento desta realidade, e demonstrou isso quando disse: Jerusalém, Jerusalém, que mata os teus profetas e apedreja os que te foram enviados. Após sua morte, muitos de seus discípulos tornaram-se discípulos de Jesus, mas isso não significou que sua mensagem tenha desaparecido. Livro de Atos conta que Paulo encontrou um grupo de seguidores de João na Ásia Menor vinte e cinco anos após a sua morte. Uma seita que nunca ouvira falar de Jesus. Ainda assim a pregação de São Paulo não conseguiu converter todos os discípulos de João em discípulos de Jesus. Ainda hoje os mandeios, que datam a sua origem anterior a Jesus, praticam cerimônias de banhos de purificação no Iraque e Irã. Também são encontradas na Austrália e América do Norte. Não sendo muçulmanos ou cristãos, os mandeios veneram um profeta acima de todos os outros: João Batista. Repetindo seu batismo, confirmam seu compromisso com o antigo profeta do deserto.

João estava acima de todos os profetas da Bíblia. Foi onde Jesus quis deixá-lo. É impossível não valorizarmos a vida e a obra de João, o Batista. O Cristianismo encontrou no seu curtíssimo, porém, profícuo ministério, não somente a mais benéfica das influências, mas a inegável certeza de que o Reino de Deus está realmente próximo.


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Sou Deus, não homem

Arca da Aliança na Catedral de Sta Marie, França 
Deus não é um homem para mentir e nem filho de homem para se arrepender. Nm 23,19

Um dos absurdos mais combatidos pelas Escrituras e que está sendo bastante difundido entre nós hoje é o antropomorfismo de Deus. Desde sempre Deus teve a preocupação de, ao revelar-se, mostrar-se
diferente dos ídolos pagãos que nada mais eram que reproduções exatas do homem em seu estado mais natural. A antiguidade estava recheada de deuses ciumentos, coléricos, desconfiados, traiçoeiros e portadores de todas as mazelas inerentes à natureza humana. Mas Deus, quando se revela a Abraão, toma de imediato três medidas que fariam toda diferença no seu relacionamento com os humanos. Ele se apresenta sem imagem, sem efígie nem símbolo, não exige que se construa templos em seu nome, e que muito conta como ele, Abraão, trata o seu próximo.

Contudo, depois disso, pelo que se pode comprovar, muita coisa extrapolou este princípio básico. Sedes do poder de Deus cada vez maiores e mais suntuosas não cessaram de ser erigidas. Símbolos, marcas e amuletos não pararam de ser fabricados. O relacionamento com Deus há muito deixou de ser através do social, para tornar-se exclusivamente individual. Quanto aos templos e à perspectiva da salvação não há realmente muita novidade. A concepção de que a salvação é somente para a igreja, justifica o investimento cada vez maior no número e no tamanho dos templos. Se podemos notar alguma novidade, esta se deve à introdução de símbolos extraídos do Judaísmo tardio nas celebrações cúlticas de hoje. Está ficando cada vez mais difícil encontrar uma igreja que não tenha uma menorá, um shofar ou uma mezuzah. Não vou entrar no mérito dessa questão. Para isso recomendo que se procure na internet uma matéria de Nelson Menda chamada Costumes brasileiros “importados” do judaísmo. Está ficando difícil também subtrairmos o hebraico das nossas liturgias. Desconfio que meu velho pai, que era pastor, deve ter tido alguma dificuldade para entrar no céu, pois nunca entrou em uma shekinah, assim como também jamais orou a YHWH Tzevaot. Mas vamos nos esquecer destes detalhes e tentar extrair desta meditação algo produtivo.

O versículo acima, apesar de aparecer em um dos primeiros livros da Bíblia, é fruto de um pensamento teológico mais recente, e veio para combater, através do esclarecimento, muitas citações que encontramos na Bíblia. Citações estas que concluem que Deus possa ter mentido, errado em seu julgamento ou se arrependido. Ou seja, um antropomorfismo de Deus declarado na sua própria Palavra. Para esta finalidade poderíamos citar outros textos, mas penso que o de Jonas 3:10 é o mais incisivo deles. Viu Deus o que fizeram, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha dito lhes faria e não o fez. Algumas traduções dizem: Eu me arrependi do que disse que ia fazer. Mesmo que o texto fale de erro de julgamento e de não cumprimento da palavra, o que está em evidência nele é o fato de Deus ter se arrependido. É justamente aqui onde acontece o erro de julgamento, não de Deus. Pelo desconhecimento de sua Palavra o erro passa a ser nosso.

O hebraico possui duas palavras que foram para português igualmente traduzidas por arrependimento: LÊNAHÊM e LASHÚV. O verbo que deriva do radical LÊNAHÊM é geralmente utilizado quando o texto se refere à ação de Deus, e está diretamente relacionado à palavra grega METÁNOIA, que por sua vez significa mudança de pensamento ou de mente. No seu original quer dizer que a situação pesou no coração de Deus, e o LÊNAHÊM fez com que ele se inclinasse favoravelmente à causa humana, abdicando assim dos seus direitos que constavam na aliança previamente firmada. Quando o texto usa o LÊNAHÊM não está nem de longe querendo dizer que Deus fez um juízo prévio errado do qual veio mais tarde a se arrepender. Quer dizer sim que Deus, na sua Onipotência, se permite perdoar e se esquecer das tolices e delinquências que nós, seres humanos, estamos sempre repetindo.

O mesmo não acontece com a palavra LASHÚV, que está relacionada à palavra grega RAMATIA, ao pé da letra traduzida por errar o alvo. Muito mais do que um simples ato de arrependimento, LASHÚV diz respeito à degradação moral, a atitudes fora de propósito, ao total fracasso nas intenções. Quando o homem chega ao LASHÚV não lhe resta qualquer dignidade, é o que Jesus quis nos ensinar quando contou a parábola do filho pródigo, mais especificamente na hora em que ele cai em si. O LASHÚV é a sensação plena do pecado, da derrota e do fracasso. Quer dizer que quase sempre o homem se arrepende quando não lhe resta mais nada a considerar.

Podemos claramente observar que, se por um lado o arrependimento é injusto quando se refere a Deus, é por demais complacente quando se trata do ser humano. Por conta disso devemos pensar melhor quando fazemos qualquer juízo ou mesmo nos dirigimos a Deus com conceitos e palavras usadas no nosso cotidiano. Nesta hora é sempre bom que nos lembremos do profeta Oséias, que quando percebeu que seu povo estava confundindo esse relacionamento, inteiramente tomado por inspiração divina disse palavras que deveria se eternizar em nossas mentes e corações: Porque eu sou Deus e não homem. O santo no meio de vós

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Os céus declaram (final)

Dilíuvio de Annibale Carraci (1560-1609)
Existe outra narrativa onde a nossa fé na soberania de Deus é testada. Recorrendo agora ao Primeiro Testamento, encontramos outro desabafo que se deu também em meio a uma grande tribulação. O salmo cento e trinta e sete, no verso um, pergunta: Como cantaremos a canção do Senhor em terra estranha? Este primeiro verso é apenas o início de uma sequência de juras de amor e maldições que
incitam o ódio e a vingança como única postura diante da situação a qual o salmista e seu povo se viam forçados a viver. Em uma das linhas mais infelizes da literatura bíblica, mais precisamente no verso nove, o salmista chega ao cúmulo de dizer: Bendito é aquele que pegar a cabeça das tuas criancinhas e esmagá-las com pedras. Nem mesmo o estilo de guerra mais horrendo da antiguidade, que era o anátema, consentia que o extermínio do derrotado acontecesse desta forma tão brutal. O que começou com um simples pedido de uma canção, resultou na mais bárbara expressão de ressentimento e ódio de toda a Bíblia.

Por mais que estas palavras nos incomodem, e por mais que a mensagem central do Cristianismo as desaprove, somos forçados a concluir que, em certos momentos, realmente fica quase impossível cantar o cântico do Senhor. Como cantar cântico do Senhor na terra estranha onde os magistrados deveriam ser levados aos tribunais para se sentarem na cadeira dos réus? Como cantar as maravilhas de Deus em meio à mortalidade e o abandono de crianças, que não morrem esmagadas por pedras porque a fome dá cabo delas? Como exaltar a soberania de Deus com músicas que enaltecem a criação, quando nós mesmos nos incumbimos de destruí-la? Como cantar o cântico do Senhor numa terra tão estranha? Eu não tenho respostas e peço perdão por levantar estas questões sem mostrar um final feliz. Talvez porque pela própria complexidade do tema um final feliz fosse uma solução simplista demais.

Apesar de tudo ainda me resta a esperança. Não falo de esperança baseado em visões, nem em interpretação de promessas, e menos ainda movido por qualquer revelação alucinatória. Minha esperança nem está no futuro, nas coisas que esperamos que um dia aconteçam. Ela está lá no passado, nas coisas que teimosamente, contra todas as expectativas, insistiram em acontecer. Quando me lembro da minha infância na igreja, lembro também de que cantávamos hinos de um passado não muito distante, cujos primeiros versos também se expressam na mesma linha de raciocínio do salmista. Um deles diz: Sou forasteiro aqui, em terra estranha estou. Mas as semelhanças pararam aqui, porque logo a seguir o hino muda radicalmente o desfecho encontrado no salmo e revela qual deve ser a verdadeira face da indignação. Em vez de lançar agouros e imprecações contra as raízes do mal, o hino simplesmente declara o único sentido válido da vocação profética: Embaixador por Deus do Reino lá dos céus, venho em serviço do meu Rei.

A partir daí, os questionamentos mudam. Em vez de me perguntar como posso cantar que os céus proclamam a glória de Deus nesta terra tão indiferente ao seu amor? Passo a perguntar qual é a razão da primavera florida para um mundo que caminha a passos largos para a extinção? Por que será que nos lugares mais inóspitos, como os lixões, onde não vemos qualquer possibilidade da regeneração da natureza, Deus faz brotar do lixo uma flor? É complicado entender como, por mais crueldade que se instale no mundo, Deus continue a nos enviar crianças. Por que será que ele ainda insiste em investir nós, em mandar as suas joias mais preciosas, as criaturas que lhe são mais caras, a este mundo no qual nós mesmos não depositamos qualquer confiança. O profeta denuncia como se fosse um ambientalista, fica tão indignado quanto o que mais padece do mal. Sente na pele a mesma intensa dor do afligido, mas acredita fielmente que nenhum mal, por maior que seja, tem em si o controle deste ou de qualquer outro universo. Richard Bach, autor de Fernão Capelo Gaivota, dizia: O que a lagarta chama de fim do mundo, o homem chama de borboleta. O que os apocalípticos chamam de juízo final, Jesus chamava de Banquete Messiânico. Para cristão convictos de que o final violento é inevitável, Deus o conclama a ser um embaixador. Para os que ainda creem que o mundo jaz no maligno, a Bíblia os desafia dizendo com com convicção que: O Reino desse mundo já passou a ser de nosso Senhor e de seu Cristo, e ele reinará para sempre.

Eu disse anteriormente que ia apresentar três textos, mas o bom senso pede que eu pare por aqui. Não é intenção do blog estragar o dia de ninguém. Mas é importante que se diga que esta insistência de Deus em investir no mundo e na humanidade, mais solidamente que a contemplação dos céus, venha a acrescentar mais questões às nossas dúvidas do que realmente respostas às nossas inquietações. Talvez a resposta não esteja na razão, muito menos no contexto. Talvez esteja a indignação do salmista transformada em poesia por Bilac. Talvez somente aquele que ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender as estrelas. Talvez somente aquele que tenha paixão pela criação de Deus encontre justa medida entre o êxtase diante da maravilha e a responsabilidade para com ela.

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Os céus declaram

Visões de Ezequiel, Raffaello (1483-1520) 
O salmo dezenove, nos versículos de um a seis, afirma com indubitável vocação poética que a universalidade da ação de Deus e o seu cuidado para com a criação podem ser percebidos apenas pela simples observação do universo. O poeta brasileiro Olavo Bilac, em minha opinião, inspirado pelo salmista, consegue acrescentar ainda mais poesia à beleza do Salmo quando diz que o dom de reconhecer Deus na criação é dado preferencialmente às pessoas que tem capacidade de
amar: Pois só quem ama tem ouvidos capaz de ouvir e de entender estrelas.  

Quando o ensaio desta meditação começa afirmando que o texto transcende o contexto, não o faz fundamentado em antigos alicerces da fé, mas meramente interpretação das palavras de David, aí reconhecido como autor deste Salmo 19 e que acreditava que a terra era o centro inabalável do universo, em contrapartida aos versos de Bilac, que a via como um obscuro ponto na imensidão do cosmos. Ou seja, nem mesmo pressupostos tão antagônicos conseguiram modificar o foco da mensagem de ambos, que em última análise quer dizer: Os céus não se cansam de proclamar o amor de Deus. Esta foi uma conclusão rapidamente assimilada pelas três maiores religiões existentes: o Islamismo, o Judaísmo e em nosso caso particular, o Cristianismo. Isto é, por dois terços da população mundial. Hoje estimasse que 4,7 bilhões de pessoas professam, confessam e acreditam que realmente existe uma linguagem inaudível que afirma que a soberania de Deus pode ser percebida nos astros e nas estrelas.

Recentemente um astrônomo, embevecido pela grandeza do cosmos, afirmou: O universo não é maior do que nós pensamos, ele é maior do que possamos vir a pensar. Sobrepondo-se a este pressuposto da ciência, a igreja cantava um hino, infelizmente não canta mais, que vem reafirmar a grandeza de Deus acima da descoberta de proporções inimagináveis do astrônomo. Se nos cega o sol ardente, quando visto em seu fulgor. Quem contemplará aquele que do sol é criador?  É muito bom que todo aquele que professa a sua fé na inominável grandeza de seu Deus pensasse desta maneira, mas seria ainda melhor se cada um deles agisse e orientasse a sua vida segundo a fé na universalidade da soberania de Deus. Mas também, seria de se esperar que as palavras que formam a base das doutrinas e regras de fé de cada uma dessas religiões narrassem tão somente situações que corroborassem diretamente para a confirmação desta maravilhosa descoberta. Mas nem sempre é assim, e eu gostaria de em rápidas palavras comentar três situações em que o nosso texto sagrado nega ou não toma conhecimento da mensagem dos céus.

Primeiramente vou pedir que vocês se lembrassem do desabafo que João, o evangelista, faz na sua primeira carta. Em meio à grande tribulação imposta pelos romanos à igreja nascente João afirma: O mundo jaz no maligno. Infelizmente este desabafo não foi interpretado levando-se em conta o momento de dificuldade extrema que estava vivendo a congregação dirigida pelo apóstolo, e não ficou restrito apenas àquele momento de provação da fé. Não se manteve exclusivo aos infortúnios daquele servo de Deus. Este também é o desabafo que mais ouvimos quando tomamos conhecimento através dos jornais da crescente escalada da violência, que mais do que em qualquer tempo antes desse, abala os pilares da fé. Decorridos dois mil anos, estamos cada vez mais tentados a acreditar que o mundo realmente jaz no maligno.

Em face do exposto, ficam no ar as perguntas: Então onde está firmada a nossa fé: Na teologia que diz que Deus criou o mundo em seis dias e depois descansou? Onde ele organizou o universo, deu bastante corda, ou falando modernamente, colocou uma bateria inesgotável e o abandonou à própria sorte? No tempo que Deus permite que o mal se supere e venha a tomar as suas rédeas da sua criação? Como são tão diversas as respostas a esta pergunta, quem sabe devêssemos reunir um concílio mundial de igrejas cristãs para termos consenso pelo menos no que diz respeito a esta questão. Precisamos decidir urgentemente quem é o chefe. No final das contas, de quem é a mão que segura o controle neste exato momento?

Nada disso é novo ou está restrito apenas ao nosso tempo. Quando o anúncio da chegada do Reino de Deus ainda era recebido com alegria, Jesus pôs um freio na euforia daqueles que o seguiam visando somente os benefícios dos seus milagres, mandando que estes observassem o que estava por trás dos milagres: o anúncio de um novo tempo. Mais tarde, em um momento de aparente paz e segurança, retomando o tema, ele disse aos discípulos mais chegados, ou seja, àqueles que podiam suportar a verdade: No mundo tereis aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo. Ao dizer isso de forma simples e sem maiores explicações, embora tenha acendido um facho de esperança para aqueles que sofriam perseguições, Jesus confundiu mais ainda as pessoas que ainda insistiam em perceber o Reino de Deus apenas através das bênçãos e dos milagres. Para estes últimos, a lógica extraída do nosso contexto em relação ao texto bíblico diz assim: Se Jesus venceu o mundo, eu também vencerei. Na verdade a maioria dos cristãos de hoje vive debaixo dessa estranha combinação de resultados: Ainda que seja visível que mundo jaz no maligno, ele possui a promessa de há de vencer o mundo também.

Deixando de lado a autossuficiência da fé, retornemos à criação que, embora a visse como mais uma das fantásticas obras de seu Pai, Jesus não a considerava acabada. O meu Pai trabalha até agora, e eu também trabalho. Pode parecer realmente que o mundo jaz no maligno. Pode parecer que fatos trágicos assinalem o crescimento do mal no mundo, negando, inclusive, a visão poética, tanto do salmista da Bíblia, quanto a do nosso literata recente. Mas são resquícios de uma realidade que Jesus já considerava extinta. Sem tirarmos mais conclusões, veremos a seguir os outros textos que acompanham este mesmo raciocínio. Mas isto faremos amanhã, se Deus permitir.

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Morte, ressurreição e vida

A ressurreição com a ressurreição da
filha de Jairo, de Spencer (1891-1959)
  


At 9.36-42
Antes de tudo quero declarar a minha total ignorância sobre o assunto ressurreição. Não me refiro à ressurreição de Cristo, a própria Bíblia dá algumas informações do que vem a ser a transformação de um corpo mortal em um corpo
glorificado. Mesmo sem ter a compreensão exata, podemos, pela fé, acrescentar algumas peças ao quebra cabeças, e termos uma visão bastante satisfatória daquilo que é um dos pilares do Cristianismo. Eu quero me referir especificamente ao tipo de ressurreição que o texto de Atos dos Apóstolos nos apresenta, e que é a base da nossa reflexão.

O que entendemos ser a volta de um morto à vida? Além do texto que descreve a ressurreição de Dorcas, o Segundo Testamento traz mais três narrativas sobre o mesmo assunto: A ressurreição da filha de Jairo, a do filho da viúva de Naim e a mais conhecida das quatro, a ressurreição de Lázaro. A minha mente científica não consegue alcançar os detalhes destes milagres em si, e há muito já desisti de tentar entender o processo. Mas o que ainda me incomoda é a situação daquele que volta à vida. Como alguém que transpôs a barreira da morte se sente ao estar de volta entre os vivos? Como as pessoas à sua volta lidam com isso? Como seria para ele encarar a sua segunda morte, uma vez que todas estas pessoas, logicamente, voltaram a morrer?

Declarado aquilo que não sei, partamos agora para o que conseguiu extrair dos textos e compartilhar com vocês. A primeira lição que podemos tirar após examinar cada um destes textos é: Deus valoriza a vida em cada um dos seus estágios. Ao contrário de nós, que nos indignamos sempre mais com a morte de uma criança do que de uma pessoa de idade, na Bíblia, a ressurreição se dá em qualquer idade. Vemos a ressurreição de uma criança, como é o caso da filha de Jairo, de um jovem filho da viúva de Naim, de Dorcas, uma mulher de meia idade, e de um homem de idade avançada, como Lázaro. Isso mostra o quanto para Deus toda a duração da vida é importante, e o quanto cada uma de suas fases deve ser valorizada. Uma infância feliz que leve à boa capacitação na juventude, que por sua vez forme um adulto ativo e produtivo, tudo isso para coroar aquilo que Jesus chamou de vida abundante. Uma vida plena em dias e realizações. Diante de tão grandes evidências não há porque imaginarmos que a ressurreição da menina Talita tenha sido de maior valor que a de Lázaro, já idoso. A verdade é que, como para todo pai e toda mãe, para Deus não passamos de um grande bando de crianças, pelas quais possui uma paixão tão grande que beira os limites da loucura.

Mas há também um segundo aspecto importante na ressurreição: A compaixão. A narrativa da ressurreição do filho da viúva de Naim nos diz que Jesus moveu-se de íntima compaixão por ela, e disse-lhe: Não chores. O mesmo não aconteceu na morte de Lázaro, quando é ele quem chora. Se para uma desconhecida a compaixão se expressou na forma de um abraço afetuoso, para a família de amigos íntimos, esta mesma compaixão se mostrou através da condolência, ou seja, sentindo a mesma dor.

É sempre bom nos lembrarmos de que os orientais não consideram o coração a sede de suas emoções. Para eles, estão sediadas na região do abdômen. A compaixão de Jesus fora tamanha que suas entranhas se reviraram. Houve uma completa disfunção no organismo de Jesus ao presenciar aquela cena de dor e separação. Foi exatamente onde a ressurreição começou a acontecer. Na atitude extender o braço amigo, de compadecer-se, de importar-se, de colocar-se no lugar do outro. De deixar que o que sofre ocupe o lugar que anteriormente estava ocupado pelo meu ego. A ressurreição começa a acontecer quando cada um se propõe a sentir a dor alheia come se fosse a sua própria. Sem o elemento compaixão não há nem nunca poderá haver ressurreição.

Mas ainda existe um terceiro elemento para que haja ressurreição. Só pode haver ressurreição onde há solidariedade. O texto que fala sobre Dorcas nos faz entender que toda a cidade se mobilizou inconformada com a morte daquela mulher. Como não iam se comover com a partida daquela que para eles era o próprio exemplo de solidariedade. Lucas diz que as mulheres mostravam a Pedro as túnicas e vestidos que ela fazia, e distribuía entre os carentes. Faziam absoluta questão de expor a sua extensa folha de serviços. No caso da filha de Jairo, existe toda uma inquietação por parte dos vizinhos, parentes e amigos questionando o porquê da criança ter morrido. Diz-nos o texto de Marcos que Jesus ficou atento ao alvoroço dos que choravam e pranteavam a morte da menina. Quanto ao jovem filho da viúva de Naim, o próprio povo acompanhava o enterro para fora dos portões da cidade. As pessoas deixavam os seus afazeres, a quietude dos seus lares para serem solidários àquela viúva que perdera aquele que talvez fosse o seu único laço familiar afetivo e, muito provavelmente a sua única forma de sobrevivência.

Podemos perceber nestas passagens que a solidariedade está, não somente presente, mas consolidando decisivamente o milagre da ressurreição. É na solidariedade das pessoas que a ressurreição encontra o terreno fértil que necessita para se fazer real. Uma das cenas mais chocantes dos últimos tempos foi o sepultamento do assassino das crianças de Realengo. As fotos nos jornais mostravam um caixão abandonado no meio do pátio vazio do cemitério. Um enterro que os amigos não estiveram presentes, que não foi lamentado, não foi pranteado e que não contou com qualquer solidariedade. O típico exemplo de morte sem qualquer possibilidade de ressurreição. Pelo menos do tipo de ressurreição que estamos falando.

Não é à toa que os textos que falam da ressurreição de pessoas são os de maior apelo na Bíblia. Neles que descobrimos o quanto a vida é de fato preciosa. Uma das marcas mais expressivas da plenitude do Reino de Deus é justamente a morte da própria morte. A única morte que ansiosamente devemos esperar. Enquanto esta não acontece, e quando não pudermos fazer absolutamente nada para evitá-la, é nosso dever minimizar os seus efeitos. Ainda que não consigamos realizá-la de forma concreta, estamos obrigados a promover a ressurreição através dos gestos de carinho, de compaixão e de solidariedade. Assim fazendo estaremos trazendo para perto de nós a promessa mais estranha que fez Jesus Cristo. Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a minha palavra, não provará a morte, eternamente.

A ressurreição com a ressurreição da filha de Jairo, de Spencer (1891-1959)

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Vontade de Deus

Timóteo e sua avó Loide, de Rembrandt 
Isto é bom e aceitável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade.1Tm 2

Se há um elemento na vontade de Deus sobre o qual Paulo fez questão se não deixar dúvida é o desejo divino de que a salvação seja universal. Mas este importante elemento mostra apenas o ponto de vista de Deus nessa doutrina com a qual a todo instante nos deparamos nas suas
diversas e contraditórias explanações. A diversificação denominacional do cristianismo faz com que esta vontade se apresente ao mundo de várias formas e ênfases. Uma coisa, porém, nenhum conceito sobre essa doutrina pode alterar: a vontade de Deus coincide com o seu plano. E foi analisando a mensagem dos profetas, a vida e o ministério de Jesus que Paulo chegou a essa conclusão: Deus realmente não quer que nenhum dos seus filhos se perca.

Tudo o que Deus fez desde a criação está coordenado por um plano, e não por tentativas, erros e acertos. Einstein dizia: Deus não joga dados. Isso quer dizer que Deus não arriscou a sorte em alguns patriarcas, não apostou em reis e nem levou fé na capacidade de alguns profetas com o intuito de nos salvar de qualquer forma. Indistintamente todos os enviados faziam parte de um plano que, embora ainda não esteja consolidado, culminou com o envio de seu Filho ao mundo. Mas ainda que este plano seja universal, ele adquire aspectos particulares, e é exatamente por isso que constantemente oramos: Seja feita a tua vontade, com a intenção de conhecermos qual é a vontade de Deus para a nossa vida.

Eu sei que Deus quer que todas as pessoas sejam salvas, mas onde me encaixo nesse plano? Além dos mandamentos, temos uma Bíblia inteira a nos falar qual é a vontade de Deus para o indivíduo em diversas situações que se apresentam. Mas Deus também quer que, sem negarmos esse ensino, nos empenhemos para conhecer a sua vontade em situações inusitadas, que não somente exige respostas constantes, como também abre um diálogo permanente. Uma vez que a vontade de Deus se resume em atitudes, para cada uma delas esboçamos um questionamento. Paulo dizia que embora tivesse conseguido algum progresso em favor desta vontade, ainda estava longe do que deveria alcançar, deixando claro que o alvo é sempre a superação de si mesmo.

Quando o pastor presbiteriano, rev. Haroldo Cook, completou cem anos, celebrou-se um culto em que a sua trajetória de setenta anos de ministério ativo foi enaltecida. A justa homenagem estendeu-se a pastores de outras denominações, que da mesma forma não pouparam elogios ao incansável missionário inglês em nossas terras. Quando ao fim do culto deram-lhe a palavra, com um tom bastante indignado, disse somente: Cook é nada, nada, nada. Jesus Cristo é tudo, tudo, tudo. Aos cem anos o rev. Cook se deparou com a sua própria insatisfação. Após setenta anos no pastorado não havia chegado a lugar algum. Ele realmente gostaria que tudo o que havia sido dito a seu respeito, fosse a realidade que os seus olhos enxergavam, mas o seu compromisso para com a vontade de Deus somente permitia que visse o quanto ainda faltava para alcançá-la, algo bem diferente do que todos ali viam.

Ainda que exigente, a vontade de Deus vai ao encontro da vontade do homem sem querer suplantá-la, mas para torná-la perfeita. Em pelo menos duas circunstâncias podemos percebê-la.

No curso da História, através de situações inexplicáveis até hoje.
Como de um único homem, nascido no mais ferrenho politeísmo, deu início a mais fantástica experiência de fé vivida por um povo inteiro?
Como os escravos hebreus saíram caminhando livres do Egito, a maior potência mundial da época, sem resistência?
Como é que a fé em um judeu nascido em um obscuro recanto propagou a maior revolução de todos os tempos?
Como homens e mulheres escondidos em fétidas catacumbas fizeram ruir o poderoso império acima deles?
Poderíamos ficar perguntando indefinidamente os como e os porquês, mas o fundamento seria um só: Nenhum dos desígnios de Deus pode ser frustrado.

Ainda conseguiu descobrir uma segunda circunstância: a reflexão inspirada.
A aceitação submissa da vontade de Deus não exige a anulação do intelecto, mas uma fé inquestionável na sua justiça. Sabemos que nenhuma mente humana pode compreender por inteiro esta vontade, daí a necessidade da inspiração divina. Curiosamente a primeira coisa que a mente inspirada percebe é a grande distância entre a sabedoria humana e a divina. Em suma: A inteligência do homem não é suficiente para entender a vontade de Deus, mas a inspiração divina lhe abre os olhos para este desafio. Para Wesley, agir conforme a mente de Cristo era ter uma palavra apropriada ao momento, e não a repetição de conhecidos chavões. Não deixar-se levar pela opinião pública nem pelas evidências, porque a isto Paulo chamou de tradição dos homens e rudimentos do mundo.

Mas a vontade de Deus se depara constantemente com o pecado do homem. Ainda que endurecido, este coração continua sendo alvo da sua vontade. Deus está sempre pronto a perdoar o pecador e a livrá-lo de muitas das consequências do seu erro. A mensagem profética, por mais dura que fosse, sempre abria uma rota de fuga, não tanto pelo esforço humano em proceder tal mudança, mas pelos novos atributos que o próprio Deus lhe concedia. Jeremias 29,11 a 13 resume de forma objetiva e irretocável esta iniciativa, que está de forma irrestrita ligada à vontade de Deus expressa na carta que Paulo escreveu a Timóteo: Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito, diz o Senhor; pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais.  Então, me invocareis, passareis a orar a mim, e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração.

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Minha é a vingança

Ruínas sobre o monte Megido
Amaldiçoa a Deus e morre. Jó 2,9

Através de uma incomum postura blasfema a mulher de Jó tentava desesperadamente por um basta ao sofrimento infindável de seu marido. Com estas palavras, denominadas pelos teólogos contemporâneos de eutanásia teológica, ela expressou o que havia de mais oculto e mais tenebroso no relacionamento que os antigos mantinham com seus deuses. A ideia de que havia uma permanente ameaçadora vigília sobre qualquer ofensa dirigida ao ser divino, e que tal ofensa seria punida com a morte imediata, era mais que consensual. O mínimo que se podia esperar de
um deus, era que agisse como tal: por um lado castigando seus adversários com horrendas maldições, por outro premiando seus adoradores com as mais copiosas bênçãos. Esta também era a palavra de ordem que os líderes religiosos, fossem eles sacerdotes, profetas, xamãs ou magos se utilizavam para exigir sacrifícios e oferendas. Um deus não poderia suportar qualquer palavra ou ação que contestasse a sua origem divina, o que, depois de rescaldado todo o antropomorfismo, era a única coisa que lhe restava.

O cerne da pregação do maior de todos os profetas bíblicos, segundo Jesus, era basicamente este: “Arrependei-vos porque o machado já está à raiz da árvore. Aquele que não produzir bons frutos será arrancado e jogado ao fogo”. João, o batista, desta forma não somente sintetizava a sua mensagem profética, como também delimitava um curtíssimo tempo para o seu cumprimento. A contundência e abrangência de tais palavras provocaram um estado de pânico geral entre o povo e uma profunda preocupação das autoridades, principalmente de Herodes, que viria a ser o principal alvo da condenação do profeta.

Todo o desenrolar desta acirrada contenda mereceria um capítulo à parte, mas o que realmente importa para a nossa reflexão é que o portador da palavra de Deus, fato que próprio Jesus tão bem atestara, fora silenciado, sentenciado e executado por aquele sobre quem mais pesadamente recaia o seu julgamento. Segundo o melhor conceito da época, o que mais se podia esperar de Deus, senão que violenta e prontamente vingasse a morte do seu profeta? Mas os dias foram se passando e todos os que com expectativa aguardavam a inevitável ira vindoura se decepcionaram tremendamente. Contra o adúltero, incestuoso, homicida e profano Herodes, Deus não fez nada. Como poderiam os primeiros cristãos e todos os seguidores do profeta, dali para frente, assimilar e administrar tamanho paradoxo? Deus enviara não apenas mais um profeta, mas fez questão de enviar o maior entre todos os nascidos de mulher para anunciar que o seu Reino de justiça, verdade e amor era chegado. Esta novidade assombrou de tal forma João Batista, que o fez levá-la ao extremo de ameaçar a quem não aderisse a ela sincera e integralmente com flagelos inimagináveis; e vem um iníquo com violência, ódio e mentira e põe fim a este aguardado mistério.

Minha é a vingança, disse Paulo citando o antigo texto de Deuteronômio, para nos ensinar que, quando Deus chamou exclusivamente para si esta prerrogativa, estabeleceu o se e o como aplicá-la. Jesus já havia deixado bem claro que Deus não estabeleceria o seu Reino sobre o cadáver dos inimigos ou vingando-se dos que praticam a iniquidade. Deixou bastante explicito, através do seu modo agir, que abriria mão de tudo, inclusive da afirmação da sua divindade, em favor de ver o Reino de seu Pai tornar-se pleno. Paulo quando escreveu aos filipenses fez uso de um hino muito conhecido pela igreja para sepultar de vez toda a expectativa da ira vindoura sobre os inimigos. Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz.

Não cabe a mim fazer ponderações sobre o plano de Deus, mas não tem como não ver que desta forma tudo fica mais difícil. Sou obrigado a reconhecer que a eutanásia teológica dava aos sacerdotes de então um poder de persuasão que lhes conferia relativo sucesso. Sucesso que nos dias de hoje, devido à diversificação da superstição, não seria tão relativo assim. Seria a hora de nos perguntarmos se não é exatamente por isso que as igrejas estão repletas? Não é deste modo que o evangelismo televisivo está ganhando a cada dia mais canais e mais espaço na mídia?

Hoje se comemora o dia de São Jorge, sendo que na cidade do Rio de Janeiro comemora-se mais ainda, pois é feriado municipal. Uma data que evoca no coração dos fiéis ao santo, que também lotarão igrejas, a mais plena convicção de que o mal está prestes a ser vencido, e que um guerreiro poderoso e bem armado estará à frente desta expressiva vitória. E é aqui que o evangelho complica todo o ministério cristão. Como dizer para essa gente que, apesar de estar vivo e atuante esse mal já foi vencido. Que foi vencido não por um guerreiro com poder para matar, mas por um cordeiro que se entregou voluntariamente à morte? Com que palavras dizer que o mal foi vencido, não pelo poder, mas sim pelo amor?

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Palavra de Deus

Inspiração profética de
Benjamin West |(1832-1920)

Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá não tornam, sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará
para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei. Isaías 55,10-11

O blog Amós Boiadeiro estará editando depois de amanhã a sua centésima postagem. Desde já agradeço a todos os leitores e leitoras que são a razão segunda desta empreitada que se mantém por oitenta dias, com mensagens diárias ininterruptas. Para celebrar este acontecimento vamos tentar, a partir de agora, introduzir também, além do texto, mensagens gravadas com som e imagem, o que na linguagem da internet chamam de podcast. Mesmo nesta nova fase, o blog tentará o máximo possível ser fiel ao princípio para o qual foi criado: Pregar exclusivamente a Palavra de Deus, e este é o único motivo que supera a minha alegria pela atenção e carinho de vocês, através dos quase cinco mil acesso as que tivemos durante este período.

Diferentemente dos ídolos mudos, devidamente satirizados na Bíblia, o Deus que se revelou a Abraão fala aos homens. Mais do que uma simples vocalização audível, a Palavra de Deus é viva, algo que age concretamente na transformação de consciências e circunstâncias. Mais influente ainda do que uma excelente filosofia de vida, a Palavra se fez carne e habitou entre nós. Acentuadamente contrastante na época do profetismo bíblico, foi o fator que determinou a preservação de um povo, justamente o povo para quem ela foi dirigida em primeiro lugar. Enquanto as grandes potências mundiais da antiguidade deixaram atrás de si nada mais que ruínas, este povo legou a humanidade a sua maior regra de ética e de moral. Foi ao redor das fogueiras nas frias noites do semiárido oriental, que ela começou a ser transmitida de geração após geração, impondo-se sobre todos os ritos de mistério e todas as manifestações supersticiosas, para chegar até nós íntegra e fiel.

A Palavra de Deus não sofre a ação do tempo. Embora ela tenha sido propagada em uma época, local e situação específicas de um passado distante, ela em nada se assemelha ao Conto das mil e uma noites, porque ela fala de um mundo real, para pessoas também reais. O segredo da sua atualidade não provém de algo mágico ou mesmo sobrenatural, pelo contrário. Ante a sua presença até mesmo o sobrenatural se dobra, fazendo com que simples trechos sejam os motores de grandes transformações. Esta Palavra sempre soube muito bem, que fosse qual fosse o avanço tecnológico a que estivessem submissos, os homens e mulheres ainda continuariam a chorar a perda dos seus filhos como fez Davi, e a ficar deprimidos com traições e injustiças como foi o caso de Jeremias.

Estranhamente distante dos grandes reboliços da humanidade, a Palavra de Deus tende a se revelar no cotidiano, sempre acrescentando uma novidade surpreendente àquilo que julgávamos imutável. Sem, com isso, tentar impedir que os avanços alcançados pela ciência sigam o seu curso natural. Certa vez alguns membros procuraram o seu pastor, já velho, para que ele pregasse contra o uso de calças compridas pelas mulheres na igreja, coisa que no começo dos anos de 1960 era realmente inovador. O velho pastor propôs-lhes o seguinte trato: Se a cada dia que ele abrisse a sua Bíblia e não lhe fosse revelado algo novo e mais importante do que pregar sobre usos e costumes, ele faria o tal sermão solicitado, fecharia a sua Bíblia, e nunca pregaria o evangelho. O que jamais foi fato, posto que este pastor morreu com mais de noventa anos, na noite de um dia em que havia pregado o evangelho.

Abdicando de ser um espetáculo pirotécnico, a Palavra de Deus busca preferencialmente agir no silêncio da mente e do coração. O profeta Elias passou por uma experiência marcante de decisiva para todo o profetismo desde então. Quando fugitivo de uma rainha que queria matá-lo, oculto em gruta viu todos os grandes fenômenos da natureza desfilaram à sua frente: Um tempestuoso vento que rachava montes e fendia pedras, depois do vento um terrível terremoto, e depois do terremoto um incêndio devastador. Mas ele não ouviu a voz de Deus em qualquer desses elementos. Ouviu a sua Palavra apenas em uma brisa suave que sussurrava aos ouvidos. Deus estava lhe dizendo: Elias, se você quer ser meu profeta não vai fazer cair fogo do céu, nem provocar tempestades ou terremotos com as suas orações. Você falar a minha Palavra ao coração das pessoas. É dentro deles que se abrigam os grandes e indescritíveis temporais e que se alastram os incontroláveis incêndios.

John Wesley a pregou esta Palavra por mais de quarenta mil vezes. Contudo, mesmo os sermões que eram repetidos por mais de uma vez, recebiam adequadamente elementos novos, para que servissem aos fins próprios da comunidade a quem pregava. Quanto mais pregava, tanto maior era a sua certeza de que realmente esta palavra nunca voltava para Deus vazia. O escritor da Carta aos Hebreus não somente confirmou a experiência de Wesley, como também conseguiu definir em uma única frase qual deve ser o nosso comportamento diante desta Palavra: Ai de nós se negligenciarmos tão grande salvação. Que Deus abençoe a todos nós.

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Quarteto sinistro III

Pedro e Paulo confrontam Simão, o mago,
afresco de Filippino Lippi (1406-1469)
O Salmo ainda é o 91

Como é ruim viver sob o signo do medo. As pessoas do morro do Alemão e da Rocinha estão experimentando uma pálida sensação de liberdade depois que os traficantes foram expulsos. Por alguns depoimentos que ouvi, não me pareceu que todos a aceitaram muito bem, pois estão ainda dependentes de algumas das facilidades
que o tráfico oferecia. Contudo, muitas outras comunidades que ainda não foram pacificadas e que ainda vivem oprimidas pelo poder paralelo, seja do tráfico ou das milícias, desejam intensamente este bem para si. Era mais ou menos assim que funcionava o profetismo naqueles tempos. Quando os profetas anunciavam a vontade de Deus, o povo de Israel não dava muita atenção, mas os povos vizinhos ficavam sonhando o quanto seria bom se os seus deuses pudessem ser garantia contra essas coisas. Imaginem o povo árabes ouvindo isso: Agora vocês podem descansar em paz. Nuncamais precisarão gastar com armamentos para a guerra, a partir desse momento fica estabelecido o fim da miséria, ninguém mais precisará recorrer ao terrorismo, não haverá mais fome e todas as epidemias serão erradicadas sumariamente.

Mas não é justamente essa a proposta de Deus em Cristo, uma vida plena e sem temor do desconhecido? Agora, não mais uma promessa individual ou para um grupo isolado. Agora as promessas são para toda a criatura. O versículo mais conhecido da Bíblia diz que Deus amou o mundo, não à igreja ou os cristãos. Jesus, enquanto esteve na terra, mostrou certa preocupação com a igreja, porque ela ainda era pequena, frágil, incipiente. O Cristianismo de hoje não está mais ameaçado, a não ser por ele mesmo. Pelo contrário, é uma potência bem ameaçadora. Talvez seja por isso que tenha criado um universo paralelo onde se imagina ser o único objeto do amor de Deus, e por isso odeia tanto, discrimina tanto. É por isso que pede tanto para que Jesus volte, para que venha buscar a igreja e queimar os demais. Já observaram que para muitos muçulmanos o espanto noturno somos nós, o mundo cristão? É preciso urgentemente mudar esse enfoque, é preciso anunciar que ninguém mais precisa temer o espanto noturno, a seta que voa de dia, a mortandade que se propaga na escuridão e nem a peste assola ao meio dia. Mas também precisamos urgentemente deixar de sermos espanto. Esse era o grande diferencial da mensagem cristã, a libertação de todos os temores está ao alcance de todo o mundo: Não há mais judeu nem grego, nem servo nem livre, nem homem ou mulher. Foi justamente a fé nessa mensagem que impulsionou os cristãos primitivos. Foi a convicção de que isso era possível que, não somente os deu coragem para enfrentar o desprezo, a discriminação, a tortura e própria morte de peito aberto, mas foi o que também os fez entender que precisavam anunciá-la a todos os povos, pois esta não poderia ser uma bênção individual ou para um grupo distinto.

Os cristãos do primeiro século, olhavam a história da humanidade em que povos concebiam que somente seria possível alcançar a paz através da morte dos inimigos, e entenderam a mensagem desta forma: Como cristão, eu até posso gozar de paz se segurança, mas essas nunca serão completas enquanto as pessoas à minha volta estiverem atoladas no medo e na superstição. Anunciaram com as suas próprias vidas que a paz não é a ausência de conflito, mas o estabelecimento definitivo da justiça. Quando os discípulos disputavam posições e cargos, Jesus censurou seriamente essa ânsia de poder: É muito melhor que vocês fiquem no Reino de Deus, à sombra do Onipotente, acometidos por doenças, acidentados, feridos, mancos ou estropiados do que ficarem com perfeita saúde, prosperidade, mas mergulhados até o pescoço em infindáveis crises existenciais, temendo até mesmo o velho e manjado quarteto sinistro.

Eu não sou pregador de ficar ditando regras ou ensinando comportamentos, prefiro falar dos bons exemplos. Prefiro falar daqueles que levaram Deus a sério, que mesmo debaixo da opressão babilônica, como era o caso do salmista, ou sob o impiedoso domínio romano, que era como viviam os primeiros cristãos, conseguiam enxergar tão claramente outra realidade diferente da que se apresentava, por mais terrível que fosse sequer os abalava. Eles davam sim uma bela banana para quarteto sinistro. Simplesmente o poder dizer isso sem medo de consequências já seria uma bênção sem medida para aquela gente. E vocês podem crer que seria uma bênção enorme para muita gente hoje também.

Que Deus nos ajude a entender o peso que tem a sua mensagem, o quanto ela pode mudar, o quanto ela tem o poder de transformar. Não no futuro, não no tão desnecessariamente esperado fim dos tempos. Mas agora, no nosso tempo, na nossa realidade. Por fim, não nos iludamos, Ângelus Silésius, um místico do século XVII, resumiu o enfoque da mensagem cristã em um pequeno pensamento: Se nesse mundo, um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de, algum dia, naquele entrar.

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Quarteto sinistro II

Juízo Final, afresco de Michelangelo
Reflexão sobre o Salmo 91

Olhando por outro ângulo, se não é assim, qual é a vantagem de ser cristão? Ou pelo menos qual é a vantagem de ser cristão quando não se pensa dessa forma. Se o livramento não está condicionado à fé, para que então crer? Por que rememoramos o sacrifício de Cristo como a vitória definitiva sobre o mal? Pelo menos foi isso que nos ensinaram séculos de
mensagens triunfalistas.  Talvez seja esse o motivo de muitos povos orientais não acreditarem que Jesus seja o Messias. Eles olham as promessas contidas no AT e as comparam com a situação atual e só podem concluir uma coisa: o Messias não veio ainda. Mas por que estou me referindo a essas coisas? Por conta disso eu peço a vocês que me acompanhem nessa longa volta que pretendo dar.

Israel nunca foi uma nação proeminente se comparada às potências de sua época. Os hebreus não foram grandes conquistadores nem grandes inventores. Mesmo no seu apogeu, com Davi e Salomão, seu domínio passou daquela estreita faixa de terra. Podemos dizer também que nem foi nem propriamente o monoteísmo que fez diferença. Povos mais grandiosos também eram monoteístas, e alguns possuíam Messias que na época possuíam muito mais seguidores. O fator que colocou Israel no cenário mundial e na História Geral foi o radicalismo da sua fé. Os babilônicos, os egípcios, os caldeus, os assírios, os persas, os medos, os macedônicos, os gregos e romanos sempre lhes foram infinitamente superiores, muito mais influentes e muitíssimo mais poderosos. Seus deuses eram adorados em templos tão maiores e tão mais suntuosos que faziam o templo de Salomão parecer um conjugado no subúrbio. Todos esses povos, contudo, por mais ricos que fossem, por mais tecnologia que possuíssem, por maiores e mais poderosos que fossem seus exércitos, por mais opulentos que fossem os seus templos, indistintamente todos, fossem reis ou servos, pobres os ricos, todos eles viviam assombrados pelo quarteto sinistro.

Nós sempre imaginamos que os autores bíblicos abusaram da licença poética, que as palavras usadas por eles eram apenas figuras de linguagem, e que não deveriam ser interpretadas literalmente. Pensamos que são expressões que o autor se valeu para dar poesia e riqueza ao texto. Lido nos dias de hoje, este salmo provavelmente teria associações com fatos do cotidiano. O espanto noturno, para os europeus, talvez fosse o desemprego, pois muitos não sabem se vão estar empregados no dia seguinte. Quem viveu os áureos tempos de inflação no Brasil deve se lembrar bem disso. A seta que voa de dia poderia ser uma bala perdida, por que não? Indistintamente todos esses elementos contidos no salmo poderiam ser identificados no mundo atual com as ameaças perigosas que convivemos, mas com uma ressalva: todos teriam as suas causas na maldade humana, e em situações que com jeitinho e boa vontade poderiam ser resolvidas. Mas se vivêssemos naquela época iríamos entender que não era tão simples assim. Mas se você vivesse naquela época, com certeza ia conhecer e muito provavelmente ia morrer de medo do quarteto sinistro. Os seres que tanto os judeus quanto seus vizinhos mais temiam, que nunca compreenderam e que jamais ousaram controlar.

Embora a flecha fosse uma arma conhecida, a seta que voa de dia está representada no texto com algo que não se sabe a sua origem nem seu o destino. O salmo fala do terror que atua traiçoeiramente à noite, numa hora que ninguém espera. Fala da peste que se aproveita da escuridão para se alastrar e da epidemia que faz estragos horrendos em plena luz do dia. Não está tratando de acidentes comuns ou doenças corriqueiras, mas algo cuja procedência estava nos feitiços que invocam demônios terríveis. Para aqueles povos não havia uma noite de sono sem que o espanto noturno não os aterrorizasse, não dava sequer um passo sem temer que a seta que voa de dia os atingisse. Quanto mais avançada a civilização, tanto maiores eram os seus medos; Medos que nem toda riqueza, nem todo poderio militar, nem todo um panteão de deuses poderiam sequer minimizar. A verdade é que eles viviam sob o signo do medo, e qualquer maldição, qualquer mau agouro, qualquer palavra hostil, era uma porta aberta para a entrada do quarteto sinistro.

Na tentativa desesperada de afastá-lo faziam qualquer coisa: usavam amuletos, faziam mandingas e praticavam toda uma sorte de infindáveis rituais caros e complexos, que lhes consumia tempo, dinheiro, muitas vezes a própria saúde, e o que é pior, consumia também muitas vidas de crianças inocentes. Somente por estes dados nós podemos verificar que não se tratava de um mal comum, ou mesmo de uma ameaça simplesmente plausível. Era o mais completo horror diante do desconhecido, o pavor diante dos poderes malignos que os demônios supostamente possuíam.

Nesse clima instaurado de terror é que se revela o verdadeiro sentido do salmo, que se pode realmente experimentar a força dessas palavras. Quando o salmista, um sujeito baixinho e franzino disse: Se você habitar o esconderijo do Altíssimo, poderá descansar à sombra do Onipotente, porque Deus, o nosso Deus é suficientemente poderoso para nos guardar de todas essas coisas. Confiando em Deus, você não vai precisar temer o espanto noturno, nem ficará acuado por causa da seta que voa de dia. Muito menos perderá o sono por causa da peste que caminha na escuridão, ou terá crises de pânico por causa da mortandade do meio dia. Não quer dizer que ficaremos livres de todos os males, doenças ou que algum infortúnio que porventura possa nos acontecer, mas vocês verão que estes males tem causas naturais, e não são de forma alguma pragas do quarteto sinistro. Você não o temerá, e ele jamais terá a palavra definitiva, porque você vai perceber que quem está no controle, quem governa o universo é Deus. Tentemos agora imaginar a revolução que isso causou, que transtorno ocasionou na vida daquelas pessoas.

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Quarteto sinistro I

É imprescindível que você leia o Salmo 91

A foto ao lado tem circulado na Internet através do Facebook com a legenda corrompida do que diz o versículo sete deste salmo: Caiam mil a teu lado, e dez mil à tua direita; mas tu não serás atingido. Quero deixar claro que não estou o compartilhando, apenas ilustrando  o que à primeira vista não parece possível haver qualquer tipo contestação, uma imagem que fala por si. A foto realmente evoca o melhor sentido de confiança em uma proteção
individual, que não se pode dar outro nome a não ser milagre. Mas eu, como pregador do evangelho, tenho que dizer que é uma interpretação equivocada, descontextualizada e infiel ao texto bíblico. E pediria a paciência de vocês para fundamentar meus argumentos, que são longos e podem ser entediantes.

Em primeiro lugar este é um dos salmos mais lidos nas horas da aflição, e é mais do que sabido que tem ajudado muita gente a enfrentar e superar suas crises. Eu mesmo já recorri a ele diversas vezes, e voltarei a recorrer sempre e quando a barra pesar pro meu lado. Não é a toa que este é o salmo preferido nas Bíblias abertas nas nossas estantes. Assim funciona a leitura devocional. Na hora que estamos lendo a Bíblia de forma penitente, em nossa mente está sempre presente a ideia de que as promessas contidas ali foram feitas exclusivamente para nós. Temos a sensação de que o salmo foi escrito justamente para nos consolar naquela ocasião específica. E a época da Páscoa de favorece bastante este tipo de sentimento. Mas esta é a hora em que é preciso fazer uma abordagem não tão suplicante e mais consciente.

Quando fazemos uma leitura mais consciente, isenta de cargas emocionais, quando vamos às raízes do texto, percebemos que muitos dos assuntos ali tratados não se encaixam especificamente ao nosso caso. Esse salmo, por exemplo, fala da recompensa de um justo, que na hora da aflição penso que sou eu, mas que, conscientemente tenho que reconhecer que esse justo é uma pessoa com quem não tenho qualquer semelhança. Não sou em absolutamente nada parecido com ele. Logo em seguida, o salmo fala de uma proteção da qual o homem mais justo que se conheceu não foi merecedor, pelo contrário, em vez de caírem dez mil à sua direita, ele foi o único a cair. Por esse e outros motivos é que temos que estar atentos a esses dois momentos da leitura bíblica. Um momento é a hora de refúgio da aflição, de buscar consolo na tribulação e livramento nas tentações, o outro é a hora da reflexão madura, da avaliação do concreto, do cotidiano, de meditar na mensagem que a Bíblia quer nos revelar através das experiências de pessoas levaram Deus a sério, e que não o buscavam somente, como muitas vezes fazemos, nas horas de necessidade.

Sempre foi bem vinda essa ideia de ter um Deus de prontidão, atento à nossa segurança e de olho nos inimigos e perigos à nossa volta. Nós fazemos questão de crer em um Deus senhor do universo onipotente, que domine soberano sobre o macrocosmo, mas quando estamos doentes queremos que ele deixe tudo e esteja ao nosso lado na cama. Talvez o motivo de hoje pensarmos assim, mesmo aqueles que nunca foram católicos, seja a forte influência que a doutrina dos anjos da guarda pessoais tem estabelecido por séculos. Contudo, no judaísmo antigo isso era uma ideia pulsante, esse salmo traz consigo a essência dessa doutrina consagrada por São Tomás de Aquino. No versículo onze ele diz: aos seus anjos Deus dará ordens a teu respeito para não tropeçares com teu pé em pedra. Um tipo de proteção individual e exclusiva que seria assegurada àqueles que, aos olhos de Deus, eram considerados justos. Enquanto que aos demais reconhecidamente ímpios como eu, cabia-lhes apenas a ruína. Esta é uma doutrina consensual e que acomoda bem o pensamento de muita gente, pois além de mostrar uma credulidade piedosa em Deus, ainda concede a ele a honra que lhe é devida. Praticamente todos os judeus que viviam naquela época, ao lerem esse salmo, diziam a mesma coisa: essas promessas são pra mim.

Essa teologia, aceita e estimulada pela monarquia hebraica, seguia o seu curso muito bem, com suas orações intermináveis, salmos que expressavam confiança e a expectativa de um livramento incondicional que proliferava nas liturgias. Cultos repletos e festas consecutivas se multiplicavam. Até que apareceram os profetas escritores. Homenzinhos estranhos, que através das suas mensagens radicalmente subversivas colocaram em cheque a justiça dos chamados justos, a sinceridade das celebrações e a idoneidade dos cultos. Tais profetas vieram denunciar que não era por causa da sua justiça que eles estavam gozando de boa situação, e que isso não era sinal da proteção divina, uma vez que, aos olhos de Deus, essa justiça não existia. Sua prosperidade era fruto da exploração dos mais fracos. Muitos passando muito mal, para que poucos vivessem tão bem.

Mas esses profetas faziam suas denúncias numa esfera superior de poderes. Eles não iam pra Central do Brasil encher os ouvidos dos pobres e sofridos transeuntes. Eles iam para frente dos palácios, para os lugares onde aconteciam as decisões, era ali que pregavam a sua mensagem. Ao que parece, não é exatamente o que está acontecendo aqui. Não estamos pregando para líderes políticos. Pouquíssimos de nós tem essa influência política ou esse poder de decisão. Nós que pregamos do púlpito, dificilmente falamos para gente desse escalão. Nesse caso, deveríamos pensar que estamos de fora das denúncias e que os profetas não falam diretamente a nós.

E a Bíblia mais uma vez intervém. Aparece o livro de Jó, que além de contrariar toda a teologia da retribuição de louvores com bênção, que era vigente na época, vem colocar todos os orantes na contramão dos salmos litúrgicos. Jó vem dizer, baseado na sua própria experiência, que o justo também sofre, e que coisas muito ruins acontecem a pessoas boas e inocentes, que a vida não é tão simples como imaginamos ou desejamos ou mesmo como está escrito em alguns salmos.

Quando ouço certas músicas do repertório Gospel e alguns sermões de pastores televisivos, tenho que confessar que é uma tentação muito grande pensar o quão bom seria se fosse assim: que tomou Doril, a dor sumiu. Que tendo Jesus, não há tribulação que resista. Eu tenho que admitir que gostaria que fosse desse jeito mesmo. Que trabalheira me pouparia aceitar que é toma lá dá cá. Eu jamais pregaria uma mensagem desse tipo, com gosto tão amargo. Eu passaria a acreditar em tanta coisa. Por exemplo, que essa incursão no morro do Alemão e a invasão da Rocinha iriam resolver definitivamente o problema da violência no Rio de Janeiro. Eu ia acreditar que é pela força dos blindados e pela morte dos traficantes que a paz viria a se estabelecer. Que Deus nos faria caminhar sobre os cadáveres dos adversários, livres de todo mal que a eles sobreveio. Esse é o tipo de confusão que nunca devemos fazer,: tomar uma palavra que é própria para levantar o caído e dar forças ao debilitado, e aplicá-la com intuito de destruir tudo que nos contraria à nossa volta, inclusive pessoas pelas quais Jesus também morreu. Exatamente como a mensagem que a foto quer mostrar. (continua)

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Quem verá o Reino de Deus?

João em Patmos de Boch (1450-1516)
Dizia-lhes ainda: Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o Reino de Deus. Mc 9,1

Pedro havia anunciado Jesus como o Messias. Jesus, por sua vez, imediatamente expõe com clareza inquestionável as implicações desta revelação. Jesus se coloca no contexto histórico daqueles que antes dele ousaram fazer algo semelhante, assim como aconteceu aos profetas no passado e
recentemente a João Batista. Não parece haver qualquer contestação da inevitabilidade dos fatos nessa linha de raciocínio. Pelo menos nenhum dos citados havia sobrevivido para desmenti-la. Contudo, Pedro não teria que aceitá-la como uma consequência natural. Não poderia não tentar evitá-las. Mas ser chamado de desvirtuador de propósitos, tentador e Satanás por isso, é um pouco além da conta. Mas esse absurdo que começou restrito a um grupo, logo vai se tornar público, e Jesus se aproveita para descer a pormenores: Se alguém quer vir após mim, esqueça os seus interesses pessoais e esteja pronto a morrer, assim como eu estou pronto. Quem cuida dos próprios interesses jamais terá vida verdadeira, e de que adianta ganhar o mundo e perder a própria vida? Nessa época de incredulidade e maldade, se alguém negar, omitir ou mesmo se envergonhar dessa verdade, quando vier a glória na plenitude dos tempos, Deus também o negará, se omitirá e se envergonhará dele.

Até então era somente uma pregação inflamada, um discurso poderoso e recheado de ameaças e incertezas, que nem mesmo seus seguidores mais fiéis entenderam como, quando e onde essas palavras seriam realidade. E é justamente no auge dúvida que Jesus põe termo a questão quando diz que muitos dos que ali estavam não morreriam se testemunhar o Reino de Deus chegando com poder e glória. Ou seja: o onde é aqui, o quando é agora e o como, verão aqueles ainda que estiverem vivos.

Temos elementos variados aqui: Jesus é o Messias, mas vai sofrer por isso, porque, segundo ele, o Reino de Deus se estabelece negando a situação vigente em grande conflito de interesses. Não se vence esse jogo de interesses estabelecidos com mudanças gradativas e homeopáticas ou pela boa vontade dos homens. Jesus assegura que teria que haver uma intervenção drástica de Deus na história para que mudanças imediatas e radicais acontecessem, e isso não se daria de forma alguma sem que aquela geração passasse, sem que muitos dos presentes vislumbrassem essa chegada portentosa do Reino de Deus. Em contrapartida, para o judeu da época não poderia haver melhor momento para que o Messias fosse revelado. Ver toda uma expectativa milenar se consolidando. Ver os interesses do povo judeu sendo resgatados, a hegemonia de Israel restabelecida, os inimigos derrotados e humilhados, como diz a propaganda: não tem preço. Afinal, o consenso dizia que o Messias viria pra isso. Se ele tivesse que sofrer ou mesmo morrer nesta empreitada, que assim fosse.

Reconsiderando a atitude de Pedro. Como alguém pode colocar os seus interessas pessoais e deixar aflorar dos seus desejos mais íntimos quando o futuro de uma nação e a sobrevivência de um povo está ameaçada. Pedro não queria que Jesus morresse porque ele era seu amigo, tinha curado a sua sogra, tinha dado a ele uma excelente pescaria, salvou-o quando estava se afogando, tinha se transfigurado diante dos seus olhos. Um homem desse não pode morrer. Mas o povo pensava diferente. Jesus tinha que morrer pelo interesse de muitos. Israel estava sob uma terrível ameaça, e Deus tinha que tomar uma providência. O sumo sacerdote Caifás já tinha dito que era melhor que morresse um só homem do que a nação inteira. Quem estava torcendo por Pedro e vê o desenrolar dos fatos, fica imaginando que a opinião do povo prevaleceu, embora Deus tivesse que dar ouvidos às súplicas de Pedro.

Mas no final da história, quem foram aqueles que viram o Reino de Deus chegar? Quem de fato esteve presente a este fenômeno escatológico? Os que, como Pedro, se comoveram de piedade em ver Jesus padecendo, ou os que valorizaram a sua morte como a de um herói nacional? Quem, no entender de Jesus, estava apto a ver o Reino de Deus chegar? É interessante se observar que passados quase dois mil anos esses dois grupos continuam ativos e presentes na vida da igreja. Se existem aqueles que ainda hoje tentam sentir na pele o sofrimento de Cristo, também existem os que pensam que ele morreu pelos seus interesses pessoais, quando muito da sua igreja, e talvez até da sua denominação. Também existem aqueles que afirmam categoricamente que não morrerão enquanto não testemunhar Jesus voltando um sua glória plena. Dizem que não dá mais para esperar, pois o sofrimento de viver na atual situação está ficando insuportável. Dizem que o tempo atual supera em maldade e descrença a todos os outros períodos da história. Não quero fechar questão sobre esse tema, mas se for realmente assim, se o Reino, que já é chegado, se tornar pleno pelos anseios dessa nossa geração, Deus vai ter muito o que explicar para aqueles que morreram nas arenas romanas, para os mortos nas cruzadas, no holocausto, na peste negra, na colonização das Américas. Eles vão, com justa razão, querer saber o porquê de muitos de nós profetizarmos a volta de Jesus justamente para agora, um tempo em que a perseguição à igreja é quase que imperceptível, em que a morte dos mártires pode ser contada, em que a liberdade religiosa não é mais uma luta de um grupo específico e sim um clamor mundial.

Em nenhum lugar a nossa história registra uma intervenção visível de Deus ou de algum ser divino ou demoníaco. Muito embora cremos que Deus em Jesus irrompe a história humana, ele o faz sem que deste fato se tenha um registro documental inquestionável, mas que só é perceptível por meio da fé. Paulo, quando narra o nascimento de Jesus em Gálatas 4,4, diz somente: na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei. Não pode haver nada mais comum do que alguém que tenha nascido sob esses preceitos: nascer de mulher, nascer sob a lei. Então, se vivemos num tempo comum, como alguém pode esperar o que há de mais incomum chegar simplesmente atraído pelos fatos do cotidiano?

Para ver o Reino de Deus chegar em sua glória é preciso entender a morte de Jesus como algo maior que os interesses pessoais, de um grupo ou mesmo de uma nação inteira. É preciso ver a sua morte como o próprio Jesus a via, como o momento decisivo de um plano arquitetado por Deus desde a fundação dos séculos. A morte e a ressurreição de Jesus não se deram apenas em uma Páscoa do passado. Elas se dão a cada momento em que eu e você tomamos atitudes concretas em favor desse Reino. É mais do que certo que este Reino chegará. Em vez de perguntarmos quando, como e onde, deveríamos nos perguntar se nós seremos dignos de vê-lo chegar. Se não propriamente com os nossos olhos, pelo menos através dos olhos de uma geração que possa enxergar, através do nosso testemunho, mais claramente o verdadeiro sentido da morte de Cristo.

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