A cruz II

A nossa mensagem é esta: Deus não leva em conta os pecados dos seres humanos e, por meio de Cristo, ele está fazendo com que eles sejam seus amigos. (II Co 5.19)
As três Marias, William Bouguereau
Marcos em seu evangelho estava tentando nos dizer aquilo que Paulo já havia articulado tão bem através da sua teologia: A nossa mensagem é esta: Deus não leva em conta os pecados dos seres humanos e, por meio de Cristo, ele está fazendo com que eles sejam seus amigos. Era justamente isso que Marcos queria que a sua comunidade em Roma entendessem com clareza incontestável. Que Jesus Cristo foi Deus conosco. Que foi Deus conosco amando, perdoando, reconciliando, fazendo com que fôssemos seus amigos. Marcos descreveu os detalhes da sua morte na cruz com nitidez, porque ele sabia que a fé naqueles acontecimentos é por excelência um dom Espírito Santo.


Não há como rompermos a barreira dos limites do nosso raciocínio. Não há como enxergarmos além da nossa visão tão limitada. É preciso que Deus, antes de tudo, faça um milagre em nós, e nos dê o dom da fé para que possamos entender o sentido da cruz. É um dom que nos esclarece através da simplicidade da fé assumir as implicações que a cruz tem para as nossas vidas, para começarmos a viver no poder da cruz.

Não há merecimento, iniciativa ou sacrifício que nos dê o direito de possuir este dom, mas Deus nos quer dá-lo gratuitamente, graciosamente. É isso que Deus faz. Quando ele me dá esse dom, ainda que de maneira empírica, posso começar a entender o quanto do seu amor foi revelado naquela cruz, e posso finalmente crer que foi por mim, por mim mesmo que Jesus morreu na cruz. Eu estou perdoado, eu sou amado, e a prova disso é que Deus deu seu unigênito Filho para morrer na cruz pela minha redenção. Então eu tenho que passar a viver segundo esta certeza. O que jamais conseguiríamos pelo raciocínio, por meditações ou por contemplações Deus nos dá como presente. Tudo que precisamos fazer é simplesmente receber o presente,

Existe, porém, antes disso uma ação magnífica no processo com que Deus completa a nossa reconciliação com ele: ele nos liberta de todos os pecados, de todas as cadeias, de todas as superstições, de todas as dívidas e de todos os nossos fracassos para que creiamos que ele é totalmente por nós. Durante toda a nossa vida a mensagem que recebemos é que estamos em falta com ele, e por isso ele vai nos mandar para o inferno, que Deus quer nos castigar, que ele está contra nós. Mas pela fé na cruz percebemos que não é nada disso, que está do nosso lado, e não contra nós, e essa é a base da nossa esperança, a razão da nossa alegria no dia em que celebramos a Páscoa.

Se aceitarmos este dom, Deus vai transformar as nossas vidas. Somos amados ao máximo. Não há outro jeito de alguém nos amar mais ou melhor. Deus escolheu o caminho perfeito na pessoa de Jesus Cristo e na sua atitude voluntária de entregar-se à cruz do Calvário. Um sacrifício que foi feito de uma vez para sempre, que nunca mais vai precisar ser repetido por todos os nossos pecados, por todos os nossos fracassos na vida e por todas as distorções que sofremos ou que fizemos outros sofrerem. Não existe mais a necessidade de ficarmos nos defendendo das acusações contra nós. Eu acho que toda a minha vida se resume nisso, eu passei defendendo a mim mesmo. Até a minha pregação do evangelho tem esse propósito, é uma espécie de defesa de mim mesmo.

E a justificação própria?  Durante toda a minha vida eu tenho me justificado. Eu me justifico em cada coisa que faço, em cada conversa que tenho, em cada encontro, em cada palavra. É exatamente com esta medida que eu meço os outros, é assim que eu faço o julgamento das pessoas. Se eu sou deste jeito, fico sempre achando que elas também tem que se justificar comigo. Mas de repente pela fé eu fico sabendo que nada disso é mais necessário. Por causa da morte de Jesus todos esses medos acabaram. Na cruz até o medo da morte acabou. Nós podemos viver o restante dos dias das nossas vidas, poucos ou muitos não importa, mas podemos vivê-los plenamente. A nossa mensagem é esta: Deus não leva em conta os pecados dos homens e, por meio de Cristo, ele está fazendo com que todos eles sejam seus amigos.

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A cruz

Ele salvou os outros, mas não pode salvar a si mesmo! Vamos ver o Messias, o Rei de Israel, descer agora da cruz e então creremos nele! Marcos 15.31b-32a
A crucificação, Simon Vouet, 1622
É impossível entender a cruz. O intelecto humano não pode sozinho sondar aquilo que foi feito no Calvário. Não existe quantidade de conhecimento, leitura ou reflexão suficientes para desvendar esta verdade. As capacidades humanas podem, quando muito, arranhar o perímetro do significado da cruz, mas nunca irão por conta própria entendê-la na sua inteireza. Podemos fazer muita coisa. Podemos refletir com extremo zelo sobre a importância da cruz, podemos meditar incansavelmente sobre o seu significado histórico, estudar com afinco sobre os efeitos colaterais da crucificação e ainda não experimentar a realidade dela.


Nós podemos desenvolver todas as teorias jurídicas sobre todo o processo sem jamais sermos tocados pelo seu poder. Podemos também o estimar o valor do simbolismo dela, podemos nos comover com o sofrimento sacrificial de um homem que deu a sua vida por causa do seu amor para com os seus amigos. Nós podemos fazer tudo isso e não entender a implicações cósmicas daquilo que aconteceu lá no Gólgota.

Nós cristão pregamos tanto sobre a cruz, a maioria dos hinos dos nossos cancioneiros fazem alusão a ela, para no fim experimentarmos tão pouco dela. Apenas uma intimidade inconstante. Espanta-nos ver o quão pouco atentamos para o sacrifício e a agonia cruel daquela cruz de madeira rústica. O que nós fazemos ao colocar cruzes caras e requintadas em cima e dentro de nossas igrejas não é mais do que disfarçar a nossa falta de amor humilde que demonstrado nela pelo Senhor dos evangelhos. Até somos exigente na quanto à origem e ao esmero da sua fabricação, e está certo, tem que ser assim mesmo, mas nos esquecemos de tomá-la para nós.

Foi feita uma pesquisa nas igrejas evangélicas sobre o significado da cruz, para saber que diferença faz a cruz na vida do cristão. O propósito era saber qual o seu significado para cada um de nós. Então foram feitas as seguintes perguntas: Teria feito alguma diferença no jeito que você vive se Cristo não tivesse morrido na cruz? Quarenta e cinco por cento reponderam que não, que não faria diferença alguma. Isso entre os crentes. Vinte e cinco por cento disseram que sim, mas não sabiam dizer que diferença era essa, nem na prática e nem na teoria. Sabiam que fazia alguma diferença, só não sabiam que diferença era essa. Vinte por cento responderam que fazia toda a diferença, tanto na vida que eles creem quanto na vida que eles vivem. Os dez por cento restantes nem entenderam direito a pergunta. Como nós teríamos respondido essa pergunta? Faria alguma diferença para nós se Cristo não tivesse morrido na cruz? Entendemos que aquela morte é a base da nossa segurança e esperança? Sentimos que estamos de fato perdoados por Deus e que somos um povo que perdoa? Somos aquele povo que experimentou tanto o perdão de Deus que está sempre pronto a perdoar os outros e a nós mesmos? A cruz tem nos libertado das tentativas de autojustificação? Libertado das desculpas esfarrapadas? Já compreendemos que a cruz é somente uma mensagem de fé e sim o mandamento do nosso estilo de vida? Muitos de nós teríamos que responder dizendo: Depois de ler tanto, depois de ouvir tanto e depois de cantar tanto sobre a cruz vejo que o seu real significado me tem escapado. Mas honestamente gostaríamos de responder com outra pergunta: Como pode a morte de um homem que aconteceu há tantos anos no passado pode ser o fundamento de uma vida nova para mim?

O ponto crucial é o seguinte: Quem de fato foi aquele homem que morreu na cruz? Ele era mesmo o Messias? Foi ele de fato o Filho de Deus? Essa era a questão do evangelista Marcos, que escreveu todo um evangelho afirmando que Jesus foi à cruz para cumprir a expectativa que o profeta Isaías tinha com relação ao Messias prometido: Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. (Is 53.4s)

Depois da ressurreição os discípulos, as Marias e toda a igreja primitiva olhavam para cruz e realmente compreendia aquilo que Jesus tinha tentado comunicar em todo o seu ministério. Jesus foi à cruz como sacrifício que Deus fez pelos pecados do mundo. Então agora eles podiam pegar o Primeiro Testamento e ler de novo as palavras do profeta Isaías, colocando o nome de Jesus no lugar dos pronomes, e eles liam assim: Certamente, Jesus tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas Jesus foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre Jesus, e pelas suas pisaduras fomos sarados. (continua)

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O que é PAIXÃO? II

Evangelistas, Karolingoscher Buchmaler
 A igreja primitiva começou quase que imediatamente a utilizar a narrativa da paixão nos cultos, na catequese e na apologia da fé. Pelo que tudo indica, parece ter havido, em forma escrita, uma narrativa antes que Marcos a colocasse no seu evangelho. O próprio Marcos se serviu de uma tradição particular para desenvolver o seu texto, o que se pode observar também nos outros evangelistas.


Apesar da necessidade da igreja primitiva conservar uma pregação comum, cada um deles deu à narrativa da paixão um caráter pessoal. Mateus acentua a sua relação com o cumprimento das Escrituras, fazendo constantes citações dos salmos e dos profetas. Podemos ver que o seu evangelho é mais fiel ao texto original, traz informações novas sobre Judas e é implacável na denúncia dos chefes judeus.  

A narrativa da paixão de Lucas apresenta um interesse especial, porque além do que copiou de Marcos, fez investigações acuradas e independentes. Seu tom leva a sua comunidade a se comover e a se enternecer, pelo mártir que aceita tudo com humildade e paciência. É justamente esta narrativa que forma a base para meditações posteriores sobre a paixão inspirada pela compaixão.

João faz a sua narrativa mostrando que alguns bons anos depois a igreja continuava fiel aos relatos anteriores da paixão, embora isso não disfarce a sua genialidade como teólogo e narrador. Sua comunidade já havia se liberado do pânico da primeira perseguição e da comoção pela destruição do templo de Jerusalém. À morte de Jesus brutal e decepcionante ele dá um sentido mais essencial: aquela morte não é senão a passagem de um mundo instável e satânico para o Reino que é o centro de toda expectativa e esperança cristãs. Nele, o crente encontra a sua liberdade real e já sabe de antemão que Deus está no comando e estará até o fim dos tempos. Para João, Jesus enfrenta as cenas da sua paixão soberano da situação: ele mesmo carrega a sua cruz, não está prostrado quando os soldados chegam para prendê-lo, não dá sinais de agonia e nem depende da assistência de anjos. A morte de Jesus é por ele relacionada não com desânimo dos caminhantes de Emaús, mas com a sua ascensão gloriosa, a motivação que falta aos outros evangelhos para dar alegria e coragem aos cristãos.

Vários são os elementos que influenciaram as narrativas da paixão nos evangelhos, transformando um simples relatório na pregação da salvação, e é essa ênfase que ressalta na pregação o sentido soteriológico da paixão e morte de Jesus Cristo. As narrativas da paixão contidas nos evangelhos não são, de forma alguma, o trabalho exclusivo de um determinado autor ou comunidade. Elas são o testemunho de fé das igrejas primitivas. Isso não somente garante a sua fidedignidade como assegura a sua importância para os cristãos do passado. Foram tradições e mais tradições antigas que passaram pelo crivo da crítica, se eximiram das supertições e sobrepujaram a opinião e com etário dos intelectuais para se apresentarem como autênticos arautos daqueles que viram e viveram estes fatos. As narrativas da paixão não são depoimentos espontâneos de pessoas bem intencionadas, mas seguem integralmente a fórmula proposta e encarnada por todos os apóstolos na afirmação de João e Pedro: Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus;  pois nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos. (At 4.19s)

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O que é PAIXÃO? I

O lava-pés Ford Madox (1821-1893)
A narrativa da paixão forma nos evangelhos uma seção bem delineada. Embora cada evangelista tenha obtido o seu material por meios próprios, todos parecem contar com um documento básico que abrange os seguintes episódios: a conspiração dos sacerdotes, a traição de Judas, a última ceia, o relato da prisão, o processo diante dos sacerdotes, o julgamento de Pilatos, a crucificação e o sepultamento. Alguns outros elementos, tais como a unção em Betânia, o Getsêmani e o escárnio dos soldados, são elementos compilados da memória dos mentores de cada evangelista, pois, sem qualquer tentativa de conciliação, podemos vê-los sendo citados desde as mais antigas pregações apostólicas, nos mais antigos credos e nas mais antigas orações litúrgicas.


A narrativa de Marcos, pelo fato de ser a mais antiga, narra a fuga dos apóstolos e a agonia no jardim como cenas que mostram Jesus em extremo abandono e dependência. As narrativas mais recentes, como a de Lucas e João, já mostram um Jesus mais autônomo e mais senhor da situação, inclusive perdoando os seus algozes. Basta que comparemos o encontro dele com os soldados que o prenderam. Marcos também faz mais do que um relatório resumido dos principais acontecimentos da paixão, ele os insere na história da salvação, creditando aos fatos seu valor, tal como a antiga pregação cristã os entendeu: uma provação que Jesus havia superado vitoriosamente. Essa provação era apresentada como uma pedra de escândalo para todos aqueles que esperavam um Messias dotado de armas que destruiriam de vez os inimigos de Israel. A isso a pregação cristã respondia confrontando a maneira como os judeus haviam tratado Jesus com a intervenção de Deus que o ressuscitou do sepulcro mostrando a origem da sua força e provando a sua inocência, para fazê-lo sentar no lugar do justo sofredor preconizado por Isaías como verdadeiro Messias. Embora Marcos cite frequentemente a ignorância dos judeus, não disfarça a sua culpa, seguindo os moldes das pregações antigas.

Os evangelhos não falam de maneira explícita de um plano salvífico de Deus, e nem mesmo que este estivesse sido completado com a paixão de Cristo. Mas são eles que fornecem elementos para a base dessa doutrina. Frisam sempre que Jesus já sabia de antemão o que o esperava, que ele sofreu como um inocente justo e que se entregou voluntariamente as essas provações. Porém, deixam claro que a luta entre o bem e o mal, entre Deus e Satanás foi decidida de vez para sempre ali. Contudo, para os evangelistas, Jesus não morreu simplesmente como mais uma vítima da violência brutal e do abuso de poder dos seus adversários, havia por trás de todos esses acontecimentos o propósito salvífico de Deus. E é próprio quem Deus confirma o valor desta paixão e morte, fazendo daquele crucificado não apenas mais um morto que por uma ato de misericórdia retornou à vida, mas alguém que ressuscito em um corpo glorioso que jamais antes visto por qualquer ser humano.

A narrativa da paixão não tem por finalidade comover ou explicar, mas convencer e fortalecer a fé os fiéis que por seguirem a Cristo estão sendo perseguidos e mortos, mas também tem o propósito de refutar as objeções dos adversários. Por outro lado, o Jesus que padece na sua justiça é o modelo a ser imitado por aqueles que se dispõem a seguir os seus passos. Embora os evangelistas não avaliassem a questão do valor da morte de Jesus para a salvação universal, pois esta é uma doutrina iminentemente paulina, já encontraram na paixão de Cristo os elementos para a resposta do por quê do sofrimento expiatório. Mais importante ainda, é por esta paixão que Jesus se torna a luz do mundo e o seu redentor. (continua)

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Antes do galo cantar

Replicou Pedro: Senhor, por que não posso seguir-te agora? Por ti darei a própria vida. Respondeu Jesus: Darás a vida por mim? Em verdade, em verdade te digo que jamais cantará o galo antes que me negues três vezes. (Jo13.37s)
Pedro negando Cristo, Rembrandt em 1660
Uma biografia não muito detalhada da vida de Jesus poderia dizer que a sua vida durou exatamente o intervalo entre o canto de dois galos: aquele que, segundo a tradição católica, cantou na madrugada do dia do seu nascimento, que é comemorado por esta denominação cristã numa missa celebrada nada menos do que por sua Santidade, o Papa, e o galo que cantou na madrugada do dia em que Jesus foi crucificado para denunciar a negação de Pedro. Parece que o galo entra na vida de Jesus através dos extremos, não somente anunciando o começo e o fim da sua vida, mas também na extrema alegria do nascimento há muito profetizado, e na extrema tristeza de uma morte injusta e não justificada.


Muito embora o canto do primeiro galo não seja um consenso entre os cristãos, não paira qualquer dúvida sobre a importância do canto do segundo galo para Pedro, por conseguinte, para toda a cristandade, pelo menos era essa a expectativa dos quatro evangelistas, que unanimemente retrataram este episódio em particular.
Sem a menor pretensão de tentar colocar algum espírito de poder no pobre animal, ou demonizar o seu belo canto, vejo que a nossa busca pelo Reino que foi anunciado por Jesus até as últimas consequências deve se dar no intervalo entre os cantos dos dois galos, nunca antes e jamais depois. Ou seja, de nada adianta esperar que o Salvador volte, e que novamente venha realizar a obra que foi dada como consumada na cruz do Calvário, como pede um música “Todos estão surdos” de autoria do Roberto Carlos, que é sempre cantada em tom muito piedoso: Meu amigo volte logo / Vem olhar pelo meu povo / O amor é importante / Vem dizer tudo de novo. Como também não adianta ter esperança de que o Espírito Santo, que o sucedeu, nos traga alguma novidade diferente daquela que aprendeu com Jesus enquanto os galos ainda cantavam: quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. (Jo 16.13)

Vivemos, desta forma, entre a expectativa dos idosos do templo, Simeão e Ana, de ver o Salvador nascer, não mais em Belém, mas em nossos corações, e a de não decepcioná-lo totalmente, negando o fato de termos estado com ele, quando as circunstâncias nos forem adversas. É importante observar que os sinais continuam presentes, que os galos continuam cantando, e que nós, como sempre, estamos repetindo os mesmo erros de julgamento: ora colocando a nossa esperança em promessas que não encontram respaldo na boca dos autênticos profetas de Deus, ora na ilusória expectativa de milagres que não tem anuência da fé.

A Quaresma é o tempo propício para este tipo de reflexão, e a Semana Santa o tempo mais que propício para decisões. O que vamos fazer depois do depois do primeiro galo ter cantado anunciando e antes do segundo galo cantar denunciando. O elemento da fé de mais difícil assimilação é justamente esse: não importa o que aconteceu antes, assim como não nos diz respeito o que acontecerá depois. Corremos o risco das pessoas pensarem que a fé cristã é um tipo de filosofia imediatista, mas o que realmente importa é o hoje, o tempo de Deus é o agora: Se hoje ouvirdes as sua voz, não endureçais o vosso coração, porque depois que o galo cantar só vai restar mesmo o arrependimento.

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Judas, quem é quem?

Judas se retira da Última Ceia, Carl Bloch (1834-1890)
Na Bíblia encontramos além daquele que gostávamos de malhar no Sábado de Aleluia, outros tantos Judas, mas nem todos merecem carregar a mesma sina trágica que este nome evoca. Aliás, Judas naquela época era um nome tão comum como o de Jesus, pois é uma derivação de Judá, que é o nome de um dos doze filhos de Jacó, ou Israel, se preferirem.

Dentre os judeus, o mais famoso e aclamado é sem sombra de dúvida Judas Macabeu, o terceiro filho do sacerdote Matatias, Aquele que por volta do ano 160 a.C. iniciou a revolta contra o domínio selêucida sobre a nação de Israel. Judas Macabeu foi o grande herói desta revolta, por isso, o segundo canon bíblico traz o seu nome em dois dos seus mais importantes livros. Tem no seu currículo vitórias sobre os grandes generais de Lísias e sobre o próprio Lísias, quando reconquistou Jerusalém e de lá retirou a estátua de Zeus colocada por ordem de Antíoco IV, depois de saquear o templo, fato que ficou conhecido na Bíblia com a “desolação da abominação”. Judas Macabeu não somente livrou Israel do jugo grego, como também ampliou as suas fronteiras até a Síria. Foi morto numa batalha contra os sírios, que só foi perdida por que não recebeu a tempo o apoio prometido pelo exército romano.

Temos também Judas Tadeu, o apóstolo que ficou conhecido pelo nome de Tiago, que segundo a tradição protestante seria o meio irmão mais velho de Jesus, filho de um casamento anterior de José. João distingue-o claramente do Iscariótes quando escreveu: Disse-lhe Judas, não o Iscariotes: Donde procede, Senhor, que estás para manifestar-te a nós e não ao mundo? (Jo 14.22) Segundo esta mesma tradição foi ele e não Pedro o sucessor de Jesus na direção da igreja primitiva. Esta conclusão é baseada na sua capacidade de decisão, mostrada no Concilio de Jerusalém como palavra final: Depois que eles terminaram, falou Tiago, dizendo: Irmãos, atentai nas minhas palavras: (At 15.13) Também é o escritor de uma belíssima carta dedicada aos judeus recém convertidos ao Cristianismo.

Outro grande herói de Israel foi Judas, o Galileu. Aproveitou-se do descontentamento que gerou o recenseamento ordenado por Quirino para promover uma revolta contra os romanos: Depois desse, levantou-se Judas, o Galileu, nos dias do recenseamento, e levou muitos consigo; também este pereceu, e todos quantos lhe obedeciam foram dispersos. (At 5,37) Tem em sua conta a conquista da fortaleza de Séforis, depois da morte de Herodes Magno. Foi morto por seus companheiros, mas o movimento fanático-religioso, iniciado por ele, que se baseava numa teocracia absoluta, reconhecendo unicamente o governo de Deus, não se extinguiu com a sua morte, tornando-se, posteriormente, o partido dos zelotes.

Existiu também um Judas que morava em Damasco. Desse, alem do nome, temos também o endereço, pois Lucas disse que morava na rua Direita, local onde Paulo ficou hospedado depois da sua conversão na estrada que levava àquela cidade: Então, o Senhor lhe ordenou: Dispõe-te, e vai à rua que se chama Direita, e, na casa de Judas, procura por Saulo, apelidado de Tarso; pois ele está orando. (At 9.11)

Mas o nosso grande Judas é mesmo o Iscariotes, um dos doze discípulos de Jesus. Pouco falado nos Sinóticos, é completamente execrado por João, de quem herdamos toda a antipatia. Não é para menos, pois para aquele que dizia ser o discípulo amado de Jesus, ver alguém diferente dele ocupando o cargo de maior confiança, a tesouraria do ministério de seu mestre, era algo que não seria recebido com muita simpatia. Tem a seu favor que na chamada traição de Jesus, não coube a ele o terrível delito de entregá-los aos romanos. Judas entregou Jesus aos Sinédrio, algo que deveria obrigatoriamente ser feito, caso flagrasse alguém infringindo a lei, o que Jesus fez claramente quando expulsou os vendilhões do templo. Essa tal entrega era recompensada com trinta moedas de prata, algo estabelecido há algum tempo.

Não se sabe bem porque este inspira tanto ódio. Talvez, pela sua semelhança com a palavra judeu, tenha estendido a todo este povo um preconceito quase que mundial. Mas o fato é que juntamente com ele fomos perdoados por Jesus na cruz. O mais curioso é que cometemos exatamente o mesmo pecado que Judas cometeu: não sabemos o que estamos fazendo com Jesus.

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A conversão dentro da conversão II

Paulo em Athenas, Leonard Porter (1963-)
Poderíamos citar também o exemplo de Paulo e da sua segunda conversão após a sua pregação no Areópago narrada em Atos 17, começando a leitura a partir do versículo 19.
Aquele que é para muitos, inclusive para mim, simplesmente o melhor e mais objetivo sermão de toda a Bíblia, lhe foi mais profundo e transformador do que a sua experiência anterior na estrada de Damasco. Sobre este episódio da vida do apóstolo, a que costumamos conferir um valor extremo, o próprio Paulo poucas referências faz. Nem mesmo a tem como a mais sua experiência mais extraordinária, dando este crédito à outra, contada apenas quatorze anos após o seu acontecimento, e que está narrada em II Coríntios. Contudo, a sua controvérsia com os filósofos gregos no Areópago lhe rendeu muito maios frutos.

Um deles foi a elaboração da riquíssima doutrina sobre o valor genuíno da cruz de Cristo, em contrapartida aos pseudo valores deste mundo. A partir de então, a igreja passou a enxergar a cruz não mais como um castigo injustificado imposto por Deus ao seu Filho, mas como algo que relativiza qualquer outra doutrina formulada pela inteligência humana. Rendeu-lhe, a reboque, uma extraordinária e providencial transformação pessoal do exímio orador que costumava ser, em o apaixonado pregador que passou a ser, mudando completamente o foco da mensagem do evangelho, para que esta fosse dirigida, antes e mais objetivamente ao coração do que a razão. Para nós pregadores, enfim, rendeu uma infinidade de sermões sobre a incompreensível loucura da graça que prefere escolher o fraco, o vil e o louco antes das pessoas de prestígio, os fortes e os reconhecidamente sábios. Este também é mais um tapa na boca daqueles que exaltam a primeira conversão acima das conversões posteriores.

Seria injusto não citar as várias conversões de John Wesley à importância do trabalho da mulher na igreja, do valor da leitura para a preparação dos pastores, e até mesmo da sua anuência à consagração de administradores na nova colônia inglesa que havia se tornado independente. Mas eu queria ressaltar a sua conversão a permissão da pregação leiga em suas igrejas. Vejamos o que o rev. Fitchett fala sobre isso: Ainda depois de sua conversão Wesley possuía todas ou quase todas as prevenções do ritualista; e entre as mais obstinadas destas estava a sua prevenção contra a pregação leiga. Tocar neste ponto, como ele mesmo dizia, era tocar na menina dos olhos. Somente o clérigo devidamente ordenado ligado por uma corrente multissecular de ordenações até os próprios Apóstolos tinha o direito de se por no púlpito para pregar a seus semelhantes. Que um simples leigo ordenado por ninguém, subisse àquela sagrada eminência, ou ousasse interpretar com lábios seculares as Escrituras a seus semelhantes, para Wesley parecia nada menos do que um sacrilégio. Ele sentia ao contemplar tal espetáculo, como sentiria o sacerdote judeu se visse alguém que não fosse da tribo de Levi a ministrar ao altar. *

Vejamos agora o que nos diz o seu homônimo meu amigo citado anteriormente: Quando soube que havia um homem sem ordenação eclesiástica pregando na Fundição, ele mudou seus planos e, de Bristol, voltou incontinente para Londres para pôr fim a tal desordem. Quem evitou o atrito foi Susanna, mãe de Wesley, que lhe deu um sábio conselho: “Tem cuidado, João, com o que vai fazer daquele jovem, pois ele é certamente tão chamado para pregar como tu. Examina quais os frutos de sua pregação e, então, ouve-o tu mesmo”. Aceitando o conselho, ouviu Maxfield e afirmou: “É do Senhor, faça Ele como lhe aprouver” A partir daí, os leigos foram admitidos nas sociedades como pregadores.**

Faltaria tempo para falar da reconversão de Jó, de Pedro e de tantos outros que foram testemunhas vivas que o trabalho de Deus na primeira conversão é apenas um pequena mostra do quanto ele pode realmente fazer. O “nascer de novo” lega ao Cristianismo a certeza de que não existe absolutamente nada predeterminado ou definido. O Espírito de Deus está pronto e atento a nos mostrar as novas oportunidades que surgem vida vez que a situação se configura de modo diferente. Seria bom que a cada período de nossa vida fosse deixado como lembrança no passado e que pudéssemos sempre e cada vez mais repetir: Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem.

*        Extraído do sermão “Os pregadores leigos: Uma nova ordem de auxiliares” do Rev. William Henry Fitchett.
**      Extraído do livro Pequena História do Povo Chamado Metodista de João Wesley Dornellas.

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O triunfo da humildade

Ouvindo o povo que Jesus entrava, foi encontrá-lo enquanto descia o Monte das Oliveiras, em direção a Jerusalém. Jesus era saudado com a voz de crianças, que acenavam com ramos e palmas, e acolhido por gente simples do povo que oferecia, reverente, suas túnicas como tapete afetivo Leiam Mateus 21.1-11 

Entrada triunfal em Jerusalém, afresco em Zirl, Austria
Texto do rev. Luiz Carlos Ramos.
O jumento emprestado
Imperadores, reis e generais costumavam fazer entradas triunfais nas cidades por onde passavam. Cavalaria, músicos, arautos, estandartes e tapetes vermelhos os saudavam. Quando a missão era militar, montavam cavalos fogosos. Mas se de paz se tratava, lá vinha o rei montado em jumento, finamente encilhado.
Jesus, porém, em sua última viagem – que tem como destino a humilhação e a condenação – é homenageado de forma inusitada, ao entrar em Ierushalom (a cidade da paz), montado, nada triunfalmente, em um jumentinho emprestado, numa universal missão de paz (vd. v. 5 e 7).

As túnicas ao chão
Essa gente pobre estende pelo chão suas túnicas rotas para que o Filho de Davi tenha o conforto modesto, oferecido por quem não tem tudo o que o Rei merece… mas tudo o que tem a ele oferece.
Oferta que se faz acompanhar de uma prece: “Hosana ao Filho de Davi” (v. 9). Tal expressão, na boca do povo pobre, soa como um clamor e como um louvor. Clamor para que o rei da Glória atente para a humilhação dos seus súditos. Louvor porque pela boca das crianças que nada tem, a não ser sua própria voz, presta-se a perfeita homenagem àquele que vem em nome do Senhor.
Essa gente não tinha tapetes vermelhos para estender-lhe adiante. Para Jesus, porém, aquelas capas sujas, amassadas e esfarrapadas eram mais que suficientes para fazê-lo sentir-se acolhido, homenageado, honrado, dignificado. Ainda mais que aquele caminho sinuoso se fizera adornar do verde e da esperança das palmas, dos ramos e do calor humano do povo simples e das crianças de colo.

O Profeta galileu
“Quem é este?” (v. 10), perguntam as gentes. Há quem não entenda. Esse galileu não pode ser o Messias. Não é da nobreza, não é um guerreiro, não tem sequer um cavalo de raça; não passa de um mero artesão, operário iletrado; ainda por cima é amigo de pescadores miseráveis, de mulheres indecentes, de enfermos malcheirosos e de lunáticos desprezíveis.
Ecoa uma voz e uma resposta (seria a das crianças?): “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (v. 11). Sim! Há aqueles e aquelas que têm olhos para ver Deus entre os pobres, o Rei entre as crianças, o Messias entre os enfermos, o Profeta entre os sem-honra.

. . .
E quanto a nós? Que Messias esperamos ver? Estaremos preparados para o triunfo da humildade? Jesus não vem em missão militar, mas em passeata pacífica; não vem em demonstração de força, mas em expressão de amizade; não vem em busca do poder, mas ao encontro do povo.
Talvez só tenhamos uma túnica batida e empoeirada para honrar o rei bendito. Ele não precisa mais do que isso para se sentir confortável. Talvez só tenhamos nossas vozes tímidas para clamar: “Hosana!”. Ele não precisa mais do que isso para se sentir bem-vindo e visitar-nos com seu amor e sua eterna paz.

Assim, também, benditos sejam tantos quantos vierem humildemente, em nome do Senhor, e em missão de paz.
(rev. Luiz Carlos Ramos é pastor metodista, doutor em Ciências da Religião e é professor da Universidade Metodista de São Paulo).

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A conversão dentro da conversão I

Ananias devolve a visão a Paulo, Pietro de Cortona (1596-1669)
O mundo evangélico trata a conversão como se ela fosse um divisor de águas que define, de uma vez por todas, a história da vida de uma pessoa. Não apresento qualquer novidade quando digo que o testemunho de vida de um evangélico se divide quase sempre em dois períodos distintos: o antes da sua conversão, e o depois da sua conversão. O que se pode observar de interessante nestes dois testemunhos é que as narrativas depreciativas e pecaminosas da vida pregressa são sempre acompanhadas de largos sorrisos, o que demonstra nitidamente se tratar de uma boa lembrança. Mas quando este mesmo indivíduo fala do seu estado atual de convertido, as suas feições se enrijecem e tom da sua voz muda imediatamente após pronunciar as seguintes palavras: mas agora não, eu sou uma nova pessoa.

Que é um momento crucial na vida daquele que não foi criado desde criança no evangelho e mais tarde assume espontânea e naturalmente a sua herança de fé quando adulto, ninguém pode questionar. Mas o fato é que ele não é e nem pode ser esse divisor de águas definitivo na vida de quem quer que seja. A assim chamada primeira conversão, aquela que torna um descrente em um crente em Jesus Cristo é apenas o primeiro passo de uma caminhada longa e difícil, mas altamente gratificante. Primeiro passo, era esse o nome que se dava a esse primeiro ato de fé, e ninguém em sã consciência pode esperar que o primeiro passo de qualquer longa caminhada seja o decisivo.

De antemão podemos identificar alguns dos grandes problemas nessa supervalorização do primeiro passo. O primeiro deles é a celebrização do novo crente, que passa imediatamente do estágio de não ser ninguém ao estado de ser alguém importante para Deus, como se antes ele não fosse coisa alguma. Se o recém convertido já é uma pessoa famosa na vida secular, então, já não se trata mais de celebrização, posto que este não precisa, mas sim de endeusamento. O neófito rapidamente se transforma na arma mais poderosa que a igreja ou a denominação adquiriu para a propagação do evangelho. Aquele que deveria antes de tudo se sentar nos banquinhos da Escola Dominical para aprender os elementos básicos da fé, passa a ocupar com toda a sua inexperiência e despreparo o púlpito central. Mal para ele, que não acerca das doutrinas fundamentais da fé, e com isso confunde os seus dois mundos: o de antes e o de depois, e em vez de se tornar um convertido de fato, torna-se um convencido por direito. Mal para a igreja, que faz acepção de pessoas, e passa a se comprometer com mensagens de alguém que em vez de pregar, deveria ouvir e ouvir muito.

Para este fato em particular, eu gostaria de citar o exemplo de um pastor que foi muito meu amigo, mas que já é falecido. O Reve, que era como chamávamos, foi convertido na prisão, por uma das insistentes visitas que os jovens de antigamente faziam, aos domingos à tarde, nos presídios. O Reve não era um preso qualquer, e sim um elemento de alta periculosidade para a sociedade, mas ainda assim, uma moça de nossa igreja o conquistou o coração dele para Cristo e para si. Muitas celebrações o tiveram como figura principal, igrejas disputavam o seu testemunho, pessoas se emocionavam ao ouvi-lo.

Pois bem, o Reve resolveu fazer seminário e se formou em bacharel em teologia após cinco longos anos. Tempos depois de formado, ainda fazia das memórias do seu estágio anterior o carro chefe das suas pregações evangelísticas. Um dia, um encontro rápido que teve com um amigo, também já falecido, porém, frequentemente citado neste blog, ouviu dele a seguinte reprimenda: Até quando você vai pregar sobre a sua conversão? Será possível que depois disso, passados tantos anos, Deus não fez mais nada de novo e extraordinário na sua vida?  O Reve meditou por breves momentos e disse: Você tem razão, nunca mais pregarei sobre o que Cristo fez comigo. Isso pode ser interessante e espetacular, mas o que elas realmente precisam ouvir é o que Cristo pode fazer por elas agora.  O Reve teve uma conversão dentro da sua conversão, e partir de então se tornou um verdadeiro líder religioso, e uma coluna de fé inabalável dentro da sua igreja. (continua)

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O que é CONSCIÊNCIA III

Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. I Coríntios 9.2ss

Adoração do Cordeiro, Jan van Eyck 
Paulo de forma alguma se prende às normas escritas na lei judaica e tampouco às que foram recomendadas pelos notáveis de Jerusalém no primeiro concílio da igreja. O que prende a sua consciência é a sua relação com Deus e com os irmãos das igrejas que fundou. O que se percebe nesta relação não é um modelo rígido e aplicável igualmente a todas as comunidades, mas sim uma relação flexível, que é mais consistente com o ministério de Jesus e com o próximo do que as regras estabelecidas pela igreja primitiva.  Neste tipo de relação as leis escritas não são inúteis, mas perdem o caráter absoluto que adquiriram aos olhos dos fundamentalistas.



Paulo teve um longo tempo para refletir sobre a nova liberdade em Cristo, no tocante à relação com os gentios e fez a seguinte constatação: Quando os pagãos, que não possuem uma lei revelada, fazem naturalmente o que manda a lei e se servem da lei mesmo sem conhecê-la, mostram que a lei está escrita em seus corações, pois realizam obras intencionadas pela lei. A sua consciência, neste caso, também dá o seu testemunho, assim como os seus julgamentos interiores que acusam e justificam. (Rm 2.14s) Com isso ele afirma que o julgamento de Deus não tem por mérito o que a lei teoriza sobre o bem e do mal, mas a sua aplicação na prática. Esta sim é determinante, porque vai além da lei escrita, atingindo a consciência de se estar ou não de acordo com a vontade de Deus. Foi assim que Adão, que não tinha lei, ao não cumprir com a vontade de Deus, teve consciência da sua nudez e fugiu da sua presença. Paulo conclui dizendo que o projeto de Deus está inscrito no coração de cada homem, antes mesmo que a revelação divina o alcance. Mesmo que Deus não tenha sido reconhecido como criador, e mesmo que não haja lei revelada, o homem nasce em diálogo com Deus, e frente à sua ação reage ao seu projeto: porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. (Rm 1.19ss)

A consciência é depurada, nutrida e provada no culto. A epístola aos Romanos normamente emprega o termo consciência num contexto sacrificial. Os sacrifícios do Primeiro Testamento não tinham o poder de tornar pura a consciência daquele que fazia o sacrifício, pois se estes tivessem possuídos deste sentimento, deixariam de fazer sacrifícios. Mas ao contrário, ano após ano renovam a lembrança dos seus pecados, uma vez que o sangue de touros e de bodes não pode purificá-los. O sangue de Cristo, sim, purifica a consciência de todo o pecado, considerando-os como obra morta, para que possamos render culto ao Deus Vivo. Essa purificação se inaugura com o batismo, pois, segundo Pedro, é o batismo que firma o compromisso com Deus de uma boa consciência redimida pela ressurreição. Em resumo: só o sangue de Cristo e a sua ressurreição tornam possível uma consciência pura: ...a qual, figurando o batismo, agora também vos salva, não sendo a remoção da imundícia da carne, mas a indagação de uma boa consciência para com Deus, por meio da ressurreição de Jesus Cristo. (IPe 3.21)

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O que é CONSCIÊNCIA? II

Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas. Tito 1.15)

Pedro e visão do lençol, Henry Davenport
Enquanto a lei judaica impõe à consciência a escolha entre uma comida e outra, entre uma festa e outra, entre um gesto e outro, a liberdade cristã nos assegura que para o cristão tudo é puro, tudo é lícito e tudo é permitido. É pela fé que o home adquire a consciência que o faz reconhecer a bondade é inerente a todas as criaturas de Deus: Vocês podem comer de tudo o que se vende no açougue, sem terem nenhuma dúvida de consciência. Pois, como dizem as Escrituras Sagradas: “A terra e tudo o que nela existe pertencem ao Senhor.” Se alguém que não é cristão convidá-los para comer, e vocês resolverem ir, comam o que for posto na frente de vocês e não façam perguntas por motivo de consciência. (I Co 10.25ss)


O cristão que tem uma consciência esclarecida encontra-se liberto frente às prescrições de qualquer lei, rito ou dogma, pois ele entende e crê que “Onde está o Espírito do Senhor, ali está a liberdade”. Não uma liberdade que é pura e simplesmente do indivíduo, mas que se avulta na medida em que é plenamente independe do julgamento de uma consciência alheia. É desta forma que o cristão, em um modo bastante específico, se torna um estoico, porém, dentro de limites que precisam ser muito bem precisados.

Embora Paulo afirme categoricamente que tudo é permitido, ele imediatamente ressalta que não são todas as coisas que se prestam à edificação da igreja. A liberdade de consciência pode e deve ser individual, mas o processo de edificação tem que abranger necessariamente todos os membros da comunidade. É sabido que nesta comunidade de libertos pode muito bem haver conflitos entre consciências que não evoluíram igualmente na mesma proporção. Pode ser que, na visão de alguns cristãos, certos alimentos sacrificados a ídolos ou certas atitudes oriundas do paganismo, continuem sendo impuras. Portanto, para não ferir a frágil consciência destes irmãos ou irmãs, o cristão mais esclarecido deve fazer todo o possível para não aviltar a consciência daquele que ainda não alcançou o seu grau de consciência. Não vá com a tua comida ou bebida fazer com que se perca aquele por quem Cristo também morreu: Se você faz com que um irmão fique triste por causa do que você come, então você não está agindo com amor. Não deixe que a pessoa por quem Cristo morreu se perca por causa da comida que você come. Não deem motivo para os outros falarem mal daquilo que vocês acham bom. (Rm 14.15s) Tudo é puro e bom, sem dúvida, mas se torna impuro e mau quando representa motivo de queda. Paulo escreveu o capítulo 13 de I Coríntios para deixar bem claro que toda consciência, fundamentada na fé em Cristo, deve se render antes ao amor fraterno do que propriamente ao seu grau de esclarecimento.

A consciência também deve por limites à liberdade em razão da presença divina que lhe dá sentido. “Eu posso fazer tudo que quero”, retomou Paulo continuando a falar aos coríntios, e acrescentou: “Mas não vou deixar que nada me escravize”. Quem se une espiritualmente ao Senhor, se torna uma só pessoa com ele. Por esta simples razão o cristão não pode unir o seu corpo a o de uma prostituta, pois, embora livre, o corpo não lhe pertence, é usado por Deus como seu templo, uma vez que lhe foi oferecido em sacrifício. A consciência e a liberdade estão, deste modo, limitadas por alguém que inicialmente me aparece como um outro que não sou eu, mas que, pouco a pouco, se revela através da fé como aquele que me fazia falta, mas que agora, na verdade, me completa e me faz ser uma pessoa inteira. (continua)

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O que é CONSCIÊNCIA? I

Paulo no Areópago, Mariano Fortuny (1871-1949)
Se em nossa língua o termo tem diversos significados, na Bíblia ele significa a faculdade intuitiva pela qual se julga um ato realizado ou a realizar. Mais do que a ciência teórica do bem e do mal é o julgamento prático pelo qual se considera se algo foi para mim bem ou mal. Contudo, a Bíblia não teve uma palavra própria para designar a consciência antes do contato com a cultura grega. A palavra syneidesis só aparece nos deuterocanônicos como sendo um julgamento interior do mal. Está ausente nos evangelhos, mas Paulo o usa com muita frequência, o que nos possibilita comparar os três pensamentos que escreveram o Segundo Testamento: o hebraico, o grego e o paulino.

Quando queria fazer referência ao que chamamos de consciência, o hebreu não a atribuía ao coração e sim aos rins, pois este era o centro nervoso dos seus sentimentos, como também o orgão que é constantemente sondado por Deus. Mas nem sempre o julgamento da consciência depende da presença de Deus. Jó a declara diante dos seus acusadores, e perante Deus a sua justiça: À minha justiça me apegarei e não a largarei; não me reprova a minha consciência por qualquer dia da minha vida. (Jó 27.6) É ele quem primeiro declara: Meu coração não me acusa, mas ele tem que se arrepender no pó e na cinza. (Jó 42.6) Por mais que Jó prezasse a sua consciência, como fazia diante dos seus amigos, ainda assim não se sentiu capaz de avaliar o mistério de Deus através dela.

Diversamente à justiça e Jó, exaltada por Jesus, a dos fariseus era condenada, pois era projetada unicamente a uma prática material da lei. Jesus não faz por abolir a lei, mas ele mostra que é a consciência pura quem deve regê-la. Jesus ensinava os seus discípulos a julgar com o coração, tendo uma consciência cada vez mais livre, para conseguir alcançar o estado de graça onde a sua consciência dominará plenamente a nossa: Assim já não sou eu quem vive, mas Cristo é quem vive em mim. E esta vida que vivo agora, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se deu a si mesmo por mim. (Gl 2.20)

Paulo toma por empréstimo a palavra syneidesis, mas não o faz das fontes literárias do pensamento grego e sim da linguagem religiosa da época. Esta deve exprimir o julgamento como reflexo da noção bíblica de coração. Esta passagem fica bem perceptível quando ele escreve a Timóteo: Ora, o intuito da presente admoestação visa ao amor que procede de coração puro, e de consciência boa, e de fé sem hipocrisia. (I Tm 1.5) Coração, consciência e fé devem estar obrigatoriamente presentes em todas as atitudes, mesmo as mais caridosas. Se a intenção é reta, se a fé proporciona uma convicção sólida, então a consciência estará satisfeita. Assim o coração do cristão obedece a autoridade secular não por medo da punição, mas pela consciência e pela fé que julgam se esta autoridade está ou não a serviço de Deus.

Porém, a consciência do cristão não é autônoma, ela tende a se libertar cada vez mais em virtude do conhecimento que se adquire e pelo aprofundamento da fé. O julgamento da sua consciência está sempre sujeito ao julgamento de uma consciência maior. Paulo, em pleno acordo com Jó também dizia: Mas para mim não tem a menor importância ser julgado por vocês ou por um tribunal humano. Eu não julgo nem a mim mesmo. A minha consciência está limpa, mas isso não prova que sou, de fato, inocente. Quem me julga é o Senhor. (I Co 4.4) Para este apóstolo, ter boa consciência significa ter o testemunho do Espírito: O que eu digo é verdade. Sou de Cristo e não minto; pois a minha consciência, que é controlada pelo Espírito Santo, também me afirma que não estou mentindo. (Rm 9.1) A consciência não é um deus autônomo e somente poderá se qualificada como boa e pura se for autenticada pela fé: ...antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor, com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, ...(I Pe 3.16s) (continua)

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Sabedoria, estatura e graça

E crescia Jesus em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus e dos homens. Lc 2,52
Jesus entre os doutores, José de Ribera (1591-1652)
A despeito de toda a especulação que há milênios se faz da adolescência e da juventude de Jesus, Lucas as narrou em um breve resumo de apenas três palavras que praticamente dizem tudo aquilo que necessitamos saber. Em Gálatas 4.4, Paulo já havia antecipado que nada de sobrenatural acontecera com Jesus desde o seu nascimento até o seu batismo por João Batista, no rio Jordão. Paulo também foi objetivo em suas palavras quando disse que Jesus havia nascido de mulher, como todo mundo, e, como todo mundo também, havia nascido sob a lei.


Embora Lucas tenha feito a síntese da síntese, não deixou de fora nenhuma virtude que bons pais almejem para os seus filhos. Não é a toa que este versículo é o mais repetido em cerimônias de batizado ou de apresentação de crianças, porque isto é o melhor que a igreja pode desejar ao novo potencial membro de sua comunidade: um crescimento em sabedoria, estatura e em graça, diante de Deus e diante dos homens. Porém, pode ser que esta simples frase contenha um paradoxo enorme. Pelo menos, por tudo que foi escrito neste blog até então e por todo consenso do evangelho e da Bíblia como num todo, ninguém pode agradar a Deus e aos homens ao mesmo tempo. É fato que nem mesmo Jesus conseguiu esta façanha, embora o testemunho de Lucas, calcado em minuciosa pesquisa, assim o apresentasse.

Logicamente que a essência do paradoxo não está nas palavras sabedoria ou estatura. Pode muito bem uma pessoa crescer nestes dois aspectos e continuar atraindo para si a admiração dos homens e ser um servo aprovado por Deus. A pessoa pela sua altura ou pela sua cultura pode, quando muito, ser invejada, mas nunca discriminada. A palavra de peso que faz toda a diferença na narrativa de Lucas é a palavra graça. Ela sim suscita uma inominável questão: como uma pessoa pode ser aprovada por Deus, ao mesmo tempo cair na graça dos homens? Porque crescer em graça nada tem nada a ver com a investida tentadora iniciativa que todos temos de cair nas graças, agradar, ser admirado ou exaltado pelos homens. Crescer em graça é muito mais sério e evoca muito mais responsabilidades do que ser bonzinho ou de vir a se tornar um exemplo de conduta. Crescer em graça significa ser um canal cada vez mais presente da graça de Deus no mundo. Isso sim é algo que agrada plenamente a Deus e é de sumo benefício para todos os homens, mesmo que eles não venham a saber ou que de antemão rejeitem tal graça.

Ser canal da graça jamais irá nos render qualquer mínimo prestígio. Dificilmente, a não ser por interesses estranhos aos princípios da graça, estaremos em destaque na mídia ou atrairá sobre nós a os atributos necessários para que os homens nos exaltem. Pelo contrário, estaremos cada vez mais percorrendo o caminho do anonimato e as sendas da obscuridade. Quem pode nos dizer se não foi justamente por crescer tanto na graça de Deus que os homens fizeram com que a adolescência e a juventude de Jesus passassem em branco pelos registros da história?

Sei bem que se torna muito complicado para um pai ou uma mãe desejarem esse tipo de crescimento para os seus filhos. Mas sei também que é a única maneira pela qual o mundo pode vai a ser transformado pela graça. O crescimento em estatura e em sabedoria cedo encontram os seus limites, mas o crescimento em graça não conhece fronteiras, limitações ou sequer razões que justifiquem tamanha abrangência. É assim a graça de Deus, tão misteriosa quanto necessária. Tudo aquilo que podemos entender a respeito dela, Deus nos fez conhecer através da boca do poeta português Fernando Pessoa:
  
“Se eu te pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei.”


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Uma coisa faço

Irmãos, quanto a mim, não julgo havê-lo alcançado; mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Filipenses 3,13s
Paulo preso em Jerusalém,
Henry Davenport (1836-1909)
A única palavra de consenso quanto ao que se refere à situação da igreja cristã nos dias de hoje é a palavra crise. Seja ela uma simples e humilde denominação de apenas uma congregação ou o maior conglomerado de fiéis que se reúne sob o comando de um pontífice, estão igualmente mergulhadas naquilo que costumamos chamar pejorativamente de crise. Contudo, apesar de encerrar conotações extremamente negativas, crise para esta igreja não pode ser considerada nem novidade, ou, tampouco, raridade. Desde o primeiro dia em que Maria, a nossa amada virgem, teve conhecimento de que conceberia o Filho de Deus, e que este viria para transtornar a ordem vigente, a crise atrelou-se a esta iniciativa de Deus para nunca mais abandoná-la. E o mais curioso, que é uma crise de mão dupla.

Observemos o ministério de Jesus. Quando este não estava em crise pela perseguição, pela cassação da sua palavra, pelo desprezo às suas mensagens ou pela negação definitiva dos seus sinais, experimentava uma crise interna entre os discípulos que disputavam acirradamente o poder, que oravam para que descesse fogo do céu e consumisse todos os inimigos ou que não entendiam os propósitos de Deus. A igreja herdou esta crise e a tem vivido intensamente, ora na mão do plano de salvação, cumprindo integralmente a vontade de Deus, ora na contramão desta história, esquecendo-se da sua verdadeira vocação e cumprindo integralmente a vontade dos homens. Parece que nunca experimentamos outra situação a não ser a crise, por que alguém imaginaria a possibilidade de ser diferente para nós hoje? Por que alguém teria a pretensão de ver o fim desta crise antes da implantação completa e definitiva o Reino de Deus?

Não somos chamados para por fim a crise, nossa vocação não é para sermos bombeiros de crise, Cristo não nos salvou para que vivêssemos acima do bem e do mal. Fomos sim lançados sozinhos no olho do furacão, no centro da crise. Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos, disse o nosso mestre. O nosso problema é esse: O que fazer? Como se comportar? E o que priorizar na crise? Uma vez que temos a certeza de que vamos ter que conviver com ela. Ainda bem que temos uma igreja só, imaginem a situação de Paulo com as suas diversas igrejas em crise, e ele sendo mantido em cativeiro. Se a nossa situação hoje exige que tomemos medidas drásticas, tal como a troca de comando na esfera superior da autoridade, o que restaria a Paulo fazer?

Bem, antes que percamos parte do nosso tempo ou a integralidade da nossa fé na busca da solução desta crise, analisemos tudo aquilo que ele fez ou que se mostrou disposto a fazer: Uma coisa faço. Única e exclusivamente uma coisa, deixando para trás a sua crise atual, ele prosseguia para outra que estava adiante dele, e fazia isso indefinidamente, até sabe Deus quando. Uma coisa faço. Paulo aconselhou a Igreja de Filipos a deixar para trás os inimigos da cruz de Cristo, aqueles que se mantinham no poder aproveitando-se da crise, aqueles que se alimentavam e engordavam com a crise, aqueles que seguiam o deus que habitavam as suas barrigas e caminhassem em direção à pátria celestial, seguindo apenas o seu modelo: fazendo apenas isso.

Que as nossas igrejas, sejam elas suntuosos templos ou barracos de pau a pique possam seguir este modelo que deu certo. Que elas não se deixes abater pelo tamanho das suas crises, seja ela interna ou externa, não importa. A solução é sempre a mesma. Quando o Israel esteve na sua maior crise, tendo atrás de si o poderoso exército da escravidão e à sua frente um mar de dificuldades e empecilhos, ouviu de Deus uma única ordem: Diga ao meu povo que marche, que vá em frente.

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A história não perdoa

Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um dos principais dos judeus. Este, de noite, foi ter com Jesus e lhe disse: Rabi, sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele. João 3.1ss
Jesus e  Nicodemos, Crijn Hendricksz (1601-1645)
Esta é a narrativa de um fato incomum nos evangelhos: o encontro de Jesus com um dos chefes dos judeus. Não um chefe qualquer, mas um dos principais dos judeus, um homem de grande influência no Sinédrio judaico, um homem que havia reconhecido e acreditado na sua divindade e na sua ligação estreita com Deus. Seria um encontro a ser celebrado pela igreja, pois este encontro representou um avanço exponencialmente grande nos relacionamentos travados por Jesus, um mestre rabínico que costumava ser seguido pela escória do povo, por prostitutas e publicanos. Um encontro que até então se julgava impensável. Poderíamos tomá-lo hoje como exemplo da flexibilidade do poder ante a mensagem de Jesus, como demonstração da vontade dos poderosos em acatar o ensino do Mestre.


Poderíamos isso e muito mais, não fosse um pequeno detalhe percebido pelo evangelista e acrescentado à narrativa. Um pequeno detalhe que tirou todo o brilho da iniciativa de Nicodemos. João percebeu que ele foi ter com Jesus à noite, às escondidas. Nicodemos foi ao encontro da Palavra do Deus Vivo, fato para ele incontestável, munido não só de plena convicção, como também de muitos argumentos e após ter testemunhado sinais inequívocos da ação do Espírito de Deus na sua vida. Nicodemos reconheceu a sua autoridade de mestre em Israel, mas o fez de modo escuso, e isso a história não perdoa.

Ainda neste evangelho, em um fato posterior, onde narra uma iniciativa voluntária de Nicodemos, João vai novamente mencionar este delito: E também Nicodemos, aquele que anteriormente viera ter com Jesus à noite, foi, levando cerca de cem libras de um composto de mirra e aloés. (Jo 19.39) Para a história não importa muito um presente de realizações, pois ela vai à caça do que está registrado na vida pregressa. O “cá entre nós” não existe e nunca existiu para ela, que sempre corre atrás de tudo o que foi vivido e de todos os fatos que contaram com a colaboração ou a anuência dos personagens que ela destaca. A história esteve sempre alerta para acrescentar um senão ao ato mais criativo e magnânimo que o ser humano já foi capaz de executar. Não foi diferente com Moisés, Paulo, Lutero, Agostinho de Hipona, Francisco de Assis, Martin Luther King e tantos outros. O Papa Francisco vão poderia esperar que fosse diferente com ele. A história imediatamente levantou suspeitas sobre a vida e a obra de Jorge Bergoglio, mesmo antes que este se dispusesse a aceitar o ministério cristão.

Este é um elemento que pode servir muito bem aos propósitos da história, mas ele não tem a menor relevância dentro da fé que se diz cristã. O movimento iniciado por Jesus visava ficar com os frutos podres da cesta que o profeta Ezequiel recusou comer. Visava justificar de alguma forma o publicano indigno de levantar a cabeça. Visava perdoar a adúltera sobre que não tinha qualquer atenuante. Não, não importou para Jesus a hora ou as circunstâncias da visita de Nicodemos. A mensagem que Jesus tinha para ele não iria mudar. Jesus iria lhe falar sobre um novo recomeço, lhe dar uma nova oportunidade, lhe propor um novo e incondicional renascimento. Pode ser que seja uma coisa complicada de se lidar, difícil de digerir, mas para a fé cristã não importa se alguém foi um assassino como Paulo, um covarde como Pedro, um delator como Judas, um dissimulado como Nicodemos. O que importa é nascer de novo, e isso serve tanto para o maior perseguido pela história, como o completamente esquecido por ela.

Eu vejo um brilho diferente sobre a igreja de Deus. Não sou dado a ter visões alucinatórias ou sonhos reveladores, mas sinto que há no ar uma vontade recomeçar, um desejo de reconstruir, uma ânsia por reforçar as fendas da muralha. Isso para a história pode ter vários nomes, como arrependimento, remorso, sentimento de culpa ou reparação, mas para a fé cristã, esta vontade que nasce do impossível e do improvável só tem um nome: chama-se graça. E ela só aceita quem é indigno de ser aceito.

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O que é PONTÍFICE?

Judeus orando no Yom Kippur,
Maurycy Gottlieb (1856-1879)
Apesar de completamente estranho ao linguajar evangélico, principalmente o originário da reforma, o termo grego archiereis, que foi traduzido por pontífice, ocorre sessenta e duas vezes no Segundo Testamento, como também diversa vezes em escritos de Flavius Josefos. Alguns teólogos afirmam ainda que este termo é plural de arquiereus, que ocorre mais trinta e oito vezes neste Testamento. A palavra pode traduzida literalmente por sumo sacerdote, aquele que estava à frente das celebrações máximas do Judaísmo, inclusive do ato extremo do Yom Kippur ou Dia do Perdão. Foram consideradas pessoas extremamente perigosas aos interesses do Império Romano como homens, que uma vez tendo consolidado seu domínio sobre a Judeia, ordenou que Herodes, o Grande, depusesse todos os que haviam ocupado este cargo, como também os principais membros das famílias sacerdotais, colocando em seus lugares pessoas da sua confiança.

Já há muito que os sumos sacerdotes do judaísmo eram escolhidos, mas pelos critérios da escolha passavam não somente o candidato como também a sua família e a sua história. Mais tarde, principalmente sob a influência romana, eram escolhidos dentre os membros do Sinédrio, constituindo assim parte de um grupo que era encarregado da administração do prédio e das finanças do Templo de Jerusalém. A este colegiado pertenciam também o segundo em comando, que era chamado de comandante do templo: Falavam eles ainda ao povo quando sobrevieram os sacerdotes, o capitão do templo e os saduceus. (At 4.1), como também os chefes das vinte e quatro turmas de sacerdotes que se revezavam nos serviços diários, os superintendentes e tesoureiros.

Por diversas vezes eles são citados entre os grupos de anciãos, chefes dos judeus, escribas e fariseus. Esse era o conjunto das autoridades judaicas. Para Lucas, no entanto, ele era o expoente máximo de toda autoridade. Mesmo com a destruição do Templo pelos romanos em 70 d.C., os sumos sacerdotes não perderam totalmente o seu prestígio. Atos 14.19 mencionar um sumo sacerdote em Éfeso: Os que faziam isto eram sete filhos de um judeu chamado Ceva, sumo sacerdote. Bem mais tarde, os livros das Antiguidades Judaicas citam a presença de um sumo sacerdote no Egito.

É do caos total que Deus inicia a sua criação. Quem, no tempo de Jesus, iria imaginar a atuação de um sumo sacerdote além das fronteiras da Cidade Santa? Quem poderia imaginar que a autoridade deste sacerdote iria ser um dia reconhecida em outro país. Deus da destruição total do templo, inaugurou o sacerdócio uniu versal de todos aqueles que nele creem, mas deixou bem claro que na hierarquia cristã, o mais importante é aquele que serve. Que o primeiro no seu Reino é aquele que coloca os outros à sua frente. E mais ainda: aquele a quem muito se dá, muito será cobrado. O Papa Francisco, que é conhecedor profundo de todas essas propostas da fé cristã, há de cumpri-las e de fazer com que a sua igreja as cumpra. Isso já seria o bastante para que a sua autoridade fosse reconhecida e respeitada por fronteiras além do Vaticano. 

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Crer no que está escrito

Bodas de Caná, Murillo em 1672
A primeira palavra desta postagem de hoje é uma saudação aos nossos irmãos católicos que estão eufóricos, não sem justa razão, pela eleição do primeiro Papa não eurasiano da história do Cristianismo. Papa Francisco, que pela simpatia e simplicidade demonstrada até então, já conquistou a admiração de muitos que não professam esta denominação. Estamos orando para que seja ele o enviado de Deus que irá reconduzir a novos e mais grandiosos rumos este crucial segmento do rebanho de Cristo. Oramos também para que seja ele, aquele que vai irá preparar esta amada igreja para enfrentar os desafios que a modernidade apresenta diariamente. Que muito mais que um inusitado Papa, Deus lhes dê uma nova e radical esperança.

Certa vez Jesus disse aos que lhe faziam oposição: Mas, se vocês não acreditam no que está escrito, como vão acreditar no que eu digo? (Jo 5.47) Observem que ele disse isso a um grupo que estava plenamente satisfeito com a sua situação religiosa, a qual não só lhes rendia muito prestígio como também uma infinidade de elogios e condecorações. Não entendo bem o significado real destes aparatos para o Judaísmo de hoje, mas longas franjas nas vestes e longos filactérios, destacavam sobremaneira aqueles que podiam reconhecidamente ostentá-las. Ou seja, Jesus comprou briga contra gente grande.

Tenho pra mim que a primeira determinação de um Papa recém eleito é deixar em testamento que não aprova e nem aprovará de forma alguma a sua indicação ao beatificado. Carol Wojtyla disse isso mesmo antes de se tornar o Papa João Paulo II. Nenhum cristão minimamente sério aceita ser glorificado pelos títulos que possui ou pelos cargos que ocupa. A prescrição de João Batista continua valendo: Importa que ele cresça e eu diminua. Tenho para mim que na escolha de uma Papa o seu conteúdo teológico é elemento de estrema importância. Bento XVI continua sendo considerado um dos maiores teólogos católicos que ainda vive. Ou seja, a Igreja Católica está seguindo direitinho o catecismo: Para conhecer Jesus é preciso ler muito e meditar exaustivamente no que está escrito sobre ele. É exatamente esse o prestígio que conta e é esta a condecoração justa para um seguidor de Cristo. Zepp orava da seguinte maneira: Que Deus nos ajude a sermos populares no lugar onde a popularidade realmente conta: junto ao seu trono.

A questão do conhecimento era de suma importância também para Paulo. Ele chegou a dizer o que hoje nas nossas igrejas não passa de uma abominável heresia: Para se alcançar o objetivo extremo da mensagem de Cristo, que é a salvação pela fé, é preciso conhecer bem o que as Escrituras falam dele. Paulo vem contrariando todo essa teologia que prima pela retribuição e pelo louvor com palavras duras e pouco digeríveis: Porque as Escrituras Sagradas dizem: “Quem crer nele não ficará desiludido.” “Todos os que pedirem a ajuda do Senhor serão salvos.” Mas como é que as pessoas irão pedir, se não crerem nele? E como poderão crer, se não ouvirem a mensagem? E como poderão ouvir, se a mensagem não for anunciada? (Rm 10.11,13 e 14) John Wesley praticamente condicionou a adesão ao movimento metodista à leitura. Em outras palavras, como gostava de citar sempre o meu saudoso amigo João Wesley Dornellas: Metodista: ler ou não ser.

Além de cutucar fundo a questão do conhecimento, Wesley contaria o que pensa a esmagadora maioria dos metodistas de hoje sobre a fé católica. Se os metodistas tivessem lido apenas o que Wesley disse, veriam o que ele pensa a respeito da maior contradição que existe entre protestantes e católicos. Disse ele simplesmente: Creio que [Jesus] foi feito homem, unindo a natureza humana à divina em uma só pessoa; sendo concebido pela obra singular do Espírito Santo, nascido da abençoada Virgem Maria que, tanto antes como depois de dá-lo à luz, continuou virgem pura e imaculada(Carta dirigida a um amigo católico - 18/07/1749)

Se os protestantes, evangélicos ou neopentecostais lessem mais sobre o que Cristo falou, creriam piamente que o que nos une aos católicos é algo muito maior do que todas as besteiras que tentam nos separar.

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