Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele. João 3.1ss
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Jesus e Nicodemos, Crijn Hendricksz (1601-1645) |
Poderíamos isso e muito mais, não fosse um pequeno detalhe percebido pelo evangelista e acrescentado à narrativa. Um pequeno detalhe que tirou todo o brilho da iniciativa de Nicodemos. João percebeu que ele foi ter com Jesus à noite, às escondidas. Nicodemos foi ao encontro da Palavra do Deus Vivo, fato para ele incontestável, munido não só de plena convicção, como também de muitos argumentos e após ter testemunhado sinais inequívocos da ação do Espírito de Deus na sua vida. Nicodemos reconheceu a sua autoridade de mestre em Israel, mas o fez de modo escuso, e isso a história não perdoa.
Ainda neste evangelho, em um fato posterior, onde narra uma iniciativa voluntária de Nicodemos, João vai novamente mencionar este delito: E também Nicodemos, aquele que anteriormente viera ter com Jesus à noite, foi, levando cerca de cem libras de um composto de mirra e aloés. (Jo 19.39) Para a história não importa muito um presente de realizações, pois ela vai à caça do que está registrado na vida pregressa. O “cá entre nós” não existe e nunca existiu para ela, que sempre corre atrás de tudo o que foi vivido e de todos os fatos que contaram com a colaboração ou a anuência dos personagens que ela destaca. A história esteve sempre alerta para acrescentar um senão ao ato mais criativo e magnânimo que o ser humano já foi capaz de executar. Não foi diferente com Moisés, Paulo, Lutero, Agostinho de Hipona, Francisco de Assis, Martin Luther King e tantos outros. O Papa Francisco vão poderia esperar que fosse diferente com ele. A história imediatamente levantou suspeitas sobre a vida e a obra de Jorge Bergoglio, mesmo antes que este se dispusesse a aceitar o ministério cristão.
Este é um elemento que pode servir muito bem aos propósitos da história, mas ele não tem a menor relevância dentro da fé que se diz cristã. O movimento iniciado por Jesus visava ficar com os frutos podres da cesta que o profeta Ezequiel recusou comer. Visava justificar de alguma forma o publicano indigno de levantar a cabeça. Visava perdoar a adúltera sobre que não tinha qualquer atenuante. Não, não importou para Jesus a hora ou as circunstâncias da visita de Nicodemos. A mensagem que Jesus tinha para ele não iria mudar. Jesus iria lhe falar sobre um novo recomeço, lhe dar uma nova oportunidade, lhe propor um novo e incondicional renascimento. Pode ser que seja uma coisa complicada de se lidar, difícil de digerir, mas para a fé cristã não importa se alguém foi um assassino como Paulo, um covarde como Pedro, um delator como Judas, um dissimulado como Nicodemos. O que importa é nascer de novo, e isso serve tanto para o maior perseguido pela história, como o completamente esquecido por ela.
Eu vejo um brilho diferente sobre a igreja de Deus. Não sou dado a ter visões alucinatórias ou sonhos reveladores, mas sinto que há no ar uma vontade recomeçar, um desejo de reconstruir, uma ânsia por reforçar as fendas da muralha. Isso para a história pode ter vários nomes, como arrependimento, remorso, sentimento de culpa ou reparação, mas para a fé cristã, esta vontade que nasce do impossível e do improvável só tem um nome: chama-se graça. E ela só aceita quem é indigno de ser aceito.
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