Chegou a libertação!

Pois livraste da morte a minha alma, das lágrimas, os meus olhos, da queda, os meus pés. Salmo 116
O dia da morte, William Bouguereau em 1859
Duas forças antagônicas parecem acompanhar a história da humanidade: o desejo de escravizar os mais fracos, visando ao lucro ou ao prazer, e a fome de liberdade; o desejo jamais sufocado de libertação. Do choque inevitável dessas forças surgem os protestos, os quilombos dos nossos negros, a resistência civil, os atos de rebeldia, as revoluções, as guerras. No salmo que agora focalizamos, o poeta de Deus coloca em seu universo particular a dolorosa luta visando à liberdade. Para o salmista a libertação nasce no coração do Senhor que deseja plenitude de vida para todos os seus filhos.

Leis todo o salmo. É incrível como a experiência desse homem que viveu há milênios seja tão semelhante à nossa. Quem já não sentiu laços de morte, angústias do inferno, tribulação e tristeza? Ao perceber, porém, que Deus compra a sua briga e luta ao seu lado, o salmista tem uma verdadeira explosão emocional: amo o Senhor, que darei por todos os seus benefícios para comigo?

O poeta faz, em especial, um tríplice destaque.
Tu livraste da morte a minha alma. Não significa que ele deixará de morrer, como todos os seres humanos; ficará para semente, como diz o povo. Uma antiga poesia infantil coloca assim esse problema:
Da morte ninguém escapa
Nem o rei nem o bispo nem o papa...

A referência não é à morte física, tanto que o salmista afirma: preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos. Trata-se de não passar pela segunda morte, mencionada na Bíblia. E essa é uma experiência que começa quando sepultamos os nossos sonhos, perdemos o brilho do olhar, deixamos que a alma envelheça.

Mas o poeta do Divino também destaca: tu livraste das lágrimas os meus olhos. Em Deus se encontra a libertação do nosso desespero. Muitos anos depois, Paulo d Tarso testemunharia: não somos como os que não tem esperança. No próprio Saltério, aprendemos que aquele que sai andando e chorando enquanto semeia voltará, com júbilo, trazendo seus feixes.

E o salmista completa: tu livraste da queda os meus pés. É a garantia da absoluta integridade da nossa vida. As rasteiras não nos derrubarão. Não haverá tombo fatal nem pereceremos degradados aos olhos de todos. Os filhos pródigos sempre poderão abandonar a sarjeta, e empreender o caminho de volta para a casa de Deus, que é tanto pai quanto mãe.

Nascemos para a liberdade. Os negros americanos cantam um spiritual, que Martin Luther King usava em suas marchas de protesto:

Liberdade, liberdade, liberdade para mim.
Antes de um escravo ser, eu prefiro aqui morrer
E no céu, com Jesus, livre estar.

Respire você também os ventos de liberdade
Que nascem no coração de Deus.


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Naquela mesa

João no lugar de onde nunca deveria ter saído (foto Roberto Pimenta)
Estive ontem na Câmara dos Deputados para a solenidade oficial de entrega da Bíblia Manuscrita às autoridades do Estado do Rio de Janeiro. Uma solenidade que contou mais com a boa vontade dos membros da SBB do que dos parlamentares daquela casa, visto que apenas um deputado esteve presente e não por mais do que dez minutos. Tinha prometido a mim mesmo não presenciar mais este tipo de evento que visa unicamente ser simpático aos governos deste país. Mas como fiz parte da diretoria que aqui no Rio deu início a este projeto, me vi na obrigação de estar lá, e por mais uma vez testemunhar os lamentáveis desfechos. Políticos, que na tentativa de se mostrarem íntimos da Bíblia, escorregam nas suas próprias trampolinices. Pessoas ligadas à SBB fazendo declarações diametralmente opostas ao espírito daquela casa. Enfim, uma memorável perda de tempo.

É numa hora dessa que eu gostaria de ter a coragem e a autoridade do meu amigo João Wesley Dornellas que no dia 27 de junho do ano passado nos deixou. Se o João estivesse naquele plenário, no mínimo se levantaria e mostraria a toda aquela gente que a Bíblia não se presta para colocar sob holofotes quem na sua ignorância pretensiosa julga estar lhe prestando algum inestimável serviço. João simplesmente diria que para movimentar os cristãos de várias denominações em um projeto comum, a iniciativa é bastante válida. Mas diria também que para usufruirmos da principal graça que a Bíblia pode nos conferir, o que menos importa é quem escreveu seus originais, quem a compilou no passado ou mesmo no presente. Todos esses foram e continuam sendo meros instrumentos para que esta Palavra chegasse íntegra nas mãos da pessoa mais importante para Deus. Aquela pessoa para quem ela primordialmente foi inspirada: o aflito necessitado. João diria também que mais importante que todas as Sociedades Bíblicas do mundo juntas são as pessoas que leem a Bíblia e que colocam em prática os seus ensinamentos.

Aquele homem tinha coragem e autoridade para assim proceder, porque: primeiramente nunca se furtou a doar gratuitamente Bíblias a quem que dele se aproxima mostrando interesse em conhecê-la; e em segundo lugar, nela meditava frequentemente de dia e de noite. Foi o primeiro homem de marketing a incluir a doação de Bíblias em campanhas publicitárias nesse país. Sobre os seus textos discorria com a competência de um teólogo renomado. A respeito das suas mais intrincadas questões, apresentava sempre as mais claras e lúcidas respostas.

Você está fazendo falta. Na sua ausência, João, o rato subiu na mesa. Sua amada igreja hoje expõe abertamente nas redes sociais fotografias de pessoas sendo batizadas em ridículas piscinas infláveis. Promove campanhas de cura e libertação, novenas e já tem também os seus superstar gospels próprios. Está faltando você atrás daquela mesa da classe da Escola Dominical. Suas matérias nos jornais e suas publicações custeadas por você mesmo sem qualquer ajuda financeira e sem qualquer custo para os leitores, foram as últimas grandes tiragens de qualquer tipo publicado por aqui, e continuam sendo as únicas que merecem ser lidas.

Particularmente falando, você me faz muita falta. Esse blog tinha em você não somente o seu maior motivador, mas com a sua partida ele perdeu ao mesmo tempo aquele colaborador que dava o peso justo às postagens, pois era você quem acrescentava as sugestões definitivas, as ilustrações apropriadas e os argumentos incontestáveis que fizeram com que os acessos ultrapassassem a barreira dos vinte mil em pouco mais de um ano de existência.

Eu juro que tentei ir à classe da Escola Dominical depois que você se foi, mas está longe de ser a mesma coisa. Eu olhei bem para aquela mesa e me lembrei da música popular que com alguns poucos retoques poderia bem ser o hino que expressa toda a nossa saudade:

Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim.

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Inspiração eterna


Louvai a Deus, Senhor
Vinde adorá-lo
Em seus átrios entoai
Hinos de louvor

Sei que muita gente pensa o contrário, mas não vejo parâmetros para comparar as mensagens dos hinos antigos com os louvores gospel atuais. Apesar de pensar assim, não vou fechar questão sobre este aspecto da hinologia cristã no tempo, e fazer da meditação de hoje um programa de calouros para eleger quem canta mais ungido  ou mais inspirado. Mas alguns dados são importantes e merecem ser ressaltados.


O primeiro aspecto a ser ressaltado é que a inspiração das letras na hinologia antiga fundamentava-se quase que exclusivamente nos salmos. Os autores sacros do passado não se arriscavam muito com textos complexos ou de duplo sentido para calcar a sua mensagem musical. Isso é importante porque os hinos, pelo fato de serem cantados por toda a congregação, não devem conter fundamentos teológicos que não sejam de fácil compreensão de todos. Logicamente que o hino deve ser inspirador para as situações do cotidiano, e ao mesmo tempo falar ao coração daquele passa por um momento de tribulação inusitado. O hino tem obrigatoriamente que preencher o coração do fiel que navega em águas tranquilas, além da mesmice que se vive no dia a dia, mas também deve ser a luz que brilha na escuridão de quem se encontra momentaneamente abalado na sua fé. O que melhor que um salmo, que já provou a sua eficácia por milhares de gerações, para atender plenamente essas necessidades?

O segundo aspecto é que a hinologia antiga não pertence à gravadora, não faz referência ao autor e nem se dá conta de quem é o intérprete. Pouquíssimas pessoas ouviram falar de Sarah Poulton Kalley, sabem a cor dos olhos de Henry Maxwell Wright ou onde foi pastor o rev. Antônio de Campos Gonçalves. Pois esses três escreveram a maioria dos hinos que os hinários das igrejas tradicionais contêm. Compuseram hinos para a igreja refletir nos mais diversos momentos do culto e que falavam às mais variadas necessidades do crente. Hinos que imediatamente passaram a pertencer à comunidade evangélica, sobre os quais ela detinha todos os direitos autorais. Não foram feitos para substituir outros elementos importantes do culto, mas para completar harmoniosamente todos esses elementos.
Um terceiro aspecto, talvez este seja o grande diferencial, é que o hino tradicional tem por finalidade chamar o cristão à responsabilidade quanto ao seu ministério, expor-lhe todas as dificuldades da vida cristã e lhe cobrar respostas diante dos grandes desafios do evangelho. Isso mesmo, são hinos que muitas vezes embargam a voz no meio de uma estrofe supostamente despretensiosa. São mensagens que atingem aquele que canta com a mesma intensidade com que atingiu o autor na hora da sua inspiração, por isso não deixam dúvidas quanto ao seu propósito.

Mas o aspecto que realmente chama a atenção é o fato de que nenhum dos autores antigos ganhou dinheiro compondo, ficou rico cantando ou se tornou celebridade de uma hora para outra pela sua obra musical. Pelo contrário, muitos deles escreveram as suas composições após sofrerem duríssimas perdas e debaixo da dor de irreparáveis separações. O rev. John Newton compôs, além de inúmeros hinos, Amazing Grace, uma das músicas do repertório cristão que tem o dom sensibilizar até quem não entende a letra, após perder toda a sua fortuna em um naufrágio, perder o seu prestígio de maior mercador de escravos da Inglaterra e quase perder a sua vida. Newton se converteu à mensagem redentora e gratuita do evangelho, e só por isso pode dar ao mundo mais do que um belíssimo hino: a certeza de que não importa o tamanho do pecado, a inacreditável graça de Deus ainda é muito maior. O rev. Newton despediu-se do mundo dizendo: John Newton, uma vez um infiel e um libertino, um mercador de escravos na África, foi, pela misericórdia de nosso senhor e salvador Jesus Cristo, perdoado e inspirado a pregar a mesma fé que ele tinha se esforçado muito por destruir.

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Bebei dele todo(s)

Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. E, tendo cantado um hino, saíram para o monte das Oliveiras.  Mt 26.26ss
Última Ceia, Walter Rane (1949-)
Enquanto ajudava a celebração da Ceia do Senhor em um domingo, me veio a memória lembranças as pregações que o meu pai fazia fundamentadas nas conclusões que tirava dos textos bíblicos, que aqueles que o admiravam diziam ser no mínimo pouco ortodoxas, para não chamá-las diretamente de heréticas. O que tinha de mais curioso nisso é que ele não buscava os textos mais complexos ou aqueles que sobre os quais se podia dizer que pairava uma dúvida razoável. Não, ele complicava o que havia de mais simples e de mais consensual. Ele fazia questão de questionar as cláusulas pétreas da hermenêutica bíblica e as suas interpretações definitivas.


Certa vez ao comentar sobre o pecado de Adão ele disse: O grande pecado de Adão foi querer ser igual a Deus. Imaginem o quanto Deus ficou decepcionado com ele. As pretensões de Adão eram muito pequenas diante do muito que Deus esperava dele. Um dos grandes desejos de qualquer pai em relação ai seu filho e que este o supere em inteligência, em criatividade, em beleza, enfim, em todas as coisas. Qualquer pai quer que seu filho seja muito mais e vá muito maios longe do que ele conseguiu ir. Pois é, o grande pecado de Adão foi o de querer ser só igual a Deus, enquanto Deus esperava tanto dele. Eu fico pensando o que aconteceria comigo se no sermão de prova eu fizesse apologia a este pensamento, ou se pelo menos ousasse citá-lo para a banca que me examinava. Na melhor das hipóteses eu ia antecipar o que ouvi de um senhor após pregar numa igreja do interior: Pastozinho bom esse “né”? Vai pregar bem assim no quinto dos inferno.

Meu pai também tinha uma interpretação muito particular para este texto do evangelho que introduz a Santa Ceia. Ele, com o seu conhecimento de grego, lia claramente “bebei dele todo”, e assim interpretava que o cálice da ceia deveria ser sorvido até a última gota em obediência a uma ordem direta de Jesus Cristo. Vale ressaltar que ele sempre afirmava ser a Ceia do Senhor e não da igreja, e que por isso indistintamente todos tinham acesso a ela. Mas em uma interpretação individual, aquela que cada pessoa deve ter para si em particular diante da Ceia do Senhor, ele entendia que deveria absorver tudo o que aquele canal da graça de Deus, o que John Wesley afirmava ser a Santa Ceia, tinha a comunicar e a propiciar. Ele entendia que cada gota do vinho da Ceia era uma porção infinita da graça que Deus quer comunicar aos seus filhos. Então, assim como os padres católicos recolhem e consomem todas as migalhas da hóstia, porque, segundo a doutrina da transubstanciação própria da sua igreja, aquele é de fato o corpo de Cristo, o meu pai, que não agia motivado pela mesma doutrina, consumia até a última gota da ceia do vinho.

Mas ele não fazia isso simplesmente para ser diferente ou para criar um modismo a ser imitado, mas sim por que tinha em mente o sacrifício de Cristo, que foi, de igual forma, até a última gota e até a derradeira consequência. Para o meu pai, todo aquele que participava da Ceia tinha que conhecer a dimensão exata do sacrifício que ela anuncia, da mesma forma em que se beneficia da graça que ela comunica.


Bebei dele todos, indistintamente sem cerimônia, mas com a certeza do que o sangue que nos é oferecido de graça custou um preço altíssimo. Bebei dele todo, porque assim é a dinâmica da graça de Deus, ela exigiu absolutamente tudo daquele que a concede, para custar absolutamente nada para aquele que a aceita.  

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Tudo no presente, tudo um grande presente

A jovem pastora, H. W. Hudson (1841-1922)
Uma reflexão no Salmo 23 pelo rev. Edson Fernando de Almeida.
Frei Carlos Mesters, numa apresentação aos Salmos dizia: Há uma diferença entre as palavras “rezar” e “orar”. Posso rezar os Salmos e posso orá-los. “Rezar” vem de “recitar”: recito ou rezo orações que outros fizeram. “Orar” significa que a oração vem de dentro de mim mesmo. Milton de Nascimento tem uma música, cuja letra expressa o que quero dizer. Ele diz: Certas canções caem tão bem dentro de mim que perguntar carece: “Por que não fui eu que fiz?” Ou seja, posso chegar a rezar os salmos de tal maneira que eles expressem exatamente aquilo que eu estou sentindo no momento.


Ou como dizia Cassiano (século IV): Instruídos por aquilo que nós mesmos sentimos, já não percebemos o salmo como algo que só ouvimos, mas sim como algo que experimentamos e tocamos com nossas mãos; não como uma história estranha e inaudita, mas como algo que damos à luz desde o mais profundo do nosso coração, como se fossem sentimentos que formam parte do nosso próprio ser. Então, que elementos deste lindo salmo nos tocam tanto?  Que conteúdos desta verdadeira reza que não nos cansamos em repetir são capazes de evocar a nossa própria oração? Poderíamos dizer que uma das razões está em que neste Salmo aparecem algumas maravilhosas imagens de Javé. Destaquemos, pois, quatro delas:

Quando Javé é meu Pastor...

Não me falta provisão!
Ele é O Deus misericordioso, o Deus da Provisão, atento às nossas mais básicas necessidades: águas tranquilas, pastos verdejantes.  Água, comida...  Mas, a gente não precisa só de comida pra sobreviver, a gente precisa de alegria, de prazer pra viver. E essa necessidade fundamental, embora não contada na cesta básica da sobrevivência, aparece no Salmo: o refrigério para alma. Lutero, num lindo sermão que pregou sobre esse salmo, assim interpretou a palavra refrigério: napash significa recuperar-se e saciar-se. Lutero se lembra de uma expressão do seu povo para expressar tal refrigério: um bom gole ajuda o corpo e a alma, ou: sobre barriga cheia tem que estar cabeça alegre. E conclui o reformador, lembrando o que se dizia após uma refeição: Agora tá melhor! Ou seja, Javé é pastor não só das nossas necessidades espirituais, também o é das nossas necessidades biológicas, e mais ainda, nos acolhe e provê a nossa necessidade do prazer de viver, da alegria nas pequenas e grandes coisas. 

Não me falta condução.
Ele é o Deus Condutor, o grande arquétipo do caminho – Aquele que nos guia pelas veredas da justiça. O ser humano tem sede de necessidades biológicas, tem sede de necessidades estéticas: o prazer, a alegria, mas tem sede também de necessidades éticas: Guia-me pelas veredas da justiça. A justiça, a justa medida, a equanimidade, o desafio da conciliação de elementos aparentemente tão contraditórios como, a vida individual e coletiva e etc. Diz a Bíblia de Jerusalém: Guia-me por bons caminhos, por causa do seu nome.

Javé é este horizonte, este caminho, esta seta-senda que põe nossa vida em movimento: do isolamento à solidão, da hostilidade à hospitalidade, da ilusão à verdade.  Na resposta dada a Tomé Jesus se colocou neste lugar do Javé do salmista: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Que bela metáfora, Deus se apresenta não como um lugar, como uma lei, mas como um caminho, como uma seta, como uma direção que põe nossa vida em movimento. Lembro-me de Raimon Pannikar quando dizia que Jesus não é para nós um ídolo, mas um ícone. Uma janela que abre outras janelas e põe nossa vida em movimento.

Não me falta consolação.
Ele é o Deus protetor/consolador: Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum: Tu estás comigo. Diz a Bíblia de Jerusalém: Tu estás junto a mim. E aqui aparece a maravilhosa imagem de Deus como aquele que nos dá um solo, que nos consola. O termo hebraico nahamaponta um cajado no qual podemos nos apoiar. Assim interpretou Lutero a presença consoladora de Javé: Não te vejo, não te sinto, mas te ouço! Deus como aquele que nos dá um chão (com-solus) de sentido para a nossa vida.   

Não me falta hospitalidade.
Por ultimo, Ele é o Deus hospitaleiro: Preparas uma mesa na presença dos meus adversários. Assim interpretou Lutero: Até poderíamos pensar: preparas-me armas e muro seguro, mas o texto diz: uma mesa. Com isso está anunciando o maravilhoso poder da Palavra. Nossa vitória consiste simplesmente em comer e beber, isto é, em tomar a Palavra e nela crer

Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, mas pela minha palavra, diz o profeta Zacarias no capítulo 4. Diz a canção que cantamos: Palavra não foi feita para dividir ninguém, palavra é a ponte onde o amor vai e vem.

Preparas-me uma mesa! Unges-me a cabeça com óleo, a minha taça transborda! Mais uma vez, a interpretação de Lutero: Davi bem poderia ter dito: pensei que ele iria me colocar um elmo na cabeça, mas me passou óleo, como se eu estivesse a caminho de um baile! Como é possível que o Espírito Santo fale com tanta arrogância contra o diabo! No fundo, não te está escrito: tu me ungiste, mas: tu me besuntaste, isto é, tu me mergulhaste na Palavra, consolaste, ensinaste e fortaleceste. Tal unção é nosso armamento. E dirá ainda Lutero: Ah, o diabo vai ficar maluco, quando ouvir que fazemos pouco caso de sua raiva, pois estamos saindo para o baile.

O meu cálice transborda. O cálice sou eu. Estou cheio, estou provido, tenho um pastor. Estou bem!
Em outras palavras, quando Javé é nosso Pastor então nos sentimos tomados pela alegria de viver e aqui está a nossa força, a nossa mesa: um coração alegre. Lembram-se do provérbio bíblico? O coração alegre é como o bom remédio, mas o espírito triste seca os ossos.

Concluindo:
Assim termina o Salmo: Bondade e misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida. A Bíblia de Jerusalém diz: Felicidade e amor me seguirão todos os dias da minha vida. Sim, a felicidade é nossa maior arma, não a agressividade e violência; a hospitalidade, não a hostilidade; o amai-vos uns aos outros, não o armai-vos uns contra os outros. E o Salmo termina dizendo: E habitarei na casa do Senhor. A melhor tradução é a que diz: Minha morada é a casa de Javé por dias sem fim. O Salmo inicia: Javé é meu Pastor, nada me falta. E conclui: Minha morada é a casa de Javé.

Tudo no presente, tudo um grande presente! 

Rev. Edson Fernando de Almeida, pastor titular da Igreja Cristã de Ipanema, Rio, RJ. Doutor em Teologia, psicólogo, pós graduado em Filosofia Contemporânea, professor do Instituto Metodista Bennett, Instituto La Salle e Universidade Veiga de Almeida e escritor.

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Opção sexual

Ló fugindo de Sodoma, Rafael em 1514
Os que acompanham regularmente este blog são testemunhas de que nunca opinei sobre o imbróglio no qual se debatem atualmente as igrejas neopentecostais e o movimento gay.
Já disse mais de uma vez e vou repetir: onde a Bíblia é sucinta eu não me aprofundo. Considero um absurdo teológico combater as premissas do movimento deste grupo minoritário com analogias retiradas diretamente de textos bíblicos, simplesmente por uma razão: não existia o tipo de homossexual que reivindica, que exige direitos e que quer se fazer representar na sociedade durante todo o período testamentário. Por causa deste ínfimo detalhe, os escritores bíblicos nunca precisaram meditar sobre o tema da homossexualidade que tanto fervilha em nosso tempo, assim como não o fizeram sobre várias outras questões que somente vieram à tona séculos após a sua morte: Clonagem e manipulação de células são exemplos disso. Se formos mais além, vamos descobrir que a palavra homossexual, assim como a ideia de se ter uma opção sexual nem existiam naquele tempo.


Outro absurdo retirado da Bíblia é o uso da palavra sodomia e do verbo sodomizar para designar a relação sexual entre homens. Uma rápida olhada no texto do Gênesis vai mostrar que a intenção dos habitantes locais não era praticar o ato sexual com pessoas do mesmo sexo, mas sim entre espécies diferentes, posto que os três seres que estavam na casa de Ló foram identificados como anjos. A verdadeira proposta dos sodomitas era impor o poder hegemônico do seu povo sobre qualquer poder que os visitantes viessem a possuir. A própria realização do ato sexual entre homens tinha um caráter iminentemente político. Os vencedores das batalhas faziam absoluta questão de ratificar a sua superioridade sobre os vencidos seviciando-os. Israel na conquista de Canaã não se furtou a praticá-la. Também era uma relação comum entre o imperador romano e seus generais. Dependendo do resultado das batalhas eles recebiam louro na cabeça ou dedo na ...

O episódio de Sodoma e Gomorra registra também um flagrante atentado à imperiosa lei de hospitalidade que é consensual entre os povos do deserto. O profetismo bíblico condenava Israel pelo descaso para com a necessidade dos órfãos, das viúvas e dos estrangeiros, o que constituía, este sim, o grande pecado das cidades da campina: Eis que foi esta a iniquidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranquilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre e o necessitado. (Ez 16,49)

Como se vê, não há qualquer referência que possa ser associada à homossexualidade neste texto. Por outro lado, viver e prosperar em locais inóspitos, como são as campinas ao sul do Mar Morto, requer muita habilidade e constante atividade. Imagem de uma civilização que não combina com a atual ideia de devassidão e orgia que se apregoa sobre a índole daquelas cinco cidades.

Não se pode dizer também que os derrotados, que serviam a luxúria dos vencedores, tiveram oportunidade de fazer uma opção sexual. O sexo lhes foi imposto pelo poder das armas. Da mesma forma, entre as religiões pagãs que habitavam o entorno de Israel, os jovens e as jovens habitualmente prestavam serviços sexuais nos templos, como se hoje presta serviço militar. A formação de meninos prostitutos, que é uma das traduções da palavra malokai, que na Bíblia foi traduzida por efeminados, foi tenazmente combatida pelos profetas em Israel, donde se conclui que a prática era muito comum entre o povo que se dizia de Deus. Precisaríamos também abordar o tema sob o ponto de vista da civilização grega, onde meninos de doze ou treze anos eram entregues a tutores mais velhos, que lhes ensinavam bem mais do que literatura e filosofia.

Para encerrar temporariamente esse assunto, gostaria de mencionar que a única opção sexual citada na Bíblia refere-se aos eunucos. Em uma situação bastante embaraçosa, Jesus diz que havia três tipos de eunucos: os que foram feitos eunucos pelos homens, os que nasceram eunucos e os que se fizeram eunucos pelo Reino de Deus. Embora seja este também um tema sucinto nas Escrituras. Vale lembrar que Jesus não fez apologia à abstinência sexual nem tampouco à castração, mas a uma decisão voluntária e pessoal daquele que quer prestar um serviço exclusivo, benvindo, e, de certa forma necessário, para a plenificação do Reino de seu Pai.

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O que é MÁRTIR?

Martirio de cristãos, Konstantin Flavitsky  em 1862
Embora para nós este termo designe aquele que é morto por uma causa, na sua raiz etimológica ele significa aquele que presta testemunho nos planos histórico, jurídico ou religioso. No contexto judaico cristão a tradição fez uma aglutinação dos dois sentidos e fixou a ideia de mártir como aquela pessoa que dá exclusivamente um testemunho de sangue, dispondo-se a sofrer a mesma penalidade que aquele a quem defende com o seu testemunho está prestes a receber. O uso do termo aparece no Segundo Testamento designando aquele que dá a sua vida por fidelidade ao testemunho de Jesus Cristo: Conheço o lugar em que habitas, onde está o trono de Satanás, e que conservas o meu nome e não negaste a minha fé, ainda nos dias de Antipas, minha testemunha, meu fiel, o qual foi morto entre vós, onde Satanás habita. (Ap 2.13)


O próprio Jesus se identifica como o mártir de Deus. No seu sacrifício voluntariamente aceito, ele dá efetivamente o testemunho supremo da sua fidelidade à missão que o Pai lhe confiou. Segundo o evangelista João, Jesus não somente conheceu de antemão como também livremente aceitou a sua morte como a perfeita homenagem que deveria ser prestada ao seu Pai: Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai. (Jo 10.18) Para que não pairasse dúvidas quanto à finalidade da sua missão ele igualmente a confirma diante de Pilatos, que era quem detinha o poder de promulgar a sentença de morte: Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. (Jo 18.37)

Para Lucas, é a Paixão de Jesus que sublinha os traços que o definirão para sempre como o mártir por excelência da fé cristã: conforto da graça divina na hora da angústia; silêncio e paciência diante das acusações e dos ultrajes; inocência reconhecida por Pilatos e por Herodes; esquecimento dos próprios sofrimentos; acolhida prestada ao ladrão arrependido; perdão concedido a todos os que os traíram, o martirizaram e o abandonaram.

Com profundidade mais acentuada, o Segundo Testamente reconhece Jesus como o Servo Sofredor anunciado por Isaías. Nesta perspectiva, a Paixão de Jesus aparece como essencial à sua missão. Do mesmo modo que o Servo deve sofrer e morrer para justificar multidões, –Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si. (Is 53.11) – Jesus deve passar pela morte para trazer ao mundo a redenção dos pecados: Tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. (Mt 20.28) Este é o sentido do “é preciso” que Jesus repetidas vezes reitera em suas pregações. O desígnio da salvação de Deus passa pelo sofrimento e pela morte da sua testemunha maior.

Não foi assim com os profetas? As testemunhas de Deus anteriores a Jesus não foram perseguidas e condenadas à morte? Não é uma coincidência acidental. Jesus se reconhece como a testemunha que consuma o plano divino fielmente testemunhado pela tradição profética. Mostrando também fiel a esta tradição, marcha para Jerusalém, porque: não convém que um profeta pereça fora de Jerusalém. Esta paixão faz de Jesus a vítima expiatória que substitui todas as vítimas de sacrifício até então, pois sem derramamento de sangue não pode haver redenção. (Hb 13.33 e 9.22)

O martírio de Cristo fundou a igreja. A igreja, por sua vez, é chamada para dar testemunho de que aquele martírio é a salvação de todos. Esse testemunho deve assegurar que Jesus não foi simplesmente alguém que morreu por testemunhar a sua fé, como passariam a ser aqueles que mais tarde seriam suas testemunhas. Jesus veio para ser a plenificação do Messias, aquele que veio definitivamente salvar o Israel de Deus e restaurar a filiação que havia se perdido com o pecado. Nesse sentido ele adverte que os que se propusessem a segui-lo sofreriam perseguições, torturas e até morreriam, pois foi exatamente isso que fizeram com ele.

Não é sem razão que o martírio de Estevão provocou, além da expansão da igreja para fora dos muros de Jerusalém, o que muitos teólogos afirmam ser a principal motivação da conversão de Paulo. O livro do Apocalipse, em vez de ser lido como meras previsões de futuro, deveria ser considerado o livro dos mártires. Aquelas fiéis testemunhas que deram à Igreja o ao mundo a prova cabal de que vale a pena morrer por um Senhor que deu a sua própria vida para que tanto a nossa vida quanto a nossa morte não fossem em vão. 

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Um doce e suave veneno

Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores. Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite. Salmo 1
David toca a cítara, Andrea Celesti (1637-1712)
Texto extraído do Livro Salmos para o Coração do rev. Jonas Rezende.
Você sabe? Este salmo sempre haverá de me lembrar meu velho professor Herculano Gouveia, e a maneira como ele ensinava no Seminário Teológico de Campinas, São Paulo, as regras da oratória sacra ou homilética. Havia sempre nos seus lábios o sorriso amigo, e ele mostrava aos jovens seminaristas a vantagem do bom humor e até de uma anedota como a ilustração que descansa quem nos ouve. Lembro-me do professor Herculano porque ele parecia gostar muito desse primeiro salmo e de sua mensagem.

A abertura do Saltério não poderia ser melhor. Utilizando o recurso de uma poesia que não serve nem de rima nem de métrica, mas encante e seduz pelo brilhante jogo de ideias, comum a toda literatura oriental, o primeiro salmo declara que as escolhas da companhia e proteção de Deus é a escolha mais importante da nossa vida. Por isso mesmo, quem assim se comporta é um homem feliz. Bem-aventurado.

O poeta descreve com força e beleza a vida do justo. Compara esse homem de bons costumes à árvore plantada junto às correntes das águas, com folhagens verdejantes e abundantes frutos. A figura de linguagem é ainda mais expressiva, se nos lembrarmos de que se refere a uma região de solo arenoso e calcinado, onde a escassez de água pode provocar desavenças e conflitos. E o fecho da bem-aventurança revela a dimensão da generosidade divina: tudo o que o justo fizer alcançará absoluto sucesso.

Veja agora como é inteligente e penetrante a forma que o poeta usa para retratar um comportamento perigoso e de crescente gravidade: o justo, diz ele, não anda, não se detém e nem se assenta na roda dos que zombam de Deus. Fica muito claro o perigoso comprometimento, capaz de destruir a vida por completo, e é algo que se insinua de modo quase imperceptível e inocente, quando desliza para dentro de nós, mas termina por dominar aquele que, de repente, se descuida e baixa a guarda no momento errado. Quem já não provou um dia desse doce e venenoso cálice? Os jovens na sua procura inquieta de emoções e novas experiências, podem se transformar em vítimas preferenciais. Mas todos, sem distinção, não somos imunes ao seu fascínio.

O salmista então elabora um oportuno paralelo entre a decisão acertada do justo e a infeliz escolha do ímpio, com sua inevitável perda de rumo e de sentido para a vida, o que equivale ao exato sentido bíblico de pecado. É certamente por isso que poeta do Eterno conclui: Pois o SENHOR conhece o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios perecerá.

No Livro dos Provérbios de Salomão, que nos apresenta uma sabedoria e prática apropriada para a vida cotidiana, encontramos uma solene advertência que bem pode servir de definitivo fecho a este salmo. Veja só o que diz o filho de Davi. Há caminhos que ao homem parece o bem, mas cujo fim é a morte.

Pare, reflita e viva.

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Sermão também faz tipo

A pregação de Noé, Harry Anderson (1906-1996)
Certa vez, ao pregar em uma pequena igreja, percebi que a congregação era composta apenas de membros e que não havia entre os presentes visitantes ou pessoas estranhas ao culto cristão. Disse que ia aproveitar aquela oportunidade para fazer um “sermão para crentes”, referindo-me ao tipo de pregação que eu ia praticar naquela hora. Ao terminar fui interpelado por uma jovem com a seguinte pergunta: Existe mais de um tipo de sermão? Minha vontade era dizer um enfático sim, mas dado aos sermões que podem ser observados com frequência nas televisões e na maioria das igrejas que fizeram opção pelo sistema neopentecostal de culto, tive que me conter, dar algumas explicações, para finalmente poder responder positivamente aquela pergunta.

O fato é que, por incrível que pareça, há uma variedade apropriada de sermões, e que deveria ser utilizada em toda a sua extensão durante os cultos dominicais. Sem querer dar uma aula sobre o assunto, mesmo porque fui aluno de monstros da homilética, como Amir dos Santos, Nathanael Inocêncio e Jonas Rezende, dos quais não sou digno sequer de desatar as sandálias quanto mais me colocar em seus lugares, passo a fazer aqui um breve resumo do que aprendi sobre esta bendita variedade de tipos de sermão.

Os compêndios de homilética, ou a arte de falar em público, afirmam que há três tipos de sermão: sermões tópicos, sermões expositivos e sermões textuais.

Sermões tópicos são aqueles que versam sobre um assunto ou tema específico e dele não se desviam. Podemos dar como exemplo os sermões que falam sobre santidade, oração, amor ou qualquer outro tema abordado isoladamente. É o tipo de sermão que exige um conhecimento razoável de Teologia Sistemática, uma vez que o pregador deve se valer de toda a Bíblia, pois os sermões tópicos precisam encontrar os seus argumentos nas várias etapas da história da salvação e conciliá-los satisfatória e convincentemente.

Sermões expositivos são aqueles que desenvolvem trechos das Escrituras em uma unidade de pensamento. O pregador pode e deve apresentar outros textos bíblicos, mas a sua referência sempre será o texto indicado para a meditação. É o tipo de sermão que exige uma boa quantidade de material auxiliar, pois o texto em questão deve ser aprofundado o quanto mais, para que ele revele a sua mensagem central, que na maioria das vezes está escondida por trás de palavras diametralmente opostas a ela. É o sermão que exige uma luta tão ferrenha como a de Jacó em Peniel.

Sermões textuais são aqueles que são desenvolvidos a partir de um único versículo da Bíblia. São geralmente usados para públicos que dispõem de pouca capacidade de atenção e abstração, como crianças e idosos. São muito utilizados também em cerimônias fúnebres, casamentos ou cultos de ação de graça. Esse é um sermão temático, cujos argumentos de maior relevância vem unicamente do versículo proposto. Alguns outros versículos podem ser citados, desde que estejam relacionados ao versículo central e ao tema abordado para que não haja divagações nem necessidade de elucubrações profundas devido à brevidade da pregação e ao público alvo.

Mas eu arriscaria dizer que há subdivisões nessas classes. Podemos citar sermões doutrinários, evangelísticos e até parenéticos. A variedade é grande, não razão alguma para que o pregador fique constantemente enaltecendo as suas virtudes, o valor de seus familiares ou mesmo a grandeza e operosidade da sua igreja. Importa que ele cresça e eu diminua, é a cláusula pétrea instituída por João Batista.

O bispo Almir dos Santos dizia que o sermão não é para agradar ninguém, e sim para converter. Para ele havia apenas duas maneiras de se sair uma pregação, cristã: chutando o balde ou convertido. Contudo, vou continuar fazendo sermões para crentes tantos quanto puder. Nada deveria dar mais prazer ao pregador sério do que falar para uma congregação composta de bereanos: aquelas pessoas da cidade de Bereia que receberam as palavras de Paulo com avidez, mas que ao mesmo tempo recorriam às Escrituras para comprovar a veracidade da sua pregação. (conf. At 17.10s)

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Tempo bom

Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos. Atos 2.46s

Para aqueles que imaginam que a Bíblia foi escrita per hoc tempus et lócus, ou seja, na hora e local do fato, Lucas passa uma ideia objetivamente oposta. Principalmente quando o assunto versa sobre as virtudes da igreja primitiva, existe todo um consenso que enaltece grandemente aqueles nossos pais da fé. Pelo que Lucas dá a transparecer quando escreveu o seu evangelho e logo em seguida o livro dos Atos dos Apóstolos, por volta do ano 80 de nossa era, já existia entre os primeiros cristãos um sentimento de melancolia por um tempo e por uma situação que para ele não existia mais. Seus dois livros seriam completamente diferentes do que este que temos hoje, se a igreja ainda estivesse vivendo aquele capítulo que é a grande inspiração para o Cristianismo em todos os tempos. Mas não foi assim. O capítulo 2 de Atos durou muito pouco, mas deixou muita saudade. Logo vieram a escolha não autorizada e mal avaliada de um novo apóstolo, o sectarismo sobre as viúvas dos judeus de origem grega e a discussão sobre a exclusividade da salvação, isso se nos retivermos apenas ao testemunho de Lucas.


A despeito de tudo, temos que considerar um dado importante: um dia a igreja já foi tão boa que funcionava, e funcionava com preceitos simples, porém, cuja execução era bastante complexa. Eu tento imaginar o quanto foi difícil para aquelas pessoas serem fiéis a Deus, obedientes ao evangelho, e ao mesmo tempo contarem com a simpatia de todo o povo. Em nenhum outro lugar da história se viu harmonia semelhante. Os mais antigos podem até dizer que o termo evangélico já foi muito mais respeitado, e que ser crente, em um passado próximo, era garantia de integridade de caráter, moral elevado, lisura e honestidade. Mas estes mesmos crentes nunca poderão dizer que foram integralmente fiéis a Deus, porque a sua história foi marcada por guerras absurdas, pelo silêncio diante dos governos ditatoriais e pela associação com o colonialismo e com a opressão financeira.

Existe hoje em dia uma forte tendência em se considerar que as coisas que são genuinamente de Deus são naturalmente agradáveis e conciliáveis a todas as formas de governo. É bom que se observe a tensão que havia entre os primeiros cristãos, o sacerdócio judaico e o Império Romano. É bom que se leia que eles contavam com a simpatia do povo, mas não dos governantes.

Hoje o mundo está mudado e com ele a igreja. Quem se reunia ocultamente nas fétidas catacumbas, agora enche estádios. Quem era perseguido pela sua fé, agora sobe nos palanques dos césares. Quem aprendeu a dar a Cesar exclusivamente o que era de Cesar, hoje se regala na mesa dos imperadores.

A igreja primitiva não tinha os recursos que temos hoje para a ação social, e nem para erguer suntuosos e confortáveis templos. Há bem pouco tempo não tínhamos força política para eleger sequer um vereador. Quem sonharia ter um senador cristão? Curioso que não tínhamos nada disso: não dávamos cestas básicas, não possuíamos creches, não fazíamos reforço escolar, não praticávamos a inclusão social, não tínhamos asilos em orfanatos, e apesar de tudo ainda contávamos com a simpatia do povo. Vocês acreditam que não tínhamos dinheiro para comprar horários nas televisões, adquirir estações de rádio, transformar cinemas em igrejas e nem para alugar um estádio, por menor que fosse? Parece mentira, mas era assim.

A fidelidade a Deus nunca irá ao encontro dos interesses. Ela esteve, está e sempre estará na contramão dessa história. O testemunho do evangelho sempre será uma pedra no sapato de todo aquele que quiser conciliar pacificamente estes dois mundos. Ninguém pode servir a dois senhores. Ou a igreja confronta a situação que se opõe declaradamente ao evangelho, ou, em vez de simpatia, vai ser alvo das piadas cada vez mais degradantes de um povo que sabe bem identificar quem é realmente cristão, a despeito de se dizer evangélico. É importante que seja agora, porque, segundo a sabedoria popular, quem espera tempo bom é sertanejo.

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Estamos dando pedras a nossos filhos?

Pedi, e dar-se-vos-á; buscai e achareis; batei, e abrir-se-vos-á. Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á. Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma cobra? Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem? Mateu 7.7-11
Tentação no deserto, Rembrandt em 1635
Texto de João Wesley Dornellas escrito em 9 de abril de 2000.
O “No Cenáculo” é para ser lido todos os dias, mas vale a pena ler com antecipação a meditação do próximo dia 29 de abril, que tem o título “Pedras ou Pães?”. É sobre o trecho acima. Se o leitor ou leitora tem filhos, vale a pena lê-lo hoje mesmo. O texto é muito conhecido. Jesus pergunta, para falar dos atributos de Deus, qual o ouvinte que, se porventura o filho lhe pedisse um pão, lhe daria uma pedra. Para ele, só haveria uma resposta possível. Ninguém, nem mesmo sendo mau, faria isto com seu filho. Nem lhe daria uma cobra em lugar de um peixe.

O autor da meditação relembra alguns fatos do seu relacionamento com os filhos e pergunta: “será que eu lhes dei pedras quando eles pediam pão?” Falando sobre o amor do Pai, Jesus nos afirma que o nosso Pai celestial tem preparado sempre o melhor para nós.

A Escola Dominical, que nos ensina a conhecer Jesus melhor, é uma dádiva que o Pai dá aos nossos filhos queridos. Ter essa bênção disponível e não aproveitá-la para nossos filhos é um desperdício dos maiores. Estamos guardando o Pão a Vida só para nós e privando os nossos filhos dele? Isto equivaleria, usando as próprias palavras de Jesus, a dar pedras em lugar de pão e cobra em lugar de Peixe. Vamos pensar no assunto?

Dê uma prova de amor a seus filhos. Assim como você, com todo amor, os acorda cedo todos os dias para irem à escola, faça o mesmo no domingo. Traga-os com alegria à Escola Dominical e estimule a participação deles. Na Escola Dominical – você pode ter certeza – eles serão sempre alimentados com o Pão da Vida. Não existe nada mais nutritivo. Quem dele se alimenta, nunca mais terá fome. Ou você prefere dar pedras para eles? Neste caso, pense na sua responsabilidade perante Deus e nos compromissos que você assumiu quando os apresentou à Igreja para serem batizados. Dê o melhor para seus filhos. Dê-lhes a Escola Dominical. 

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Até os confins da terra

Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. Leia Gênesis 11.1-9

Por do sol na Babilônia, Raphael Lacoste (1974-)
Eu nunca conheci o sentido exato da palavra confins antes do dia em que desembarquei no aeroporto mineiro que leva este nome e fiz o trajeto até o Centro da cidade de Belo Horizonte. Creiam em mim, realmente é longe. Contudo, por mais que quantifiquemos um valor que expresse a realidade desta palavra para o alcance do evangelho, a exigência de Cristo, quando deixou para aquele punhado de discípulos restantes a promessa do envio do Espírito Santo que aconteceu no dia em que se comemorava o Pentecoste, é maior ainda. Principalmente pelo fato de que longe, por não levar tão em consideração a distância, pois “os confins da terra” será exatamente aquele lugar onde não desejaríamos estar, e o ponto de encontro de pessoas com as quais não gostaríamos de nos relacionar.

Olhando o episódio da torre de Babel, narrado em Gênesis 11 de 1 a 9, com os olhos do Pentecostes cristão que é celebrado no dia de hoje, não podemos considerar que aquela narrativa expresse uma maldição generalizada às pretensões humanas de exclusividade e soberba. Além da nefasta confusão das línguas, que ali é preconizada, este texto fala do início da saga do homem para colonizar a terra. Podemos muito bem concluir que a ação de Deus em Babel fez com que os homens se dispersassem, pois a proposta da construção de uma torre levaria aquele grupo de pessoas a viver em contrariedade a um dos mandamentos primários de Deus: multiplicar-se e povoar a terra.

Quando olhamos para os condomínios fechados e vigiados com o melhor que a tecnologia tem a oferecer, estamos olhando diretamente para as torres de babel dos nossos tempos. São torres que não passam de uma desesperada tentativa do homem de se isolar em um gueto e pairar sobre as falsas nuvens da segurança, para de lá de cima contemplar o caos das periferias onde moram excluídos que não possuem este, por assim dizer, privilégio. É exatamente por isso que as Babéis custam cada vez mais caro, e é assim que elas se diversificam: de acordo com o tamanho do sacrifício que cada um se propõe a infligir sobre os recursos naturais e sobre a mão de obra alheia.

O texto fala em usar na construção tijolos como se fossem pedras e betume no lugar de argamassa. Uma mistura bastante sugestiva, pois combina o endurecimento de um material moldável e maleável além do necessário para o uso cotidiano, com um elemento que era usado para fazer as bolas de fogo e flechas incendiárias que eram atiradas nos inimigos. Não passa longe dos barris de pólvora que nos sentamos diariamente.

Se isso já é ruim, pior ainda é constatar que na celebração do dia escolhido por Deus para derramar o seu Espírito indistintamente sobre toda a carne, na exata data em que os primeiros cristãos foram tomados pela força avassaladora da evangelização que os levaria até os confins da terra, as igrejas de hoje estão se reunindo em guetos mais fechados que a própria Babel. É triste ver que nossas torres estão ficando cada vez mais altas, e que estão sendo construídas com indiferença sobre indiferença, e assentadas com a explosiva mistura da soberba espiritual com a pretensão de uma salvação exclusiva. Colocamos nas portas de acesso restrito as trancas do farisaísmo moderno para fazer com que a entrada dos excluídos esta se torne cada vez mais difícil.

Se faz mais que necessário compreender que maior que o dom de línguas, mais significativo do que o fogo que desce do céu, mais urgente do que a confirmação da segurança na salvação vem antes a ordem clara e objetiva de Jesus: espalharmos-nos para sermos suas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até nos confins da terra, sem o que o Pentecostes não passará de um espetáculo pirotécnico para uns poucos que estão sobre torres que nunca alcançaram o céu, pois estão prestes a desmoronar.

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O que é PENTECOSTES?

Pentecostes, Emil Nolde em 1909
A palavra grega pentecostes significa que a festa celebrada neste dia tem lugar cinquenta dias depois da Páscoa. O seu objetivo, que anteriormente agrário, passou a celebrar o fato histórico da aliança, para no Cristianismo se tornar a festa do dom do Espírito que inaugura a nova aliança. Sua origem é a festa das Sete Semanas, que assinalava o início da colheita das primícias da terra. Era um dia de alegria e de ação de graças pelos primeiros feixes de alimento que estavam sendo colhidos. Nesta data, segundo Êxodo 19, foi firmada por Deus, através de Moisés, a aliança com seu povo. Contudo, esta comemoração passou a acontecer apenas no segundo século antes de Cristo.


A sua consumação para o mundo cristão se dá no derramamento do Espírito de Deus sobre todas as suas criaturas, ou, como disse Pedro, sobre toda carne. É uma teofania que segue de perto as revelações de Deus no Primeiro Testamento, antecedida de vento e fogo. Um duplo milagre realça o sentido do acontecimento: os apóstolos tomam coragem para falar das maravilhas de Deus, inclusive em outras línguas, e o carisma da oração com o qual a comunidade primitiva se caracteriza. O que no princípio foi considerado pelos não cristãos como palavras incompreensíveis, esse falar em línguas era plenamente compreendido por todos os que estavam assistindo, num sinal evidente de que a vocação universal da igreja é ter ouvintes de todas as partes do mundo.

Pela citação do profeta Joel, Pedro mostra que o Pentecostes cumpriu uma antiga promessa de Deus: que no final dos tempos o Espírito seria dado a todos. João Batista já havia anunciado que aquele que haveria de batizar com o Espírito, já havia chegado. Anuncio conformado por Jesus que assegura aos discípulos esse mesmo batismo se daria poucos dias após a sua ressurreição, não somente consumando a Páscoa, como também a levando à plenitude.

Os profetas já haviam anunciado que os dispersos seriam reunidos no monte Sião, assim a assembleia de Israel estaria finalmente unida em torno de seu Deus. O Pentecostes, realizado em Jerusalém, amplia esta proposta, agregando judeus, prosélitos e pessoas de todas as partes do mundo que comungam o amor fraterno. Todos são bem vindos à mesa eucarística. O Espírito é dado visando um testemunho que alcançará as extremidades da terra. O milagre da audição enfatiza que a comunidade inaugurada pelo Messias, extrapola os limites de Israel, inverte os acontecimentos de Babel e confirma o derramamento do Espírito, aguardado com anseio desde os profetas.

O Pentecostes também inaugura o início da missão. Muito diferente do que foi entendido na antiguidade, quando pessoas eram convertidas ao Cristianismo ou eram executas, a missão proposta por Jesus comissionava apenas testemunhas que estariam prontas, no dizer de Wesley: para pregar ou morrer. Antigos teólogos comparavam este novo batismo, uma espécie de investidura apostólica, ao batismo de Jesus, realizado por João no rio Jordão. No Pentecostes foi dada a igreja a confirmação de que os céus estão abertos para derramamento constante do Espírito sobre todos os filhos de Deus, no que se podia considerar uma nova criação.

Mas o Pentecostes também revelar o mistério da salvação. Se no passado o aspecto exterior das teofanias de Deus era passageiro, o dom da Igreja é definitivo. O Pentecostes inaugura o tempo em que a Igreja na sua peregrinação santa ao encontro de Deus, vai, com certeza absoluta, encontrá-lo, quer seja na fé, no amor ou na esperança. Porém, com a mesma certeza será enviada de volta ao mundo, onde a sua peregrinação será ratificada como santa.

Os Atos dos Apóstolos ou Evangelho do Espírito Santo revelam a atualidade permanente desse dom, tanto pelo papel que o Espírito tem na direção da atividade missionária da Igreja, como nas manifestações mais visíveis da sua presença entre nós. O Pentecostes anuncia que o Messias prometido veio, e estará sempre vindo ao encontro daquele que voluntária ou involuntariamente o anseia, através de um derramamento que é sem medida, sem acepção de pessoas e tão incondicional quanto a graça.

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Pouca conversa e muita atitude

Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo... Lucas 10.19

Marion e Anita Way
É bem possível que eu tenha sido um dos poucos naquele clube da Tijuca, onde fazíamos sauna, que já tinha ouvido a voz do Mario além de um breve cumprimento. Calado e atento era sua característica marcante quando estava fora do seu ambiente natural: ao lado dos necessitados. Esse era Marion Washington Way Jr., que nasceu em 1930, na Carolina do Norte, de onde saiu tão logo completou seus estudos na área das Ciências Sociais. Escolheu ser missionário em Angola, um dos países que ainda estava sob a dominação tirânica de uma nação estrangeira. Muito cedo descobriu que não esta não poderia ser tarefa para um homem só. Então, voltou aos EUA onde contraiu matrimônio com Anita Betts. Juntamente com a aliança de casamento, deu a ela uma passagem para Angola, que, nessa altura, travava uma luta sangrenta a favor da sua liberdade e contra o seu opressor.



O casal de jovens missionários, que já tinha uma filha, não se deu conta que estava acintosamente transgredindo as leis de intolerância, de ódio e de segregação vigentes naquele país africano. Por conta da sua pregação, que consistia basicamente de ações concretas do amor era exigido pelo evangelho de Jesus Cristo, foi perseguido, preso e finalmente deportado. Desta vez calaram o Mario pela força das armas.

Mas este casal parece que tinha uma atração vocacional para servir em ambientes de conflito, e não é que vieram parar no Brasil justamente no período turbulento dos anos de 1960? O incorrigível Mario e sua família escolheram servir a Deus na pior região desta nação: na cidade do Rio de Janeiro, a mais declarada opositora do regime ditatorial, e no pior local desta cidade: no morro da Providência, no Centro. Uma comunidade que era composta basicamente de famílias de soldados que foram compulsoriamente “desalistados” após o término da Segunda Guerra, e que não teve qualquer assistência do governo para voltar aos seus estados de origem. Àquela situação deu-se originalmente o nome de Favela, nome que foi estendido a todas as comunidades que não tinham as mínimas condições de habitação.

Foi ali que por mais de uma vez o Mario transgrediu a ordem e enfrentou o poder das armas. Agora enfrentava a inflexível lei do tráfico de armas e de drogas. Nas diversas situações em que as crianças do ICP estiveram sob ameaça, o Mario, de dedo em riste, enfrentava indistintamente policiais e traficantes fortemente armados, e os enquadrava com uma autoridade que deixava todos completamente atônitos.

Essa é a autoridade que o poder das armas não tem e que o poder político desconhece. Mas é a autoridade diante da qual as forças do mal temem e tremem. É a autoridade daquele que tem a consciência plena de que está a serviço de Deus, de que foi comissionado por Jesus Cristo para pegar nos escorpiões e enfrentar as cobras, mas que ao mesmo tempo se dispõe a assumir os riscos e aceitar as consequências desses atos.

Mario nos deixou órfãos esta semana. Simplesmente dar a este homem um título, seja de diácono, de missionário ou mesmo de pastor, seria diminuir em muito o grau de influência do seu incomensurável ministério. Por algumas vezes o vi como opositor. Eu cuidava dos interesses da Federação de Jovens, que fazia retiros de Carnaval no Acampamento Clay, que era administrado pelo ICP, tendo o Mário como seu responsável direto. Eu achava que tinha direito a um bom desconto, por se tratar de encontro de jovens da igreja, e que patrocinava duzentos delegados no congresso que acontecia na Semana Santa. O Mario, por sua vez, conhecia profundamente a necessidade de receber a quantia total para usá-la no trabalho do ICP. Desta vez o conflito era comigo. Após calorosas discussões o desconto era negado, mas ele sempre arrumava um jeito de nos favorecer de outra forma, selando a paz entre nós. Nestas vezes era ele quem calava a minha boca com seus argumentos.

Expresso aqui a minha admiração e respeito pelo homem, pelo casal e pela família que atravessou fronteiras para ensinar aos cristãos do Brasil como se prega um evangelho subversivo, e como faz para enfrentar os escorpiões e cobras, armados exclusivamente com a Palavra de Deus e com atitudes exigidas pelo evangelho.

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O Contrário dos Pastores Eletrônicos

Tu me farás ver os caminhos da vida; na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente. Salmo 16
Pedro e Simão, o mago, Avanzino Nucci (1552-1629)
Texto do rev. Jonas Rezende.
Gore Vidal, no seu romance Messias, escrito em 1947, logo após as explosões das primeiras bombas atômicas no Japão, que terminaram com a Segunda Guerra Mundial e marcaram o início da chamada Guerra Fria, fazia uma análise negativa daqueles anos de tensão entre o bloco americano e o soviético, com a aguda investigação que esse escritor sempre se mostra capaz. Mas o enredo do seu romance detecta também um desses indigestos pastores eletrônicos que prometem verdadeiros milagres, à semelhança do que acontece com certos pastores brasileiros que transformam a vida religiosa em um balcão de vergonhosos negócios e em uma pregação incompetente e mentirosa.

Davi parece preocupado, Np presente salmo, com essa gente que, já em seu tempo, trocava o Senhor por outros deuses. E o poeta diz textualmente: os meus lábios não pronunciarão os seus nomes... Bendigo ao Senhor que me aconselha; pois até durante a noite o meu coração me ensina...  Pois não deixará a minha alma na morte nem permitirá que o teu Santo veja corrupção – pensamento que a Igreja vê como referência profética a Jesus. O salmista conclui seu poema dizendo: tu me farás ver os caminhos da vida.

Com base nesse salmo, no Saltério e na Bíblia como um todo, é possível dizer que, para participar do caminho vivo e verdadeiro que nos coloca face a face com Deus, é preciso, depois da graça divina, que tenhamos coragem de dar alguns passos. Até porque o amor divino não exclui a nossa participação, como resposta.

Primeiro a humildade do despojamento. Como Sócrates, que dizia: sou sábio porque nada sei. Acima de tudo e de todos, à semelhança de Jesus que, no entender de Paulo, na carta aos filipenses, se esvaziava da sua glória e se tornava servo de todos os homens, faria bem para nossa vida um olhar para Albert Schweitzer, um gênio entre os leprosos de Lambarene, na África. E o aprendizado definitivo com o pobrezinho de Assis. Tudo tão diferente do cínico e engomado mercador descrito por Gore Vidal.

Mas é indispensável também dizer um não ao moralismo e a hipocrisia, se quisermos trilhar o caminho vivo que Davi menciona no seu salmo. Fazer como Cristo, que não tinha escrúpulos de comer com pessoas desqualificadas, e tratar por senhoras as prostitutas – aliás, o mesmo tratamento que dispensava à sua mãe. Uma releitura da parábola conhecida como O Bom Samaritano certamente nos ajuda a atingir o cerne do problema, em direção visceralmente oposta à proposta pelos pastores eletrônicos da vida.

Mas, para participar do caminho vivo que nos fala o salmista, é sobretudo essencial uma relação direta e existencial com Deus, coisa que jamais parece acontecer com os pastores eletrônicos, suas gracinhas, as atitudes lesivas e a superficialidade do que dizem, em meio a um sorriso estúpido e alvar.

Ao mergulhar no tema proposto pelo salmo de Davi, a mim é impossível não relacioná-lo à afirmação de Jesus no Evangelho que recebo como um verdadeiro desafio: eu sou o caminho, a verdade e a vida, ninguém vem ao Pai senão por mim.

Por que não aceitá-lo como nosso?

Esta pergunta é também para você.

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Não escolhido.

E os lançaram em sortes, vindo a sorte recair sobre Matias, sendo-lhe, então, votado lugar com os onze apóstolos. Atos 1.26
Abadia de São Matias, em Trier, Alemanha
No Calendário Litúrgico da Igreja Católica reza que hoje é dia de São Matias, o venerável homem santo escolhido para ocupar o lugar de Judas no colegiado dos doze apóstolos. Muito embora esta tivesse sido uma escolha nos moldes de uma herança pagã que ainda sobrevivia entre os judeus, e, logicamente, entre os homens e mulheres mais próximos de Jesus, não há porque desabonar a conduta valorosa deste cristão que teve o seu nome tão honrosamente recomendado para o cargo. Apenas para ilustrar, o Urim e Tumim eram peças que o sumo pontífice do Judaísmo carregava em uma dobra especial do manto que ficava sobre o seu coração, que tinha o pomposo nome de Racional do Juízo, quando este se apresentava anualmente no Santo dos Santos, que era o lugar mais sagrado e exclusivo do Templo de Jerusalém. Por meio destes objetos o sumo sacerdote procurava conhecer a vontade de Deus em casos extremamente difíceis.


Em breve postarei o que de melhor encontrar sobre eles, por hora reitero as críticas que por mais de uma vez fiz, aqui mesmo neste blog, a respeito do critério de escolha que se baseia na sorte, ou no Urim e Tumim, se quiserem usar um termo menos associado ao paganismo.

Salvaguardado o respeito e admiração por este homem, que com toda justiça tem o seu nome arrolado entre os santos da Igreja; respeito esse que estendo aos irmãos católicos, que sempre foram criteriosos nesse tipo de escolha que jamais contou com a sorte, gostaria de aproveitar a oportunidade para falar um pouco sobre José, chamado Barsabás, cognominado Justo. Para quem não sabe, o outro da lista que não foi bafejado pela sorte lançada pelos apóstolos.

Não posso afirmar com certeza, mais existem fortes indícios de este era o candidato preferido por Lucas, o autor do Livro dos Atos dos Apóstolos. Basta que olhemos a forma com que ambos foram apresentados: Então, propuseram dois: José, chamado Barsabás, cognominado Justo, e Matias. (Atos 1,23) A apresentação que faz de José, agregando ao seu nome títulos e atributos, em relação à simples citação do nome de Matias é no mínimo curiosa, para não usar a palavra suspeita em um trecho das Escrituras. Podemos até imaginar que fosse esse o motivo pelo qual o nome do escolhido não tivesse sido mais citado no Livro de Atos ou em qualquer outro lugar da Bíblia.

O que importa para o momento é meditarmos sobre a amarga experiência de José por ter sido preterido em um critério de escolha vil e totalmente estranho à fé cristã. Não que a eleição por aclamação ou mesmo pela avaliação de méritos fosse recomendada, mas pelo menos seria decisão tomada em consenso pela responsável decisão de pessoas que conheciam muito bem os critérios de Jesus. Fala-se muito da igreja primitiva exaltando seus feitos como exemplos a serem seguidos, mas com toda certeza este não é um deles, assim como não expressariam a vontade de Deus a eleição ou a avaliação.

Felizmente para José, assim como para todos nós, Deus tem critérios muito mais elevados do que o nossos para fazer julgamento, avaliar atitude ou mesmo examinar o caráter. Não que José, Matias ou qualquer um dos homens e mulheres que acompanharam de perto o ministério de Jesus deixassem de merecer ocupar o lugar deixado por Judas Iscariotes, mas o décimo segundo apóstolo já estava sendo preparado por Deus desde o seu nascimento. Saulo, que já havia sido escolhido, não passaria nem na lembrança de qualquer lista que fosse elaborada com esse objetivo. Mas vale lembrar também, que a exaltação ao nome de Paulo, passa por critérios igualmente humanos, e que aos olhos de Deus, tanto Matias como José Barsabás, Paulo ou mesmo nós, não seremos julgados santos pelo que somos ou fazemos, mas sim porque que um Cordeiro se entregou voluntariamente ao sacrifício, e através do seu sangue, nós, que estávamos preteridos, fomos feitos dignos, santos e irrepreensíveis nos critérios que realmente contam.

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