Ação de graças II

Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco. I Tessalonicenses 5.16-18
Guerra civil americana, George Caleb Bingham (1811-1879)
Quais são as alegrias dessa vida? Algumas pessoas que já chegaram à chamada idade da razão dizem que para alcançar a felicidade precisamos apreciar mais a vida. Mas qual seria o gozo de vida que nem o tempo pode tirar ou sequer diminuir? Esses idosos tem certa razão, porque passamos avisa ansiosos demais, preocupados com tudo. Não temos tempo nem para apreciar as coisas que nos fazem bem. Antes de ir à Flórida pela primeira vez, imaginava que lá era o Paraíso. Que decepção! A Flórida é a terra das viúvas ricas. Das viúvas cujos maridos morreram do coração pela preocupação única de acumularem riquezas.


A vida é preciosa demais para perdê-la para um ataque de coração. Vejam o que disse um homem que, depois de um infarto que quase o matou, descobriu uma nova dimensão de vida: Depois eu fui dominado completamente por um senso de vida vigorosa que eu não conhecia antes. Eu vi tudo de novo. No leito do hospital olhei para as minhas mãos e pela primeira vez reparei como elas eram magníficas. Daí para frente, cada objeto que eu via me jogava numa experiência nova e notável. Quando vi o vento aplainar o capim alto do jardim vi algo muito mais além do que o resultado lógico das leis da natureza. E eu que iria morrer de uma causa tão comum que quase ninguém mais hoje em dia se espanta. Mas agora eu vivo espantado com cada coisa mínima que meus olhos veem, pois elas se tornaram um dom especial de Deus que trazem lágrimas aos meus olhos.

A beleza desse mundo criado por Deus, seus sons, suas cores, os nossos relacionamentos e sentimentos são retornos extraordinários que jamais podemos tomar por comuns. Apesar disso, são poucos os que são realmente gratos a Deus por viverem nesse mundo. Como é conosco? Somos pessoas que simplesmente veem o mundo como uma sucessão natural de fatos ou como maravilhas da criação de Deus?

Em terceiro lugar. Damos graças a Deus não somente porque ele nos desafia a possuir novamente o espírito de surpresa e entusiasmo de uma criança, e não somente porque possuímos o gozo de vida nesse mundo. Mas damos graças a Deus porque temos recebido o dom da fé e um coração confiante. É isso que propicia as ações de graça anteriores. Mas só é possível a fé que possuímos e o coração confiante que temos porque temos sido amados por Deus e temos sido amados pelos outros. Esta é a boa notícia do evangelho: somos amados por Deus. Nós amamos uns aos outros como somos porque temos sido amados por Deus a despeito do que somos.

Certa vez uma mulher destruiu o carro do marido num acidente. Ao abrir o documento do veículo encontrou uma nota escrita por ele, que dizia: não importa, é você que eu amo. E é exatamente isso que Deus está nos dizendo: não importa o quanto você tem destruído a sua vida, não importa o quanto temos falhado, não importa o quanto o temos decepcionado, como também não importa o quanto temos acumulamos de sucessos e riquezas. Você está recebendo todo o amor, estamos todo recebendo toda a misericórdia, estamos recebendo todo o perdão daquele que entregou o seu próprio Filho, para que vocês tenham vida plena. Deus mandou seu Filho para salvar o mundo e não para julgá-lo. Que diferença isso faz. Ele não quer punir ninguém, ele não está bravo com ninguém, ele não quer excluir ninguém, ele não quer mandar ninguém para o inferno. Ele quer nos perdoar, aceitar e amar.

Por isso é que o Dia de Ação de Graças não pode ser assim tão especial para nós. Ele deve apenas coroar todos os dias que somos gratos a Deus por todas as coisas, inclusive pela oportunidade que temos de sermos gratos.

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Ação de graças I

Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Mateus 6;31ss

Olhai os lírios do campo, Tiffany Studio, 1910
A tragédia maior da vida não é a falta de saúde, de dinheiro ou de beleza. Não é a falta de grandes habilidades, o desapontamento com o casamento ou o emprego cansativo. Por mais dolorosas que essas coisas sejam, a tragédia maior da vida ainda é outra: é o desaparecimento gradual da visão que tínhamos na juventude. É a morte daquele espírito de surpresa e entusiasmo que possuíamos quando criança. A mágoa que toma conta da gente é a morte daquele gozo profundo no mundo e na vida. É a morte do coração puro, da fé confiante, da alegria divina que efervescia dentro de nós.”

Acabei de transcrever o que um autor desconhecido escreveu, e o que penso ser bastante negativo. Ainda sob o impacto da celebração do Dia Nacional de Ação de Graças, eu gostaria de usar o pessimismo dessa pessoa para confirmar o ato de gratidão que nós, os cristãos protestantes, celebraram no culto de ontem à noite. Primeiramente damos graças a Deus porque a fé cristã nos desafia a possuir o espírito de surpresa e entusiasmo que tínhamos quando criança.

A criança é um ser espetacular. Para ela a vida é um jogo, e um jogo interminável. Rapidamente o tapete vira um barco, a cadeira se transforma numa fortaleza, e tudo acontece numa viagem de fantasia e pretensão. Quem já teve a oportunidade de andar com uma criança na rua por um tempo sabe bem disso, mas sabe também que é preciso muita paciência e tempo. O caminho pode não ser longo, mas vai levar mais tempo que o normal, pois ela para para ver uma formiga, para pegar uma flor para nos mostrar, e se tiver uma poça d’água então, não sairemos dali enquanto ela não pular de um lado para o outro pelo menos umas 10 vezes. Crianças são naturais com suas professoras, com suas amigas e com todo mundo. Elas relatam para qualquer um a conversa mais íntima que a família jamais se pensou que seria revelada em público. Elas não aprenderam como escamotear os fatos nem a fingirem que eles não aconteceram.

Jesus disse que devemos aprender com elas, pois somos sérios demais. Estamos sendo consumidos pelas responsabilidades. Já nos esquecemos de como é bom dar uma boa gargalhada, de como assobiar uma música que gostamos, de rir de nós mesmos quando erramos. Um pastor que era muito criticado pela sua maneira de brincar com tudo. No meio da mensagem mais dura, quando falava sobre a teologia mais séria, ele fazia sempre uma piada. Igual a todos que são assim, criou inimigos ferrenhos. Se ele fosse levar a sério as críticas que recebi teria que abandonar de vez o seu ministério. Certa vez, um dos seus críticos lhe escreveu uma carta que estava escrito somente a palavra idiota. No domingo seguinte ele falou à igreja sobre a carta sem dizer o conteúdo dela. Disse apenas: recebi esta semana uma carta diferente de todas as outras. Já recebi cartas em que os autores escreveram o texto, mas se esqueceram de assinar seus nomes. Nessa, o autor se esqueceu de escrever o texto. Assinou apenas o seu nome. Vou deixá-la aqui para que ele a conserte. Esse é o espírito que de uma criança. Assim ela agiria nessa situação.

Em segundo lugar agradecemos a Deus por esse nosso mundo. Está certo que ele tem muita coisa nessa vida que eu não gosto. Existe muita coisa que eu detesto. Mas mesmo assim, após as várias tentativas frustradas de melhorá-lo, eu agradeço por estar vivo. É glorioso viver. É bom levantar todo dia e reconhecer que Deus está conosco. Eu estou cada vez mais convicto de que a marca maior do Cristianismo é a alegria da comunhão. Quando vocês me virem de cara feia e emburrada podem ter a certeza de que minha fé está em baixa. A prova de que eu estou bem com Deus e com os outros é a alegria.

A coluna aberta de um jornal apresentou a seguinte carta de uma adolescente: a felicidade está no conhecimento de que seus pais não vão lhe matar se você chegar em casa tarde. A felicidade está em ter o seu próprio quarto. A felicidade está na confiança que seus pais têm em você. A felicidade está em receber aquele telefonema que você estava esperando tanto. A felicidade está em ter pais que não brigam. A felicidade é algo que eu não tenho. E a assinou assim: quinze anos e infeliz. Mais interessante ainda foi a resposta que apareceu pouco tempo depois nesse mesmo jornal: a felicidade está na capacidade de andar, e está no poder de ver. A felicidade está na capacidade de falar e no poder de ouvir. A infelicidade está na carta de uma moça que pode fazer todas essas coisas e ainda diz que é infeliz. Eu posso falar, eu posso ver, eu posso ouvir, mas eu não posso andar. E a assinatura foi a seguinte: treze anos e feliz. (continua)

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E a mula falou

Reinos da terra, cantai a Deus, salmodiai ao Senhor, àquele que encima os céus, os céus da antiguidade; eis que ele faz ouvir a sua voz, voz poderosa. Leia Salmos 68
Texto do rev. Jonas Rezende

A mula e o anjo, Gustav Jäger (1832-1917)
A irreverência de Stanislaw Ponte Preta fez com que ele alterasse um ditado popular, para dizer: de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo.

Os que conhecem a Bíblia sabem que a voz de Deus fala ao homem de diversas maneiras. O escritor da carta aos hebreus nos informa que, havendo Deus falado aos pais, utilizando seus profetas, a nós nos fala, particularmente, pelo filho. E Jesus é apresentado no Evan­gelho como a palavra que se fez carne para viver entre nós. Já no salmo 19, Davi afirma que os céus falam do poder de Deus. Mas é verdade que a voz divina pode nos falar também através das tem­pestades, de um terremoto, do vulcão, dos profetas malditos, dos hereges, do povo, de um acidente, de um câncer, da própria morte. No Livro dos Números, Deus profetiza através de uma mula, a ju­menta de Balaão!

Não me pergunte como e por quê. Há quem diga que a cena foi uma alucinação de Balaão, o profeta. Que seja. Então Deus nos fala tam­bém através da loucura. E preciso, no entanto, corrigir Ponte Preta: de onde menos se espera, sempre pode vir alguma coisa boa.

O salmo que ora está diante de nossos olhos foi escrito por Davi, autor de metade dos poemas que compõem o Saltério bíblico. Nes­ta página, o rei canta a vitória de Deus sobre os que são inimigos da paz, da verdade e da justiça — uma tônica que percorre praticamente todos os salmos, que podem parecer variações sobre um mesmo tema. E é mesmo preciso falar o tempo todo sobre paz, verdade e justiça. Hoje, mais do que nunca.

A sensibilidade de Davi faz com que, além do conteúdo, suas poe­sias tenham também uma forma perfeita. Veja só como ele se dirige a Deus: pai dos órfãos e juiz das viúvas é o Senhor em sua santa morada. Deus faz que o solitário more em família; tira os cativos para a prosperidade... Bendito seja o Senhor que, dia a dia, leva o nosso fardo; Deus é a nossa salvação. O nosso Deus é o Deus liber­tador; com Deus, o Senhor, escapamos da morte.

E depois de afirmar que Deus faz ouvir a sua voz no mundo, o salmista convida toda a terra: tributem glória ao Senhor; a sua ma­jestade está sobre Israel, e a sua fortaleza nos espaços siderais.

E nesse contexto libertador e poderoso que Deus nos fala de dife­rentes maneiras, até mesmo através de uma jumenta.

Estou certo de que a Bíblia não é um livro destinado apenas à nossa razão. Creio mesmo que o silêncio da razão pode ser o espaço da fé. Afinal, diante dos mistérios do Universo, a força da razão huma­na não é muito diferente do que se passa na cabeça de um muar...

As vezes somos assaltados por uma dúvida: é mesmo a voz de Deus que está falando? Diante de porta-vozes tão estranhos ou desones­tos, a dúvida é mesmo salutar. Como no bizarro episódio de Balaão, há apregoadores que são menos confiáveis que um jumento. Como saber então se estamos senào alcançados pela voz divina?

Como Deus pode nos falar, a despeito das mais estranhas e até ab­surdas circunstâncias, proponho um tipo de prova,mais elucidativa do que a chamada prova real ou a prova dos nove,para saber quan­do ele realmente nos fala. Acima de tudo, minha prova é muito simples. Nas palavras de uma bela canção católica:

Onde há o amor, Deus aí está.


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O livro do Acopralipi II

...também esse beberá do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na presença do Cordeiro. Apocalipse 14.10

Fogo eterno, © Thinkstoc
A literatura apocalíptica é um recurso usado unicamente em tempos de opressão extrema. Os apocalipses têm por obrigação ser uma mistura precisa e equilibrada de esperança e advertência. Uma mensagem que é velada aos olhos do opressor, mas facilmente inteligível ao leitor oprimido. Neles o autor se liberta das dimensões de espaço e de tempo para viver situações num passado distante e em locais remotos. 

Os apocalipses são fundamentamos na história viva e dela se vale para tirar os nomes, locais e situações. Situações que ainda são bem vivas na lembrança e que permanecem como um forte apelo na vida dos destinatários; locais que representam a angústia e o sofrimento; nomes cuja simples menção aterroriza a todos.

Não temos como precisar uma data precisa, mas, a grosso modo, num apocalipse o autor retroage mais ou menos duzentos anos para desse passado prognosticar os fatos que aconteceriam num futuro próximo. Futuro esse que ainda assim é passado, diante do seu presente real. Seria como se retroagíssemos aos anos de 1930, para criticar a ordem vigente e prever a Segunda Grande Guerra Mundial. Desse mesmo modo foi escrito o livro do profeta Daniel, assim como por vários outros apócrifos daquela época. Assim também foram escritos os vários apocalipses apócrifos no tempo de João.

Um outro dado importante sobre os apocalipses é que eles eram literatura comum, particularmente entre as seitas ascéticas, como a dos essênios, da qual João, o Batista, foi o seu mais proeminente representante. Por isso é que parece ser tão bizarro aos olhos do homem moderno. O objetivo era mesmo parecer loucura e desvario aos olhos do opressor. A loucura de assistir um doido lançar imprecações sobre uma Babilônia extinta e praguejar contra Nabucodonosor que já não havia morrido há séculos. Contudo, o que parecia ser desvario para os de fora, era palavra viva e lúcida no meio do Israel de Deus. Pois o que mais era presente na memória do povo do que a lembrança do exílio de Nabucodonosor, para denunciar as atrocidades dos imperadores romanos, que destruiu novamente o templo, e mais uma exilou o povo? Que cidade foi mais luxuriosa do que a Babilônia, sustentada que era pelo sacrifício de muitos, senão Roma?

O texto do Apocalipse, mais do que uma visão de uma realidade futura, era o desejo latente de vingança entre os cristãos no final do primeiro século. Um desejo em forma de invocação, para que Deus ponha um fim à opressão do povo e extermine de forma brutal os opressores romanos, a quem consideravam os únicos culpados pelo seu miserável estado. Uma segunda visão, esta mais acurada, vai mostrar que o apocalipse é o divisor de águas entre os verdadeiros cristãos e os que estão ali apenas por conveniência.  Lucas 12.6 diz que não se vendem cinco pardais por dois asses? Mas esse era o preço cobrado a todo aquele que se identificava como cristão. Tudo era mais caro para eles. Mas João determina que o preço seja pago. Esconder a identidade de cristão para se livrar das retaliações impostas era o mesmo que negar a fé. Sabemos bem que existiram extremos, mas foi através deles que o Cristianismo foi preservado de forma íntegra. João preservou a fé cristã mesmo distante da sua igreja, ainda que exilado em uma ilha presídio, ainda que parecesse um alucinado louco varrido.

Para finalizar, precisamos ver o que o antigo livro bíblico do apocalipse tem em comum com os fatos mais recentes? O perigo da apostasia na igreja é real e imediato. As ofertas para escamotear a fé somente se multiplicaram. Em muitos lugares os filhos de Deus estão sendo oprimidos por causa da religião que professam. Não falo da fé cristã somente, mas de todas as expressões que ainda sofrem discriminação. E o alerta final: a igreja de hoje não sofre perseguições, não temos mais os césares no nosso encalço. Pelo contrário, em muitos lugares as pessoas veem o mundo cristão como o opressor a ser combatido. Muitos apocalipses contra nós e a nossa conduta estão sendo escritos. De uma coisa podemos estar certos: Deus vai acatá-los como um clamor de justiça, exatamente como acatou o apocalipse de João.

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O livro do Acopralipi I

Escreves, pois, o que viste: tantos as coisas presentes como as que deverão acontecer depois destas. Apocalipse 1.19

Os que lavaram as suas vestes no sangue do Cordeiro, James42
Não faz muito tempo circulou no Youtube o vídeo do pastor da “briba”. Uma engraçada demonstração de como não se deve pregar o evangelho. Na sua pouca cultura bíblica, dentre outras batatadas, o pregador do vídeo se refere ao livro do Apocalipse chamando-o de acopralipi. Atualmente está circulando um outro vídeo cujo título é “Alguém quer me desafiar?” Mais um dos ilustre mestre do desconhecimento, que aparecem de tempos em tempos faturando alto com seus abalizados, porém, infundados comentários sobre a fé. Esse cidadão norteamericano fala especificamente das religiões monoteístas que fundamentam a sua mensagem no cataclismo escatológico. Em bom português, as religiões que pregam um fim dos tempos composto exclusivamente de salvação e perdição.

A princípio quero dizer que não vi muita diferença entre os dois preletores, posto que ambos tiraram as suas conclusões daquilo que apenas intuíram, sem um estudo sério e sistemático do assunto. O que antigamente se diria: ouviu o galo cantar, mas não sabe onde. Mas infelizmente nós os cristãos não podemos criticá-los veementemente por esta postura equivocada, porque ela realmente está presente no conceito que muitos de nós faz desse fantástico livro da Bíblia. Para muitos de nós o Apocalipse ainda é um almanaque completo e detalhado do fim dos tempos.

Na verdade, o que é um Apocalipse? É um estilo literário que vingou em Israel por aproximadamente quatrocentos anos: duzentos anos antes de Cristo até duzentos anos após. Traduzido simplesmente por revelação, é o herdeiro direto da profecia, e distingue-se dela em dois aspectos fundamentais: pela forma como a mensagem é recebida e como é retransmitida. Na apocalíptica a mensagem chega sob a forma de visões, cuja interpretação é encargo exclusivo do vidente, que ao retransmiti-la, o faz de modo codificado e desobrigado de qualquer coerência. Num apocalipse quase tudo é simbólico: nomes, números, situações e até personagens. Para entendê-lo é preciso, antes de tudo, entrar na mente do autor e decifrar seu código, que é particular e único. Não se vale da orientação de qualquer outro, assim como não se presta de parâmetro para outro qualquer. Por esta razão o leitor moderno deve fazer exatamente como faziam os antigos destinatários: nunca se prender às visões, que por si só são irrelevantes, e voltar sua atenção exclusivamente para a mensagem que Deus sugere através delas, evitando, com isso, incorrer no erro de adulterá-la.

Não se quer dizer com isso que a visão dada por Deus abra uma janela maior do que as utilizadas pelas religiões pagãs para descortinar o futuro.  A possibilidade de perscrutar no futuro ou "as coisas que o Pai guardou para si" é completamente nula na fé cristã. A visão abre-lhe sim o entendimento, para que perceba na leitura fria dos fatos e as consequências inevitáveis que advirão, caso a situação presente siga seu curso. Não é em vão que a literatura apocalíptica presta-se mais para exigir decisões imediatas do que para criar expectativas. Um estímulo eficaz para aqueles cuja fé escandalizada vacila entre apostatar diante das tribulações presentes ou manter a esperança nas promessas de vitoriosa salvação deixadas por Jesus, o Cristo.

João encontra inspiração nos antigos temas proféticos, quando Deus salvou o seu povo das mãos dos mais terríveis opressores, fossem eles egípcios, assírios, caldeus ou gregos. Deste passado retira a única e real previsão futurística. A única que serve tanto para os seus contemporâneos como para todas as gerações vindouras, inclusive a nossa: perseverem na fé, agarrem-se a ela, ainda que o limiar crítico da desolação há muito tenha sido ultrapassado, ainda que se mostre irreversível, Deus vai libertar seu povo, como sempre fizera. Esta é a grande mensagem que o Apocalipse de João revela. Qualquer outra diferente dela terá sido mera especulação. Bom, quem sabe se não é do livro do acopralipi que ambos estejam falando? (continua)


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As diatribes de Jesus

Guardai-vos dos escribas, que gostam de andar com vestes talares e muito apreciam as saudações nas praças, as primeiras cadeiras nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes; os quais devoram as casas das viúvas e, para o justificar, fazem longas orações; estes sofrerão juízo muito mais severo. Leiam Lucas 20.46 a 21.4

Oferta da viúva pobre, Gustav Doré
Tentando encontrar um termo que definisse com exatidão a narrativa da viúva pobre, me deparei com a palavra diatribe, uma palavra que teve vários significados ao longo da história. Serviu inicialmente para significar o estilo dos discursos moralistas dos filósofos estoicos e cínicos da antiga Grécia. Mais tarde, passou a designar qualquer discurso agressivo ou ofensivo, para, enfim, ter o sentido de sátira que damos hoje.
Se quisesse conceituar o tipo de discurso proferido por Jesus na entrada do templo de Jerusalém sobre a oferta da viúva pobre, eu diria que este é o argumento que fecha a questão contra a atitude exibicionista e vexatória dos ricos, dos escribas e dos fariseus no momento em que faziam as suas ofertas; teríamos que dizer que este discurso foi uma diatribe em todos os seus sentidos da palavra.

Para Jesus a relação que se estabelecia ali era bastante simples: os tais homens, que se vestiam majestosamente de púrpura para receberem a admiração e as homenagens do povo, que também davam ofertas polpudas do que lhes sobrava, para Jesus eram os mesmos que devoravam as casas das viúvas. Eles eram capazes de fazer isso e muito mais, apenas com intuito vão de se justificarem diante de Deus.

Jesus está falando do orgulho que as pessoas têm pelo que imaginam estar fazendo em nome e para a glória de Deus, mas que na realidade o fazem em seu próprio nome e para a sua própria glória. Não faz muito tempo que a imprensa mundial alardeou a notícia sobre os donativos milionários que alguns ricos fizeram às vítimas do tsunami, mas não foi capaz de dizer que as quantias ofertadas não passavam de uma gota no oceano das suas riquezas. Tanto para aquela época, quanto para hoje, o que conta é o montante e não a avaliação moral da origem do dinheiro e nem da intenção velada por trás da oferta. Para muitos, os que têm valor na igreja são os que dão os maiores dízimos e mais generosas ofertas, o que historicamente não é verdade. A igreja de Jesus Cristo sempre foi sustentada pela oferta das viúvas pobres, pois são elas que insistiram em permanecer, principalmente quando os cultos estavam esvaziados, a programação era chata e a música era tocada num órgão de pedal por uma senhora que mal conseguia ligar dois acordes. São elas que fiel e rigorosamente ofertam, mesmo quando seus recursos são parcos.

Qualquer observador veria que Jesus não estava falando a verdade literal quando disse que a viúva deu a maior oferta entre todos. Mas sim de que ela deu a verdadeira oferta, pois ofertou 100% de si e 100% de tudo que possuía. Mas este observador teria que ver também que Jesus não está falando de tributação, de algo que é devido por obrigação e que deve ser cobrado dentro de uma escala progressiva de valores. Ele está falando da oferta voluntária, de um tipo de presente oferecido pela própria escolha individual, não por ordem do governo. Este sim deve contar como um presente moral e espiritualmente superior. Uma oferta maior do que todas as outras juntas.

Jesus radicaliza dizendo que a escolha de dar mais dinheiro não significa necessariamente dar um presente melhor, principalmente quando o dinheiro é proveniente de pessoas que têm menos ou das pessoas espoliadas em nome de uma estabilidade econômica. Jesus não está se referindo apenas às ofertas do templo, mas à vida em sociedade, cuja igreja deve se estabelecer como um parâmetro incontestável.

Entendo que a oferta da viúva pobre ressurge do tempo como uma diatribe que alerta a igreja e denuncia o mundo econômico dos nossos dias. O que realmente não dá para entender é como, em apenas uma diatribe, Jesus pôde dar tanto valor e tirar tanto ensinamento de duas míseras moedas.

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Não colocarás Deus à prova

Respondeu-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus. Mateus 4.10
A tentação de Cristo, Botticelli em 1498
Através de uma leitura subliminar podemos considerar que a primeira tentação de Jesus não foi exatamente a de transformar pedras em pão para saciar a sua fome, mas sim a de colocar Deus a prova: Mt 4.3 - Então, o tentador, aproximando-se, lhe disse: Se és Filho de Deus... E não foi a única vez, pois essa foi uma tentação que o acompanhou até os seus últimos instantes. Em alguns momentos cruciais da sua vida ela esteve presente, assim como no desfecho das maldosas palavras do ladrão na cruz: Lc 23.39 - Um dos malfeitores crucificados blasfemava contra ele, dizendo: Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também. A este podemos juntar os soldados romanos, os sacerdotes e fariseus e a população de Jerusalém.

O desejo velado de ter uma prova física é algo que está sempre presente na nossa relação com Deus. Quem não é aquele que gostaria de ver as suas orações respondidas de imediato? Esse desejo pode fazer com que interpretemos passagens do Primeiro Testamento, como a luta de Jacó com o anjo narrada em Gn 32, e a prova do chumaço de lã requerida por Gideão em Jz 6 como regras de conduta definitivas de Deus.  Contudo, esse desejo não correspondido pode levar muita gente a duvidar da existência ou da providência de Deus em um grau acentuado de vezes, quando não faz as pessoas trocarem de igreja por duvidarem que Deus esteja presente e atuante naquele local.

Outros tantos subvertem o verdadeiro sentido da profecia de Malaquias fazendo com que suas palavras especificamente dirigidas a um contexto sejam aplicadas em toda e qualquer situação: Ml 3.10 - Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na minha casa; e provai-me nisto, diz o SENHOR dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida.

Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus. Que foi Jesus quem disse, todos sabemos, mas onde está escrito isso? Em que contexto? A que situações se aplica? De onde ele desencavou tão controvertida afirmação?

Pelo que se pode conferir, a expressão foi retirada do episódio bíblico descrito em Gn 17 e que ficou conhecido como “as águas de Meribá”. Uma narrativa que mostra onde pecado coletivo do povo se junta ao pecado individual do seu líder, Moisés, causando consequências terríveis a todos. Um episódio que se estabeleceu como um alerta dessa transgressão para todas as gerações futuras.

Aqui temos um exemplo de como esse pecado pode atingir em cheio a igreja de hoje. Temos aqui um ensinamento claro de como um simples e aparentemente inocente pedido pode alavancar todo um processo de iniquidade. O povo no deserto pedia uma prova. Para isso não ousava dirigir-se diretamente a Deus, mas a Moisés, seu representante. Por um momento de aflição, o povo passou a questionar toda obra de Deus desde que saíram do Egito. O mesmo povo que foi tirado com mão poderosa da escravidão de Faraó, que viu o mar se abrir e se fechar diante dele, que foi sustentado pelo maná e guiado pela nuvem no deserto, estava sucumbindo à tentação de querer ver o seu desejo realizado de imediato. Transformaram um breve e fugaz momento de incerteza na prova decisiva da presença e da providência de Deus.

Na outra ponta temos o salvador da pátria. O líder religioso que se prontifica a ser a solução de toda a questão. Antes demais nada, ele se isenta da responsabilidade quanto ao resultado, para poder assim legislar soberano. Depois, toma sobre si o poder, fazendo crer que as águas brotaram da pedra pela sua própria capacidade de realizar milagres.

Quando deixamos de colocar o único e soberano Deus como o centro das nossas vidas sujeitando a ele todas as coisas, caímos fatalmente nesse pecado. O pecado de fazer valer mais uma situação do que toda uma existência. Esse mal nos enfraquece a ponto de nos deixar levar pelos oportunistas da fé, que estão sempre de plantão para se beneficiar de qualquer vacilo da nossa fé.

Não colocar Deus à prova não é somente uma atitude de reverência e respeito. É antes de tudo uma afirmação consistente de que a nossa fé atingiu a maturidade suficiente para sobreviver a muitos infortúnios. 

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Teologia e heresia

O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo, acima do seu senhor. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e ao servo, como o seu senhor. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos? Portanto, não os temais; pois nada há encoberto, que não venha a ser revelado; nem oculto, que não venha a ser conhecido. Mateus 10.24-26

Último julgamento, Fra Angelico
Ao ouvir mais uma excelente mensagem do rev. Ed René Kivitz fui surpreendido com uma confissão bombástica, sincera e ao mesmo tempo muito corajosa. Disse ele: Se a tua teologia é original é heresia. Esse foi o seu argumento usado contra aqueles que dizem autoiluminados e que proclamam como verdadeiras as visões alucinatórias dos seus transes mediúnicos. Com isso ele quis dizer que a mensagem que prega não é produto do seu intelecto, mas é fruto de uma longa cadeia de pensadores que vêm estudando a ação de Deus na história ao longo desses dois mil anos de Cristianismo.


Pode ser que isso pareça comum, ou pelo menos que deveria parecer comum, mas a nossa realidade é bem diferente. A preferência da igreja tende a acatar mais a voz daqueles que pregam debaixo da sua própria autoridade, do que daqueles que se fundamentam em pensadores do passado. O meu amigo João Wesley Dornellas certa vez foi surpreendido com a seguinte declaração: eu gosto muito da sua aula, mas não gosto quando você repete as coisas que aquele seu parente falou. A pessoa disse isso imaginando que o João era descendente de John Wesley, a quem seus pais homenagearam. É estranho que alguém que frequente uma igreja metodista não queira aceitar que o que John Wesley pregou e deixou como legado seja o melhor do pensamento evangélico para ela. Estranho, porém real. Talvez os líderes neopentecostais hoje falem mais alto nessa igreja do que qualquer pensador genuinamente metodista.

Eu não creio no livre arbítrio, então vá ser batista. Eu creio na predestinação, então vá ser presbiteriano. Eu creio em manifestações visíveis e frequentes do Espírito Santo, então vá ser pentecostal. Falo isso com muito critério, porque, embora seja eu essencialmente arminiano, frequento e prego em uma igreja de origem calvinista, porque é uma dos últimos redutos onde consigo viver a minha fé de origem, pasmem vocês.

O rev. Ed René não está sozinho nesta empreitada. Ele está seguindo os passos da dura batalha que o apóstolo Paulo teve que travar com os Espirituais de Corinto: aqueles que não eram de Pedro, de Paulo e nem de Apolo, mas exclusivamente de Jesus. Essa foi e continua sendo uma declaração bastante capciosa. Uma vez que eu tenha recebido a mensagem do evangelho diretamente de Jesus, não tenho mais necessidade de ouvir ou meditar sobre outra mensagem pregada por alguém que recebeu a sua mensagem de outro pecador mortal como ele.

Pergunta em seu sermão o rev. Kivitz: Por que é que um sujeito acredita em alguém que diz que Deus falou com ele hoje à noite, e não confia num sujeito que tenta discernir o que Deus vem falando ao longo de dois mil anos de História da Igreja? Não sei se a resposta foi omitida no resumo do sermão que ouvi, mas sei que a pergunta ficou no ar. Por que alguém faria isso: trocar o que vem dando certo, ainda que precariamente, por algo que a própria História já provou não ter futuro? Não pensem que este movimento neopentecostal é novidade. Tanto a igreja de Corinto, quanto muitas outras no passado, já amargaram o fel desse evangelho, e consequentemente colheram seus frutos podres que resultaram em separação, fraude, enriquecimento ilícito e mau juízo da igreja por parte dos pagãos.

Jesus, mesmo sendo chamado de Belzebu, o príncipe dos demônios, não arredou pé de levar até as últimas consequências a sua missão profética. Jesus, mesmo ciente de que os seus seguidores seriam perseguidos e odiados por aqueles que preferem acreditar no imediatismo de uma revelação estranha à Bíblia, não lhes deu qualquer poder imunológico. Pelo contrário, recomendou apenas perseverança, pois se chamam de demônio o Mestre, do que não chamarão os seus discípulos?

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A função do templo

Depois, entrando no templo, expulsou os que ali vendiam, dizendo-lhes: Está escrito: A minha casa será casa de oração. Mas vós a transformastes em covil de salteadores.Lucas 19.45s

Cristo expulsa os vendilhões, Jacob Jordaens
A História narra que pelo menos por duas vezes o Templo de Jerusalém foi profanado, não contando, é claro, as vezes em que ele foi completamente destruído pelos babilônicos e pelos romanos. Embora seu uso mais comum diga respeito ao trato indevido aos objetos de culto, a palavra profanar tem um sentido mais amplo que abrange também os elementos que fazem parte da estima coletiva. A punição para quem profanar uma sepultura é de 2 a 3 anos no Código Penal Brasileiro.


É interessante que se observe que na primeira profanação do templo, em 15 de dezembro de 157 a.C., quando Antíoco Epifanes colocou uma estátua de Zeus no santo dos santos, a população se indignou profundamente. Mais tarde, quando o templo estava sendo profanado pelos cambistas e vendilhões, o povo não mostrou qualquer sinal de indignação. Apenas Jesus se manifestou.

Já paramos para pensar quais seriam os fatores que determinaram condutas diferentes para as duas situações? Fatores como a época, os costumes e a própria condição financeira do templo poderiam explicar e até justificar. Contudo, eu me atreveria dizer que a grande distinção foi simplesmente o fato da profanação de Antíoco acontecer de fora para dentro, enquanto que a dos vendilhões e cambistas aconteceu de dentro para fora, e me atrevo a dizer que foi isso que fez e ainda hoje faz toda a diferença.

Ninguém precisa ser bom observador para constatar que nós, os cristãos, estamos sempre prontos para rechaçar qualquer investida de alguém que adentre os nossos templos em alto grau de entorpecimento seja por bebida ou drogas, impedir a entrada de alguém que esteja vestido inadequadamente ou mesmo portando objetos de cultos estranhos ao nosso. Estamos mais do que preparados para rebater qualquer crítica que seja endereçada às nossas igrejas e denominações, bem como nos sentimos totalmente aptos a defender com unhas e dentes todas as afrontas as nossas doutrinas. Mas não esboçamos a menor reação quando a profanação vem de dentro, quando vem dos engodos heréticos que nos são lançados diariamente ou através daqueles que nascem da nossa ignorância do evangelho e da verdadeira função do templo.

Chamamos as autoridades competentes para que o profanador seja levado a julgamento pelos seus atos, e nos alegremos muito ao ver a lei ser cumprida. Mas que chamará a polícia para nos prender? Quem dentre nós terá coragem de pegar no chicote para expulsar os mercenário e expurgar as heresias que definitivamente tomaram conta de nossas igrejas e que profanam cotidianamente os nossos templos? Parece que temos duas leis: uma severíssima e implacável para profanação por parte de estranhos, e outra bem mais complacente e permissiva para as nossas profanações particulares.

A minha casa será chamada casa de oração e será para todos os povos. A culpa por muitas das nossas atitudes passa justamente por aí: pelo total desconhecimento da função do templo. Casa é o lugar onde os filhos se abrigam, onde prevalece a fraternidade e tratamento igual. Casa é o local de descanso para onde se dirigem todos aqueles que estão cansados após um dia de trabalho extenuante. A casa de Deus, casa dos filhos de Deus. Lugar sem bandeiras, sem divisões de território, dirigida e guardada pelo Pai de todos nós. Oração é a oportunidade de restauração do espírito, do diálogo franco e aberto com Deus. É a hora da descontaminação de todos os maus pensamentos que nos deviam do nosso real propósito.

Uma vez que a casa se encontre limpa das profanações, torna-se o lugar propício para Jesus exercer o seu papel de mestre e nos ensinar coisas mais elevadas que ainda não conhecemos. 

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Pai, mãe e irmãos

Porém ele respondeu ao que lhe trouxera o aviso: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? E, estendendo a mão para os discípulos, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Porque qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe. Mateus 12.48-50

Jesus pregando, H. Mandel
Uma das declarações de Jesus menos digeríveis é esta de Mateus 12.26: Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Sabedor da dificuldade que teríamos para aceitá-la, Jesus fez questão de confirmar o seu discurso na prática, o que pode ser muito bem observado no nosso texto base acima.


Logicamente que as circunstâncias colaboraram bastante para que ele chegasse a esse desfecho. Pois justamente em um oportuno e complexo momento da sua afirmação como Messias, diante dos fariseus e escribas que o contestavam com veemência, que ele foi interpelado quase que judicialmente pela sua família biológica.

Alguém ali estava na hora errada, no momento errado, e não era Jesus. Jesus estava exatamente onde seu Pai pretendia que ele estivesse. Primeiro, anunciando que as boas notícias do Reino devem prevalecer sobre a rigidez de qualquer lei que priorize a instituição em detrimento do indivíduo. Segundo, que o Reino de Deus não se confunde em absolutamente nada com o reino das trevas, pois não se apresenta apenas como outra opção viável, mas como a negação completa e irrestrita deste em todos os aspectos. Terceiro, que o seu ministério, paixão, morte e ressurreição seriam os únicos sinais visíveis de que este Reino havia chegado. Ou seja, o que ele estava fazendo ali, e a mensagem que estava pregando, era simplesmente uma questão de estar a favor e aceitar, ou estar contra e rejeitar. Uma verdade que ele fez questão de deixar bem clara quando se expressou no versículo 30: Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha.

Uma postura tão radical assim é bem passível de sofrer contestação das pessoas estranhas, ceticismo das pessoas do seu círculo de amizades e total abominação de seus familiares, principalmente enquanto aqueles ainda não haviam se conscientizado da sua messianidade.

Esse é o ponto definitivo de ruptura entre a obrigação para com os laços de família e a necessidade imperiosa da missão. Encurralado entre a escamoteada má intenção dos fariseus e o apelo sincero, porém, inconsequente da sua mãe, Jesus se vê na condição de ter que transferir a prioridade, que até então era consanguínea, para um outro tipo de família sem laços de sangue. A família que naquele preciso momento mais carecia da sua assistência era a família da fé. Não temos porque imaginar que, aquelas palavras que, com toda certeza, entristeceram profundamente o coração de Maria, sua mãe, permaneceram como marco da relação futura com ela. Com a mesma certeza, Maria, mais tarde, veio a entender o seu sentido, bem como justificar a atitude. Como prova cabal, temos a sua preocupação de deixá-la aos cuidados de João, seu discípulo.

Mas apesar de todas as explicações cabíveis, das incansáveis tentativas de juntar pontas soltas e da penosa aceitação da proposição de Jesus como oportuna e válida, ainda prevalece a principal questão do texto: Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?

Curioso que mesmo Jesus se assumindo como mestre, segundo a tradição rabínica, como sacerdote na linhagem de Melquisedeque, como profeta na mais íntegra tradição, não se coloca como pai ou patriarca da fé cristã. Ele não pergunta quem são seus filhos, ou quem são aqueles que estariam sob a sua tutela, mas pergunta quem é sua mãe e quem são seus irmãos. Ele assume a mais interativa posição possível na escala hierárquica da fé. Jesus se faz um entre nós. Jesus está querendo saber quem está disposto a juntar como ele. Se numa hora é o irmão que questiona a ânsia de poder dos seus irmãos, noutra se deixa batizar por João, fazendo dele seu mentor e predecessor. Se em uma ocasião acalma o mar bravio e o vento impetuoso com uma só palavra, em outra chora copiosamente a perda de um amigo-irmão.

O evangelho não está aí para criar grandes celebridades, muito menos líderes religiosos. O evangelho nos veio trazer uma nova ordem de relacionamentos onde todos tem o que ensinar e todos necessitam aprender. Quem é minha mãe que dá sustento à minha mensagem? Quem são meus irmãos que se dispõem a vivê-la? Estas são as únicas perguntas que nos são feitas. Isso é tudo o que merece ser respondido.


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Sonhar mais um sonho impossível

Quando o SENHOR restaurou a sorte de Sião, ficamos como quem sonha. Então, a nossa boca se encheu de riso, e a nossa língua, de júbilo; então, entre as nações se dizia: Grandes coisas o SENHOR tem feito por eles. Com efeito, grandes coisas fez o SENHOR por nós; por isso, estamos alegres. Leia Salmos 126
Texto do rev. Jonas Rezende

Jesus no casamento em Marrocos
A palavra utopia é formada por dois pequenos vocábulos da língua grega, e significa, literalmente, lugar que não existe. Mas os vocábulos sofrem uma evolução semântica, e hoje, quando falamos em utopia, a etimologia desaparece. E pensamos em algo irrealizável, absurdo. Ou imaginamos um sonho ou esperança que serve como alavanca na construção de um mundo melhor, de um ser humano viável. Tenho preferência radical pelo segundo sentido: um sonho!


Volto novamente a esse salmo, porque ele expressa o sentido de utopia que me parece na direção mais criativa: ficamos como quem sonha.

O salmista sabe que o sonho prosseguirá, porque Deus age, e o ser humano é seu parceiro: restaura, Senhor, a nossa sorte como as correntes do Neguebe.

E vem a ênfase no papel desempenhado pelo trabalho humano: os que com lágrimas semeiam, com júbilo ceifarão.

É isso. Um sonho, um sonho acordado, como São Tomás de Aquino vê a esperança. Um sonho impossível? Tive um velho amigo a que muito respeitei. No seu dicionário de uso corrente, encontramos, após a sua morte, ao lado da palavra impossível, uma anotação com sua letra firme e culta: leia-se, difícil. Afinal, utopias foram superadas no desenrolar da História, como sonho e muito trabalho: quem sai andando e chorando enquanto semeia, voltará com júbilo trazendo seus feixes, registra o salmista. Miguel de Unamuno chega a dizer que o homem vive de razão e sobrevive de sonhos. E Chico Buarque de Holanda, traduzindo e adaptando o tema musical da peça O homem de La Mancha, escreve: sonhar mais um sonho impossível, lutar quando a regra é ceder, vencer o inimigo invencível...

Você sabe? Eu sonhei que o asfalto acariciava com calor os pneumáticos grávidos de ar. E houve melodia de amor nas ruas, avenidas e estradas: nunca mais um homem usou luz alta contar outro homem.

Sonhei que o imenso arranha-céu tronou-se um único quarto iluminado, onde estranhos falavam a mesma língua. E já sabiam dormir sem sedativos. E suas portas e trancas eram mãos dadas.

Sonhei com uma única mesa para todos, onde todos os homens tinham pão. E as crianças cantavam aleluias, no lugar onde outrora houve prisão.

Sonhei que o ser humano se esqueceu, finalmente, da mentira. De mentir-se. E já não soube mais buscar alegrias e conquistas pelos processos desumanizados ou pelos artificiais. E apenas conhecia através da História a história das guerras mundiais.

Sonhei que os véus dos templos, todos, se romperam, com a luz da religiosidade. O homem se esqueceu dos tolos ritualismos, e a fé no único Deus da vida foi verdade.

Sonhei que um dia, o mundo alcançou maioridade, sem religiões, sem trancas, sem mentiras, sem exércitos, sem bandeiras, sem o recurso subumano das fronteiras; sem anseio de céu ou medo de juízo:

A Cidade do Home era um sorriso...

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Entre o temor e o amor

Havia certo homem já de idade avançada e de bela aparência, Eleazar, que se sentava no primeiro lugar entre os doutores da lei. Queriam coagi-lo a comer carne de porco, abrindo-lhe a boca à força. Mas ele, cuspindo e preferindo morrer com honra a viver na infâmia. II Macabeus 6.18s

Tormento de Eleazar, Doré
 O mais frequente, para não dizer único, comentarista das minhas postagens, o Dr. Nehemias Rubim, sempre que se depara com a expressão “o temor do Senhor”, após mostrar toda a sua indignação levanta uma questão bastante complexa. Pergunta ele: afinal Deus é amor ou temor?

Se formos responder de acordo com o que a Bíblia nos transmite teremos que dar pelo menos duas respostas: uma segundo cada um dos seus Testamentos. O Primeiro, também chamado de Antigo, é useiro e vezeiro em usá-la em quase todos os assuntos. O Segundo, o Novo, passa distante quase nunca lhe fazendo referência. Para resolvermos de vez a questão teríamos que verificar qual dos dois estaria mais em acordo com a mensagem de Jesus, que como Messias de Deus, é o verdadeiro e único intérprete da Lei. Atrevo-me a dizer que ambos estão certos, não se contradizem, e, pelo contrário, se complementam.

Sabemos bem que qualquer tipo de relacionamento nos leva sempre a fazer escolhas, nos leva sempre a tomar decisões, e o relacionamento com Deus não teria como ser diferente. A própria mensagem do evangelho tramita na mesma linha e sintonia da mensagem profética do Primeiro Testamento: ela é sempre uma negação da mensagem pregada pelos príncipes desse mundo. A pregação do evangelho nunca prometeu aos seus locutores e ouvintes a tão esperada utopia do mar de rosas. E é justamente nesse ponto que interação entre o amor e o temor se faz mais necessária. Isso me leva a ter que afirmar que qualquer decisão que tem como parâmetro a Palavra de Deus tem necessariamente que estar debaixo desses dois fatores de forma igualitária e não tendenciosa.

A decisão baseada unicamente no amor nos levaria a olhar apenas para as consequências, e nunca atacar as verdadeiras causas. Por outro lado, qualquer decisão fundamentada exclusivamente no temor nos jogaria inexoravelmente no fanatismo. Parece ser uma escolha simples, principalmente quando o ônus da decisão recai apenas sobre nós mesmos, e mais simples ainda quando recai sobre pessoas que não conhecemos. Porém, se torna profundamente causticante quando as nossas decisões envolvem entes queridos, e é mais dramática ainda quando não temos controle sobre as suas consequências.

Peço licença para mais uma vez tomar emprestado a sabedoria de um texto deuterocanônico. Um texto que foi escrito no intervalo de tempo entre os dois Testamentos da Bíblia. Poderia muito bem me servir da narrativa de Daniel 3, também dessa mesma época, que fala dos seus três amigos na fornalha de Nabucodonosor. Mas esse texto, a despeito de ser um texto riquíssimo, não contempla aquele que deveria ser o argumento mais decisivo nas nossas escolhas. Não fala precisamente em que situação o amor e o temor mais precisam andar lado a lado.

II Macabeus 6 narra a decisão e Eleazar, quando, pela imposição das leis do Império Selêucida, se viu coagido pela força bruta a comer carne de porco, contrariando o que prescrevia a lei judaica. A escolha era simples: comer ou morrer. Podemos ver que em tese a questão não tratava apenas disso. Estava em jogo algo muito maior e mais profundo: uma vida de dedicação e integridade aos desígnios de Deus. Com noventa anos, Eleazar tinha apreço pela própria vida no que diz respeito à preservá-la da morte, porém, mais ainda de como ela serviria de exemplo para outros. Ele mesmo diz: Não é próprio da nossa idade usar de tal fingimento, para não acontecer que muitos jovens suspeitem de que eu, aos noventa anos, tenha passado aos costumes estrangeiros. Eles mesmos, após o meu gesto hipócrita, e por um pouco de vida, se deixariam arrastar por causa de mim, e isso seria para a minha velhice a desonra e a vergonha. 

Eleazar, porém, vai além da ponderação por amor às próximas gerações. Ele evoca o que deveria ser o verdadeiro temor ao Senhor: E mesmo se eu me livrasse agora dos castigos dos homens, não poderia escapar, nem vivo nem morto, das mãos do Todo-Poderoso. Sendo assim, se eu morrer agora corajosamente, mostrar-me-ei digno de minha velhice, e terei deixado aos jovens um nobre exemplo de zelo generoso, segundo o qual é preciso dar a vida pelas santas e veneráveis leis.

Amor e temor. Duas palavras tão desassociadas no nosso vocabulário cotidiano. Duas palavras completamente distintas no nosso jeito comum de viver. Duas palavras que só encontram os seus verdadeiros sentidos em uma vida digna vivida segundo o que nos orienta a Palavra de Deus.

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O fim do mundo I

Jesus respondeu: — Tomem cuidado para que ninguém engane vocês. Porque muitos vão aparecer fingindo ser eu, dizendo: “Eu sou o Messias” ou “Já chegou o tempo”. Porém não sigam essa gente. Não tenham medo quando ouvirem falar de guerras e de revoluções. Pois é preciso que essas coisas aconteçam primeiro. Mas isso não quer dizer que o fim esteja perto. Leia Lucas 21.5-19

A destruição do Templo, Nicolas Poussin em 1637
O mundo de hoje é um barril de pólvora. A tensão entre Israel e Irã parece nunca ter fim. O número de mortos na Síria já se compara ao das vítimas do tsunami. A África nunca conheceu um dia sequer de paz. Será que, como muitos dizem, estes são os sinais de que o fim do mundo está mesmo chegando? Muitos planejam as suas vidas com base neste evento cósmico. Sobre muitos paira este desespero pelo fim do tempo presente. A escalada do mal está frustrando as expectativas de muita gente e causando um enorme e contagiante desânimo. Perguntas que não faríamos anteriormente somos obrigados a fazer hoje: Por que a maldade cresce tanto? Por que as guerras nunca tem fim? Será que este mundo tem importância para Deus? Até quando teremos que esperar a intervenção dele com um julgamento justo sobre o pecado humano?


A situação internacional não nos ajuda em nada, pelo contrário, atrapalha em tudo, pois o começo de uma nova guerra e até de uma guerra mundial é sempre iminente. Isso tudo se torna uma luta pessoal na intenção sermos cristãos autênticos numa cultura secular. Sentimos a angústia daqueles que nos circundam e os nossos problemas cotidianos parecem insuperáveis. O que diríamos, então, se vivêssemos em um país em guerra? Não é de estranhar que muitos pensem que estamos no fim dos tempos. Há momentos em que nós mesmos gostaríamos de ver a volta de Cristo para realizar o último ato do drama da humanidade. Verificamos que o texto de Lucas foi escrito para tempos como o nosso, e para pessoas como nós, mesmo assim não é nada fácil entendê-lo.

Temos que considerar quem era o povo para quem Lucas escreveu seu evangelho. O significado que as suas palavras tiveram para eles e o que elas dizem para nós hoje. Ele escreveu para os cristãos gentios que, por volta do ano 80, estavam sofrendo perseguições terríveis. Também estavam assediados por todos os lados por falsos profetas marcando a data para o fim do mundo. Era essencial que eles compreendessem o que Jesus havia dito sobre o fim dos tempos na sua última semana aqui na terra, pois eram essas as palavras que continham a única fonte de águas limpas para as suas esperanças. Nesse texto de Lucas Jesus nos dá uma palavra clara sobre o fim e nos diz como devemos viver até lá.

Vamos examinar duas facetas dessas palavras, e a primeira é a seguinte: Muitas das coisas que consideramos como o fim de tudo, se vivêssemos nos Líbano ou na Síria teríamos a certeza de que é o fim mesmo, foram apenas um novo começo de Deus. Aquilo que definimos como e espasmo da morte pode ser tão somente o choro de uma nova criança nascendo. Então, mesmo atravessando tragédias pessoais e tragédias globais nós não devemos considerar como o fim. Pelo contrário, nos devemos antecipar, nós devemos estar preparados para o que Deus está pronto a fazer, apesar do pior que a humanidade pode fazer. Este é o impulso da mensagem de Jesus. Ela não traz um otimismo inconsequente e nem um desespero fatalístico.

O otimismo do texto está apenas naqueles que admiravam a beleza do templo: Lc 21.5 - Algumas pessoas estavam falando de como o Templo era enfeitado com bonitas pedras e com as coisas que tinham sido dadas como ofertas.  Jesus nunca deu atenção ao espalhafato daquela que foi considerada a maior das realizações humanas, pelo contrário, ele apontou a sua precariedade: Lc 21.6 - Chegará o dia em que tudo isso que vocês estão vendo será destruído. E não ficará uma pedra em cima da outra. Que profecia é essa? Algumas daquelas pedras pesavam mais de seiscentas toneladas, enquanto que a maior pedra das pirâmides pesa apenas onze toneladas. Não foi a toa que isso desanimou os seus discípulos tanto que eles lhe perguntaram: Lc 21.7 - Mestre, quando será isso? Que sinal haverá para mostrar quando isso irá acontecer? A resposta de Jesus é realista e honesta e no meio dela rompe a esperança: Lc 21.9 - Não tenham medo quando ouvirem falar de guerras e de revoluções. Pois é preciso que essas coisas aconteçam primeiro. Mas isso não quer dizer que o fim esteja perto.

Haverá guerras? Sim! Um país atacará o outro? Sim! Haverá tremores de terra? Sim? Haverá fome? Sim! Haverá epidemias? Sim! E este é o versículo chave para o nosso entendimento: Não tenham medo. Pois é preciso que essas coisas aconteçam primeiro. Marcos, falando sobre o mesmo assunto, disse: Essas coisas são como as primeiras dores de parto. Coisas piores possíveis acontecerão, a destruição do templo é apenas uma delas, e se repetirão várias vezes por muito tempo. Apesar disso não será o fim, por isso não sigam os falsos profetas que dizem que é o fim. Deus nunca estará concluído. 

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Votos insensatos II

Quando a viu, rasgou as suas vestes e disse: Ah! Filha minha, tu me prostras por completo; tu passaste a ser a causa da minha calamidade, porquanto fiz voto ao SENHOR e não tornarei atrás. Juízes 11.35

A filha de Jefté, Bon Boullogne em 1770
A história de Jefté é bem complicada. Filho bastardo de uma prostituta foi expulso de casa pelos filhos da esposa legítima para que não herdasse posse alguma do pai. Tendo que viver praticamente como escravo em outro país. Cresceu junto a marginais e assaltantes. Por essas coisas, seu futuro não lhe trazia grandes perspectivas de sucesso. Mas ainda assim, devido ao seu espírito de liderança nato conseguiu o respeito e a admiração de todos.


Sua saga nos mostra que ele era um homem disposto a vencer, e isso chamou para si a atenção dos líderes de Israel, e foi por eles é convocado para ser juiz em durante uma grave crise nacional: Jz 11.8 - Volte para Gileade, venha ser conosco para combater contra os filhos de Amon, seja cabeça entre nós. Seu nome, Jefté, significa Deus abre, e é justamente essa a sua característica principal: abrir caminho para o sucesso em meio às adversidades.

Para tentarmos entender as motivações que o levaram a fazer tal voto precisaremos considerar algumas hipóteses, tais como: a insegurança após a vitória inesperada; uma gratidão incontrolável; complexo de invulnerabilidade; orgulho de ser vitorioso onde tantos fracassaram ou imaginar-se acima do bem e do mal. Existem, porém, alguns agravantes no seu ato. As leis de Israel permitiam que, sob certas circunstâncias, a pessoa abdicasse do seu voto. O sacrifício humano era proibido em Israel, qualquer outro seria aceito no lugar da moça. Como não havia conhecido homem algum, ela poderia servir no templo. Por que ele não lançou mão desses recursos? Por que, a despeito de toda a amargura que tinha em seu coração insistia em continuar afirmando: Jz 12.34 - Abri minha boca ao Senhor e não voltarei atrás, filha minha, o que votei, pagarei?

Seria uma insensatez declarar Jefté um fanático religioso. Nada no texto nos diz que ele um fiel seguidor da religião, um homem obstinado em cumprir a lei, muito menos que era um patriota zeloso. Em sua negociação com os anciãos de Israel estabeleceu condições que lhe eram extremamente favoráveis. Por outro lado tentou de todas as formas negociar um acordo com o rei inimigo, para que conquistasse o poder sem o ônus da guerra. O que muda a cabeça de uma pessoa comum que a transforma de uma hora para outra em um extremista radical?

Considerando apenas o voto que Jefté fez, podemos concluir que ele não possuía uma formação religiosa dentro dos princípios básicos da fé de Israel. Ele fez o que fez por pura ignorância dos mandamentos de Deus. Demonstrou total desconhecimento das doutrinas mais básicas que regiam a vida daquele povo. Sua escolha foi um erro que serviu para revelar o total desespero em que se encontrava a nação. Diríamos hoje que se juntou a fome com a vontade de comer. Esse é o grande problema das decisões tomadas nessas condições. Apelamos para tudo que nos acena com um fio de esperança.

Jefté prometeu o que não era dele. Prometeu o que não teria direito de prometer. Prometeu o que Deus jamais aceitaria como penhor. Prometeu para outro cumprir. Quando eu vejo os pastores televisivos convocarem suas igrejas a assumirem as dívidas que eles têm para com as emissoras, como se eles fossem seus fiadores cossignatários, lembro-me bem da passagem de Jefté. Daqueles que buscam a glória e o poder à custa do sacrifício de outros. Incomensuravelmente mais grave do que aqueles que na vida secular fazem o mesmo. Esses gigolôs da fé o fazem em nome de Deus. Caso algum deles tome Jefté como modelo de contribuinte fujam apressadamente, pois Jefté é o melhor exemplo de como não devemos nos relacionar com Deus.

Mas volto, como prometido, a falar de nós mesmos, da nossa ansiosa solicitude pela vida, como chamou um comentarista do evangelho. Volto a falar do Jefté que existe em nós, que não sabe se aquietar diante da soberania de Deus e esperar na sua misericórdia. Falo das vezes que tentamos subornar o Altíssimo com promessas inexequíveis e a mais descarada falácia. Falo das vezes que consideramos Deus um ídolo surdo e mudo, que não conhece a intenção dos nossos corações e não enxerga a medida das nossas limitações. Quando perceberemos que Deus não quer nada do que é nosso, mas que ele nos quer por inteiro? Como diz o salmo 100: Foi ele quem nos fez e dele somos. Somos o seu povo e rebanho do seu pastoreio. Diante dessa incontestável realidade, o salmista recomenda que façamos um único “sacrifício”: Entrai por suas portas com ações de graças e nos seus átrios, com hinos de louvor; rendei-lhe graças e bendizei-lhe o nome. Porque o SENHOR é bom, a sua misericórdia dura para sempre, e, de geração em geração, a sua fidelidade.


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Votos insensatos I

Fez Jefté um voto ao SENHOR e disse: Se, com efeito, me entregares os filhos de Amom nas minhas mãos, quem primeiro da porta da minha casa me sair ao encontro, voltando eu vitorioso dos filhos de Amom, esse será do SENHOR, e eu o oferecerei em holocausto. Juízes 11.30s

O retorno de Jefté, Bon Boullogne (1699-1779)
Por que algumas pessoas fazem promessas inexequíveis e juram sobre perdas irreparáveis? Sinto-me à vontade para falar desse assunto, porque, em outras ocasiões, mesmo sendo protestante nato e hereditário, me manifestei contrário ao abandono total da prática da penitência em nossa tradição. Tenho para mim que fizemos o que antigamente se condenava metaforicamente dizendo: jogamos fora a água suja da banheira com a criança dentro.


Mesmo porque, a penitência é algo que subliminarmente praticamos, se não através de obras, através de palavras: Sl 51.4 - Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que serás tido por justo no teu falar e puro no teu julgar. Ou alguém tem dúvida que essa oração tão lida e tão repetida por todos nós seja um salmo penitencial? John Wesley disse certa vez: A excelência da sociedade para a reforma dos costumes é... primeiro, mover campanha aberta contra toda a impiedade e injustiça que cobrem a terra como num dilúvio, e isto é um dos meios mais nobres de confessar a Cristo. Será que alguém consegue fazer isso sem renúncias e penitências?

Sei muito bem que os dignos frutos da penitência, na realidade, não são as obras, estas são consequências de uma conversão interna. Que sinais externos de tristeza e que a confissão de pecados não diminuem o valor nem a intensidade da obra redentora de Deus em seu Filho pregado na cruz do Calvário. Então, por que, volto a perguntar: algumas pessoas fazem promessas inexequíveis e juram sobre perdas irreparáveis? O voto de Jefté é um bom exemplo do que não se deve fazer, visto que, quem primeiro veio ao seu encontro foi sua filha, sua única filha, e que por este gesto inocente e afetuoso foi inexplicavelmente sacrificada e queimada no fogo.

Não faço a menor ideia do que, na empreitada vitoriosa de Jefté, poderia ter acontecido que minimamente compensasse essa hedionda atitude tomada de forma unilateral e levada a cabo sem hesitação. Falo isso porque, segundo a narrativa, a vitória de Israel sobre os amorreus naquela altura da batalha era um fato consumado: Jz 11.21ss - O SENHOR, Deus de Israel, entregou Seom e todo o seu povo nas mãos de Israel, que os feriu; e Israel desapossou os amorreus das terras que habitavam. Tomou posse de todo o território dos amorreus, desde o Arnom até ao Jaboque e desde o deserto até ao Jordão. Sem esse dado estarrecedor eu não me atreveria a entender uma mente assim tão inconsequente, mas por conta dele vou me permitir arriscar alguns palpites.

A primeira pergunta que é feita é essa: por que Deus permite que coisas horrendas sejam praticadas em seu nome? Muitos leem a Bíblia como se ela fosse a história de Deus, das suas façanhas, entraves e relacionamentos. Mas o que a Bíblia conta é a nossa própria história. De como erramos no passado e de quem herdamos essa herança maldita de atrocidades. Por outro lado, a Bíblia também não esconde, como faz a maioria dos textos épicos, as mazelas dos seus heróis e nem os momentos de fraqueza dos seus santos. Daí nós conhecermos com detalhes precisos todas essas chagas abertas e feridas incuradas da história da nossa fé.

Mais para frente pretendo detalhar este pensamento, mas esse Jefté que a Bíblia descreve somos nós, quando apostamos na loteria da vida, sem que haja qualquer avaliação prévia das consequências das nossas palavras e atitudes. Nós, os cristãos, simplesmente jogamos os dados, pedimos o absurdo e prometemos o inconsequente, confiados que a sorte nos vai ser favorável, porque presumimos que estamos sendo guiados por uma mão que nos guarda e nos livra em toda e qualquer circunstância. Recriamos o caos primitivo nas nossas ações na expectativa de que Deus vai lançar sobre nós uma nova luz que venha a restabelecer a ordem natural incondicionalmente.

Parecia um ser distante, mas esse tal de Jefté está mais perto de nós do que pensávamos ou gostaríamos. (continua)

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Um por todos e todos por um

Oh! Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! É como o óleo precioso sobre a cabeça, o qual desce para a barba, a barba de Arão, e desce para a gola de suas vestes. É como o orvalho do Hermom, que desce sobre os montes de Sião. Ali, ordena o SENHOR a sua bênção e a vida para sempre. Salmo 133
Texto do rev. Jonas Rezende

Monte Hermon, http://looklex.com
Instituição comprometida com o lema da Revolução Francesa - li­berdade, igualdade e fraternidade a maçonaria, que no Brasil e no mundo participou de tantas e justas lutas, inicia seus encontros com a leitura deste pequeno e importante salmo de Davi. O poemeto utiliza imagens pertinentes da história e da geografia da Terra San­ta, para justificar seu verso de abertura: é bom e sobremodo agradá­vel viverem unidos os irmãos.

O povo de Israel foi plasmado por Moisés, que o dirigiu desde o Egito, fugindo da servidão, até a terra onde deitaram suas raízes e se estabeleceram como nação. Viver nessa comunidade era participar da sua memória, passada de pai para filho, ainda antes do seu registro escrito. Significava realizar celebrações que dramatizas­sem, com suas festas, a vida de escravidão no Egito; a grande liber­tação; a travessia do mar Vermelho; os 40 anos no deserto, quando viveram em tendas, o que sempre haveria de lembrar-lhes a provisoriedade de tudo; as sedições contra o líder; a Arca da Alian­ça, com as tábuas que registravam os dez mandamentos; o bezerro de ouro; a ação de Deus dia e noite; o maná; a água que jorrou da rocha; o sonho com o grande templo, que apenas seria construído por Salomão, filho de Davi.

Tão importantes são as tradições judaicas e tão arraigadas ficaram no coração do povo que, durante a longa diáspora ou dispersão dos judeus, do ano 70 d.C., quando se dá a queda de Jerusalém e a derrubada do templo por Tito, até 1948, com o reconhecimento do moderno Estado de Israel - embora esparramados pelo mundo in­teiro, os hebreus mantiveram a sua identidade como povo. E, desde a volta para a terra, ressuscitaram o hebraico como língua oficial, fato ainda mais importante que a hipótese de o latim voltar a ser falado em Roma.

Sem tomar partido nos intricados problemas atuais do Oriente Mé­dio, quero apenas reconhecer que a comunidade judaica cultivou as tradições surgidas nos tempos bíblicos, e foi isso que manteve a sua integridade nacional, como o rei Davi registra neste salmo.

O livro Ensaio sobre a cegueira, do grande escritor português José Saramago, lembra-me uma parábola bíblica. Porque apresenta a história de uma sociedade em que todos vão ficando cegos.
É neste mundo, em que se perde o contorno das coisas e o papel dos valores e conceitos, que a experiência de pequenas e grandes co­munidades, da família ao Estado, ganham uma importância ainda maior. Porque, na união decantada pelo salmista, podemos redescobrir e resgatar o que é de fato importante para os novos tem­pos que estamos vivendo. A sabedoria popular nos instrui: a união faz a força. E o lema dos três mosqueteiros que, por sinal, eram qua­tro, ajuda-nos como inspiração: um por todos e todos por um.

Um velho hino, baseado no salmo de Davi, suplica a Deus:

Envia-nos, Senhor, do teu monte Sião
aquela graça que produz a santa e doce união.

Se você concorda, diga apenas amém.



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