Quando a Tristeza Chega III

Stanley Jones na Índia em 1973
(Trecho do livro do rev. Stanley Jones  (1884–1973), missionário metodista)
2. Suas dificuldades podem não resultar de seus próprios pecados e atitudes errôneas; podem ser inteiramente imerecidas. Jesus deixou claro que o sofrimento pode não ser prova de pecado. Ele disse que as pessoas sobre as quais a torre de Siloé caiu - acidente da natureza - e as pessoas cujo sangue Pilatos misturou com os seus sacrifícios - ação errada dos homens - não eram mais pecadoras do que todas as outras (Lucas 13.1-5). Jesus deixou lugar para o sofrimento imerecido. Mas parou aí? Absolutamente não. Disse que o sofrimento injustificado não deve ser meramente suportado, mas poderá ser aproveitado.

Decida fazer com que a sua tristeza o ajude - e também aos outros. Aqui está um modo positivo e atuante de se tratar com a tristeza. Assim agindo, você não foge dela, nem a “deixa como está para ver como fica” - mas a usa. O prof. William James, psicólogo americano, diz que  “essa maneira positiva e atuante de tratar com a tristeza dá nova dimensão à vida”. Quando a vida é dificultada e frustrada pelo sofrimento, há sempre uma saída, uma nova dimensão para a vida.

Qual é essa nova dimensão da vida?
Não é nada menos que o poder de aproveitar o sofrimento para alcançar a finalidade da existência, e transformá-lo em virtude e vitória. Isso não é mera filosofia de vida. É a própria essência da fé cristã - o modo autêntico de viver.

A ideia de que a fé cristã oferece uma fuga ao sofrimento é inteiramente estranha a essa fé. É verdade que o modo de vida cristão faz com que vivamos mais de acordo com a natureza da existência e, por conseguinte, nos livra da dor e da contrariedade que causamos a nós mesmos quando esfolamos a canela contra a realidade dos fatos.

Mas, enquanto nos livra dos resultados da loucura de uma vida desordenada, nos expõe a outro sofrimento de natureza diferente: a sociedade exige conformação. Se estivermos abaixo de seus padrões, ela nos pune. Se nos erguermos acima de seus padrões, ela nos persegue. A sociedade exige a conformidade média. Mas o cristão tem seu padrão mais elevado - ele é diferente. Por ser diferente é visado - é mal visto. Muitas vezes, perseguido. Isso causa sofrimento.

Há outra causa de sofrimento para o cristão. O contato com Cristo o torna sensível aos sofrimentos dos outros, e começa a perceber e a se preocupar em uma escala cada vez mais ampla. Participa dos sofrimentos dos outros, e realmente faz deles os seus próprios.
Além dessas duas circunstâncias do sofrimento, o cristão participa com o restante da humanidade dos males habituais da vida em um mundo como o que vivemos: morte de entes queridos, perda de saúde, perda de amizades, desapontamentos no amor, malogro de seus planos, frustrações que se originam do viver em um mundo incompleto.

Em um mundo incompleto ocorrem coisas que nos desiludem e, se deixarmos, nos destruirão. Esse é o ponto: - se deixarmos. Nossas reações a essas coisas determinam, em grande parte, o resultado. Não é o que nos acontece, mas como procedemos com o acontecido é que determina o resultado. Uma mesma coisa acontece a duas pessoas: uma fica de mau humor e a outra permanece serena. A atitude interior determina o resultado.

Estive em uma cidade onde a lembrança de um homem se espalha como uma suave fragrância, alcançando todas as coisas. Esse homem foi o Dr. James “Adorável” MacGiffert, um matemático cego. Por muitos anos lecionou em uma escola técnica, mas em seu magistério realmente ensinou a ciência do viver. Sempre que os bacharéis daquela escola perguntavam por sua “Alma Mater”, faculdade onde se formaram, a primeira pessoa por quem indagavam era do amigo cego e professor. Ele ensinara matemática, mas, antes de tudo, os ensinara a serem homens. Um de seus alunos havia perdido completamente a vontade de estudar e, já homem feito, era quase analfabeto. Esse mestre, cego, de tal forma o inspirou e o estimulou que agora também é professor.

A palavra “Adorável” foi afetuosamente acrescentada ao seu nome pelos amigos, pois todas as coisas para esse cego eram “adoráveis”. Ele sempre usava essa palavra e, por essa razão, a acrescentaram ao seu nome. A cegueira o atingiu, mas o encanto de sua personalidade o tornou, a ele e aos que estavam ao seu redor - “adoráveis”. Isso é ser vitorioso.

Um médico aplicou uma injeção contra tétano em seu filho, que havia caído sobre arame farpado. Posteriormente a criança veio a falecer em seus braços. Esse acontecimento poderia ter enchido de amargura o casal, mas, ao invés disso, levou-os à decisão de dedicarem suas vidas às crianças desamparadas. Essa escolha foi o ramo de árvore que, lançado às águas amargas de Mara, as tornou doces (Êxodo 15:25). Enfrentaram a calamidade com tal disposição de espírito que a transformou em devoção.

Um famoso cirurgião e seu filho estavam operando um paciente, quando o pai desfaleceu junto à mesa de operação, vitimado por um ataque cardíaco. O filho viu de relance que nada poderia fazer por seu pai; assim, sem um minuto de hesitação terminou com êxito a cirurgia que o pai começara, e depois fez o que era possível para o morto. Esse filho nunca demonstrou tanta grandeza como, quando na interrupção pela morte prosseguiu, dando atendimento seguro ao vivo. Não teve tempo para tristeza inútil e infrutífera. A melhor assistência que poderia prestar ao pai, vitimado pelo enfarte, era prosseguir de onde havia interrompido.

Um médico estava atendendo o nascimento de uma criança, quando lhe comunicaram que sua esposa estava à morte, devendo ir imediatamente, se desejasse encontrá-la com vida. Não podendo abandonar a situação encontrada, prosseguiu até que a criança foi trazida com segurança para o mundo. Depois retornou à sua casa para encontrar sua esposa morta. Estou certo que a esposa teria concordado que fizesse o que fez, e teria ficado extremamente orgulhosa com seu procedimento.

Em ambos os casos, o dedicar-se a algo além de si mesmos os fez vencer a agonia da perda e alcançar um proveito muito mais amplo.

David Livingstone, missionário escocês, sepultou a esposa na África e encontrou, ao servir os desvalidos daquela terra sofredora, um conforto para seu coração ferido. Isso é ser vencedor.
Há um ditado que diz: “Quando o destino nos joga um punhal, há duas maneiras de segurá-lo: pela lâmina ou pelo cabo”. O destino nos lança, inevitavelmente, um punhal - ninguém escapa. Se o segurarmos pela lâmina, nos feriremos, mas se o segurarmos pelo cabo, poderemos usá-lo como instrumento de defesa. Tudo depende de nossa mente. A reação determina o resultado.

Quando a vida colocou uma cruz diante de Jesus, Ele tomou o que de pior lhe podia acontecer e a transformou no que de melhor poderia ocorrer ao mundo. A cruz era pecado - exclusivamente pecado. Ele, porém, a transformou em instrumento de redenção do pecado. Era ódio, e Ele a transformou em revelação do amor. Representava a privação da vida, a palavra mais tétrica e cruel que podia ser proferida. Jesus a transformou na palavra mais nobre para a redenção proclamada por Deus.

Ele não apenas suportou a cruz - Ele a utilizou! Uma religião com uma cruz em seu centro não oferece mero consolo, nem simplesmente estanca lágrimas. Oferece poder moral e espiritual, que transforma tristeza em cântico, e o Calvário em manhã de Páscoa.

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Quando a Tristeza Chega II

Escola Stanley Jones, Calgary, Alberta, USA
Trecho do livro do rev. Stanley Jones (1884–1973), missionário metodista.
5. Não aceite a tristeza e nem pense que será interminável. 
As possibilidades são de que a tristeza não dure, a menos que seja mantida artificialmente viva. O tempo é um grande curador. Tenho experiência disso. Quando alguma coisa me fere, eu a sinto profundamente. Digo então para mim mesmo: “Amanhã, por essas horas, a dor será menor - pode ser que já tenha até passado”. E geralmente acontece dessa forma. Quanto mais você se distanciar de uma coisa que o amargura, menos poderá afetá-lo, tanto para a ventura como para o infortúnio.

6. Não lute contra a sua aflição. 
Combater diretamente o seu problema concentra a sua atenção nele. É uma lei da mente que tudo o que prende sua atenção absorve você. Retire a sua atenção da tristeza e a aplique em um trabalho construtivo que vise o bem dos outros. Isso afastará a aflição, colocando-a na penumbra. O método de maldizer a tristeza é falho porque produz mais tensão. Quando estamos tensos, o poder de Deus, que alivia e dá paz, não nos pode alcançar. O poder de Deus somente nos alcança quando não estamos tensos.

7. Não se queixe. 
Se você se queixar, sua mente procurará razões para justificar as lamentações. Se não as encontrar, irá fabricá-las: exagerará nos seus problemas e doenças tornando tudo ainda maior do que é de fato. Quanto mais nos queixarmos das coisas, tanto mais teremos do que nos lamentar.

A Estrada da Vitória 
Sinto ter começado com sugestões negativas, porém elas são sinais de perigo, colocadas ao longo da estrada da vitória.

Vejamos agora como palmilhar essa estrada. São sete os degraus para a vitória:

1. Verifique se a causa do sofrimento está ou não em você. 
Pode ser que não, mas pode ser que a causa esteja em você. Pode ser que o universo esteja lançando você ao sofrimento e desenganos devido: (1) às suas próprias transgressões; (2) ao comportamento errado em sua vida.

Se há pecados em sua vida, causando tormento físico, mental ou espiritual, submeta-se a Cristo e coloque-os aos Seus pés. É possível que você não possa vencê-los, mas você poderá permitir que Ele lhe conceda a vitória. Você dá a vontade - Ele dá o poder.
As causas do seu sofrimento e desenganos podem estar em seu comportamento errado para com a vida. Elas podem não ser classificadas como pecados, mas destroem a paz, o ritmo da vida e a saúde. Conheço, por exemplo, uma pessoa que sofre de asma. Sempre que encontra uma dificuldade maior, sofre um ataque de asma. O ataque de asma permite-lhe sair mansamente da dificuldade. Como se colocasse uma almofada para não machucar e preservar seu amor próprio. O subconsciente lhe diz: “Se você estivesse em boas condições físicas teria vencido essa dificuldade, mas você não está, e, portanto não pode querer vencê-la - veja, você tem asma”. E o ataque vem. A pessoa não é consciente do fato de que seu medo é uma fuga, um comportamento errado para com a vida, e nela está a causa de seus problemas físicos.

Examine a sua vida e verifique se você está mantendo atitudes que, em si mesmas, possam ser danosas e levar ao sofrimento. Um amigo compreensivo e inteligente será capaz de ajudá-lo a livrar-se dessa conduta insensata.

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Quando a Tristeza Chega I

Stanley Jones falando para jovens em Berkeley, 1943
Trecho do livro do rev. Stamley Jones (1884-1973) missionário metodista.
Dar conselhos simples aos tristes e aflitos é fácil. Este livreto não tenciona dar conselhos, mas tem o propósito de compartilhar um modo de vida que tenho usado por muitos anos. Depois de aplicá-lo em todas as circunstâncias possíveis, em minha terra e em outros países, achei-o útil. Na verdade, não sei o que seja desânimo ou aflição. Não passo por isso há anos. Será que não tenho tido tristezas? Acredito ter percorrido o caminho do sofrimento e da decepção comum a todos. Mas, se descobri um modo de tratar a tristeza com um sorriso, usá-la e fazê-la cooperadora, apresso-me em dizer que esse modo não é meu. Aprendi com outra Pessoa. E você, também, poderá aprender.

Apresentarei sete sugestões negativas e, em seguida, sete construtivas. As sete sugestões negativas são como marcos que colocaremos ao longo da estrada da tristeza para nos impedir de errar e nos perdermos por desvios ilusórios e traiçoeiros. Muitos entraram nesses becos sem saída e perderam-se. Infelicitaram-se, remoendo inutilmente as suas frustrações e tristezas. Outros entraram no caminho da tristeza e do sofrimento, sem se deixar iludir pela tentação das circunstâncias, e assim se tornaram mais úteis e poderosos. 

1. Não pense que seu caso é o único. 
O seu caso pode ser comparado a muitos outros. É inevitável que a tristeza o alcance, de uma forma ou de outra, em um mundo como esse. Tome, por exemplo, a morte. Suponha que não existisse a morte. Em poucas gerações o mundo estaria superlotado. Uma geração passa e dá lugar à outra. A morte não é um fenômeno único - ocorre com todas as pessoas, mais cedo ou mais tarde. Mas a morte sempre nos surpreende quando atinge os nossos queridos. Não deveria ser assim. Todos nós nos encontraremos com ela no curso normal da vida humana.

Existem outros tipos de tristeza: perda de saúde, fracasso no trabalho, infelicidade no lar, falta de um lar - uma vida sem companheiro ao longo dos anos. Todas essas coisas se originam, em parte, da desumanidade do homem para com o homem e, em parte, por vivermos em um mundo imperfeito. Somos “os senhores incompletos de um mundo incompleto”. Como pessoas incompletas em um mundo incompleto fatalmente teremos aborrecimentos e tristezas. Eles surgirão quer queiramos ou não. A questão não é seu aparecimento - mas que efeito produzirão em nós. Poderão fortalecer-nos ou abater-nos. Um ou outro caso dependerá de nossa atitude pessoal.

2. Não tenha pena de si mesmo. 
Somos tentados a ter pena de nós mesmos. Não faça isso. O lastimar-se leva diretamente à introversão, o que tornaria doentia a tristeza. Se a ferida está livre desse sentimento de compaixão própria, logo estará curada, mas se estiver contaminada com ele, torna-se infecciosa, e uma ferida infeccionada leva muito tempo para sarar. Mantenha a sua ferida livre do vírus da compaixão de si mesmo. Quem se entrega ao seu próprio pesar, logo procurará a compaixão dos outros e, assim, agindo, a desgraça chegará rapidamente. Uma pessoa que tem pena de si mesma é pessoa que merece dó. Não cometa esse erro.

3. Não se entregue a uma dor excessiva. 
Muitos procedem desse modo, entregando-se a um pesar excessivo, pensando assim mostrar seu amor ao ente querido que partiu. É engano. Se a pessoa que partiu pudesse vê-lo, perceberia que esse excessivo pesar causa um mal muito grande à própria pessoa. Perturba a digestão, provoca o mau funcionamento dos órgãos, arruína a saúde. Como se sentiria o ente querido em vê-lo desfigurado, com sua saúde abalada pelo pesar? Mas se o visse lembrando-se amorosamente dele, seu afeto o faria feliz, vendo-o radiante e vitorioso - isso sim mostraria seu verdadeiro amor.

4. Não viva falando de suas tristezas. 
Você pode falar de suas aflições com um amigo compreensivo. Trazê-las à tona, muitas vezes, alivia a dor. Mas não divulgue a todos as suas tristezas. Não as compartilhe com todas as pessoas que você encontrar. Dessa forma seus males crescerão. Um amigo contou-me de um companheiro de infância que tinha o dedo polegar doente e, sempre que se encontrava com alguma pessoa, desenrolava a longa atadura e mostrava o dedo doente. Aquele dedo dominou o seu horizonte e o dos demais. Todas as vezes que alguém pensava nele, lembrava-se de uma pessoa que tinha o dedo polegar doente. Quando as pessoas lembrarem-se de você não deverão relacioná-lo com tristeza. Lembre-se da definição de uma pessoa maçante: “Uma pessoa que fala do reumatismo dela quando você quer falar do seu”.

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O que é CONSOLAR?

Jó acusado pelos amigos, Willian Blake, em 1805
Na doença, no luto e na perseguição o ser humano sente a necessidade de buscar um consolador para receber conforto para a sua alma, porém, existem casos em que a dor é tão extrema que as pessoas rejeitam qualquer palavra ou atitude de piedade ante ao seu infortúnio. Mas, o que normalmente este homem espera é que algum amigo ou parente, movido de compaixão, venha visitá-lo na sua dor. O que nem sempre acontece é que alguns desses “consoladores” trazem mais peso e culpa do que realmente conforto. Muito embora nem mesmo o mais bem intencionado consolador com seus gestos, palavras ou rituais tenha o poder de trazer de volta aquele que partiu, o propósito é de não deixar só aquele que sofre, pois a tendência do assolado é se sentir abandonado por todos, inclusive por Deus.


Excluindo-se os amigos e parentes que se afastam completamente como medida de segurança, como se estivessem evitando um mal contagioso, a maioria das pessoas, mesmo as desconhecidas, se mostram solidárias a dor alheia de alguma forma.

Esta é a advertência que Jesus faz no seu primeiro sermão, deixando claro logo de saída que espírito quer semear nos seus discípulos: levar consolo a todos os que sofrem: O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos. (Is 61.1 e Lc 4.18) Jesus não faz diferença entre aqueles que estão sofrendo pelos próprios pecados, daqueles que sofrem vítimas das injustiças. Ele se oferece de corpo e alma para nos ajudar a carregar o nosso fardo, sem fazer restrição ao seu peso: Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve. (Mt 11.28ss) Aqueles que foram aliviados dos seus fardos não podem ser indiferentes a estas palavras. A comunidade dos eleitos, a nação santa e o povo de sacerdotes não pode fugir à responsabilidade de tomar sobre os seus ombros os fardos daqueles que sofrem e levá-los à presença do Consolador.

Em uma hora em que a nação brasileira chora a perda de centenas de jovens, que no auge da sua mocidade traduziam as melhores expectativas de seus pais, não é hora ainda de caçar culpados e nem de avaliar propósitos. É a hora do ombro amigo, que chora e sofre junto. O grande milagre desse momento é descobrir o quanto Deus se importa com o povo que passa por esta terrível provação. É hora de criar condições para que o aflito descubra que ainda pode escolher entre a consolação que nasce da desolação ou mergulhar sozinho de vez no desespero. No mais, é pedir a Deus que faça com que os portadores da sua Palavra tenham discernimento suficiente para entender que o que conta para o seu Reino não é o entendimento perfeito dos motivos que levaram ao sofrimento, mas o consolo de quem já experimentou a dor em seu expoente máximo, e reviveu, pela glória de Deus, para nos mostrar que o consolo do seu Pai excede a qualquer compreensão.


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Telêmetros da fé

Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o Senhor. Jr 31,34a
Paulo ensinando em Atenas, Raffaello, em 1515
Já tivemos a oportunidade de meditar sobre o conhecimento de Deus algumas vezes aqui neste blog, e o fizemos particularmente no post Conhecimento, que falta faz, contudo, na ocasião não nos demos conta de que ele é o telêmetro que mede o quanto estamos distantes do Reino de Deus. A despeito de muitos afirmarem que os sinais do fim dos tempos são mais acentuados hoje do que em qualquer outro período da História, o que invariavelmente todas as gerações a partir da ressurreição de Cristo tem feito, o conhecimento de Deus é o parâmetro que os profetas, tanto do Primeiro quanto do Segundo Testamentos, usaram para aferir esta distância no tempo. Se há um consenso no contexto bíblico é aquele que evoca como fator primordial para a consumação do Reino a obsolescência do ensino, porque, como diz o nosso texto, todos conhecerão a Deus em igualdade de condições, porque ele será tudo em todos.


Mais tarde, o expoente máximo da cultura e do ensinamento cristão viria a afirmar em seu texto mais conhecido: Havendo ciência, passará, porque em parte conhecemos,... mas quando vier o que é perfeito, tudo que é em parte será aniquilado. (ICo 13.8b,9a e 10). Ao pensar nestas palavras me vejo na obrigação de traduzi-las para as circunstâncias atuais da condição humana, no entanto, ainda não consegui encontrar um paralelo, ainda que utópico, para equiparar esta realidade incontestável da Bíblia. Fico tentando imaginar uma forma de responder a estas perguntas: Que tipo de conhecimento seria suficientemente pleno e inteligível de modo a alcançar e ser absorvido por crianças e adultos indistinta e indiscriminavelmente? Que linguagem este conhecimento usaria para transpor barreiras culturais, regionais, econômicas e religiosas?

Alguns acréscimos das Cartas aos Coríntios 13 são muito bem vindos, como por exemplo, a bênção apostólica registrada em IICo 13,13, podem contribuir com bastantes indícios para nos dar uma resposta, ainda que superficial, a estas questões. Um deles suplica que o amor de Deus guarde os nossos corações no conhecimento da verdade. Quando se ouve isso pode-se muito bem concluir que a verdade estaria no primeiro plano para se alcançar o conhecimento pleno, mas não é bem assim. Primeiramente precisamos rever o conceito de verdade na Bíblia, que é totalmente diferente do nosso. Para nós, a verdade é a declaração fidedigna da realidade dos fatos, a exposição absolutamente fiel do acontecimento ou circunstância. Pode ser para nós, mas para a Bíblia não é. A verdade da Bíblia pouco tem a ver com a realidade, aliás, ela diz exatamente o contrário, ela diz que o que vemos não é o real, mas sim o prenúncio de uma realidade infinitamente maior que só pode ser vista com olhos da fé. O caminho do conhecimento bíblico passa pela confiança irrestrita em um Deus que pode fazer muito mais do que possamos um dia vir a imaginar ser possível. É esta verdade que Paulo recomenda a uma igreja que esta sendo assolada por divisões sociais, doutrinas pagãs, falso moralismo, disputas de poder e soberba religiosa. Este é um dado que indica que tantos os coríntios no passado quanto nós hoje estamos distantes do conhecimento ideal.

O segundo indício fala que a presença do Espírito Santo deve estar entre nós. Pode parecer que estamos fazendo chover no mar, diante de tantas declarações da presença desse Espírito em todos os segmentos, atribuições e atitudes da igreja nos dias de hoje. Mais uma vez digo que não é bem assim. Muito mais do que exaltar a presença do Espírito em nosso meio, o texto quer dizer que o Espírito Santo deve ser o único elemento que pode se interpor entre mim e o meu próximo. Talvez a conduta mais aviltante a este conceito, em particular, esteja embutida na pretensão “vou liberar uma unção poderosa”. Não tenho espaço neste blog para detalhar as inúmeras heresias contidas nestas poucas palavras, como também confesso não saber qual é a maior delas. Mas, no que diz respeito ao assunto da postagem, destaco a arrogante ilusão de nos colocarmos como os últimos bastiões entre o próximo e a sua salvação. Esta é a confirmação mais evidente de que não é o Espírito Santo que está entre nós, e sim nós entre o Espírito e as demais pessoas. Da forma como entendo a expressão supracitada, entre o “liberador” e qualquer outro cristão que não detenha o poder de reter ou liberar as bênçãos que são concedidas, sem medida, pelo Espírito de Deus.

Enquanto houver mais gente ensinando do que aprendendo, enquanto houver mais gente profetizando do que obedecendo, enquanto houver mais gente se colocando no lugar do que a serviço do Espírito Santo, vamos olhar o relógio do tempo de Deus batendo mais devagar e marcando cada vez mais desilusões na vida cristã

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O que é REVELAÇÃO? II

João,Hans Memling(1433-1494)
Da revelação cristã devemos distinguir a chamada revelação natural, aquela que é obtida através do esforço da mente humana ou da sua conscientização sobre a origem das coisas e do mundo à sua volta. Paulo fala dela no capitulo 2 da Carta aos Colossenses, quando adverte a igreja a tomar cuidado com a filosofia vazia,principalmente aquela que vai de encontro aos princípios do evangelho: Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua por meio de suas filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e não segundo Cristo. Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade.


Mas esta revelação não é em si um mistério, ela está relacionada à inteligência humana. Paulo a chamava de “o conhecível de Deus”, o que é sem dúvida de muito proveito para o bem estar comum, mas não credita a quem quer que seja o poder de discernir a revelação espiritual que é um carisma: Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. (ICo 2,14)

Embora o termo revelação domine a teologia joanina, ele só usa esta palavra uma única vez, quando cita um texto do Primeiro Testamento: E, embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor, quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor?  (Jo 12.37s) João também não usa os termos mistério, escondido e nem tirar o véu quando faz alusão à revelação de Cristo. João não foi tão influenciado pelas literaturas apocalípticas e sapienciais dos judeus como Paulo. João tentou harmonizar as tendências religiosas do helenismo, o gnosticismo e o misticismo, ao Cristianismo, embora rejeitasse todos os elementos inconciliáveis destas correntes de pensamento. Seus argumentos se valem mais do dualismo luz/trevas e do segmento ver/contemplar, para testemunhar sobre Deus, as coisas de Deus e sobre a verdade.

Mais do que Paulo João vê a fé cristã baseada em revelação. No centro dela está Cristo, que traz a revelação que Jesus é o redentor pela sua morte na cruz. Jesus é aquele que revela a luz aos homens que andam nas trevas. Essa luz traz a vida por meio da fé. A Palavra de Deus, o seu logos, se fez carne, e os discípulos puderam ver e contemplar a sua glória, que se plenifica na suprema dedicação do amor que sofre e morre para remir pecadores que não são dignos dela.

A atitude do homem frente à revelação de ser de fé, que faz o homem contemplar além de apenas ver. Essa fé na revelação é uma graça, pois ninguém pode vir ao Filho se o Pai não o atrair. Mas ela é um bem da existência cristã, e por causa disso a escatologia recebe relativa importância, porque o essencial da revelação já foi dado aos homens. A revelação do Filho de Deus feito homem é a revelação essencial. Todas as outras giram em torno dela. Tanto as revelações anteriores quanto as posteriores devem ser avaliadas em relação à revelação suprema de Deus em Cristo. É ela quem faz, pela revelação, as trevas, luz e da visão, conhecimento, pois a verdade está com quem escuta e obedece ao que Jesus nos revelou do seu Pai. 

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O que é REVELAÇÃO? I

Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo.
Abraão, Sara e Agar, Matthias Stom (1600-1652)
Neste texto de Hebreus 1,1 e 2 encontramos, além das diferenças essenciais entre as revelações do Primeiro e do Segundo Testamentos, uma definição do que é a revelação bíblica. O texto diz que Deus fala, abre seu coração, se manifesta, faz-se reconhecer, portanto, não se trata apenas da comunicação das verdades infalíveis. O texto também fala de que modo Deus revelava a sua vontade no Primeiro Testamento pela lei, o que dava o caráter permanente da sua revelação; a sua onipotência e sua glória, pela criação e pela natureza, o que o identificava da impotência dos ídolos mortos; a sua revelação mais objetiva e circunstancial, preferencialmente pelos profetas.

O escritor da Carta aos Hebreus diz ainda que a revelação de Deus no Segundo Testamento alcança a sua plenitude em Jesus, que é onde a revelação se aperfeiçoa e se completa. Paulo, cuja conversão ao Cristianismo é celebrada hoje, 25 de janeiro, fala que Jesus é a revelação de um mistério que estava escondido, e que ao ser descoberto dá a sabedoria que não pode ser explicada pela razão humana. Para ele, a revelação é o comunicado progressivo do plano divino para a salvação em Cristo. Não é algo que pertença ao passado, mas faz parte de um ato escatológico de Deus, que inclui o enriquecimento dos conhecimentos das coisas espirituais. Em paralelo, os apóstolos são reveladores da justiça salvadora de Deus, pois o seu sofrimento e martírio são a revelação da vida e da morte gloriosa de Jesus: Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo o morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo. (IICo 4.10ss)

A revelação não é um tesouro pessoal, mas deve ser pregada a todos. Também não é uma doutrina secreta para alguns poucos iniciados, como eram os mistérios das religiões pagãs. É sim, ao mesmo tempo, para o descobrimento do sentido mais pleno da salvação para a humanidade e a admiração do que não era totalmente conhecido, embora estivesse indicado nos escritos proféticos e na Torah. A exegese inspirada dos apóstolos soube encontrar na história de Abraão, Sara e Agar o sentido mais profundo do que uma infame segregação racial. Soube ver que a revelação das promessas se estendia a todos os herdeiros da fé de Abraão, e não apenas aos seus consanguíneos.

Apesar de revelada plenamente em Cristo, a revelação do evangelho ainda continua escondida, o que faz dele um escândalo para os que se fundamentam na lei e um escândalo para os sábios deste mundo. É uma transformação que se efetua não somente pelo som da pregação, mas também através de uma ação do Espírito, que abre os corações para receber a verdade revelada. Ela é um dom de Deus, mas não um dom que se possa aceitar ou recusar, não é uma simples questão de receber ou não receber, de crer ou não crer. A revelação de Deus é determinante, pois traz a justiça que divide a humanidade em dois grupos: Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. (Jo 3.18)

Ainda prevalecem entre nós alguns mistérios que não foram revelados. Estes só serão conhecidos na plenitude do Reino, quando a ressurreição do corpo mostrará toda a glória da filiação divina e a futura glória celeste. Mas até lá a revelação de Deus porá a descoberto as intenções e pensamentos mais escondidos, e trará o juízo de Deus à humanidade que se opõe a ela: Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. ((Rm 1.20s)

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O que é INIMIGO? III

Armadura de Deus, Royal Military College, Canadá
Mas esta boa vontade para com o inimigo ainda não era suficiente para Jesus. Este preceito poderia até resolver questões básicas de convivência, mas não faria quem quer que fosse viver no Reino de seu Pai. Para o cristão o mandamento é esse: Amais os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam. Dentre as novas exigências ou novos mandamentos que Jesus encarregou aos seus discípulos esta refulge como um dos mais importantes.


Jesus teve inimigos declarados. Vimos seus inimigos se multiplicarem ao longo do seu ministério. Desde aqueles que não o quiseram como rei até os que o fizeram morrer. Mas ele não somente perdoou a todos, como pediu a seu Pai que também os perdoasse. Assim deve fazer o discípulo imitando o seu Mestre. Contudo, o cristão que perdoa não se ilude com o mundo à sua volta, assim como Jesus não se iludiu com os fariseus, anciãos ou mesmo com Herodes, mas estava ciente de que o que fez acumulou brasas vivas sobre a cabeça deles. Esse não é o fogo de uma vingança subliminar, mas o fogo que depura a consciência. O fogo que pode fazer com que o inimigo reveja seus conceitos sobre nós. Se ele assim o fizer, fazemos do inimigo um amigo. Não é de forma alguma um artifício maquiavélico, mas o uso pleno da sabedoria. Isso foi exatamente o que Deus fez conosco quando ainda éramos seus inimigos: reconciliou-nos consigo pela morte de seu filho, acumulando brasas vivas sobre a nossa cabeça. E a vós outros também que, outrora, éreis estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas, agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis, se é que permaneceis na fé, alicerçados e firmes, não vos deixando afastar da esperança do evangelho que ouvistes e que foi pregado a toda criatura debaixo do céu, e do qual eu, Paulo, me tornei ministro. (Cl 1.21ss)

Jesus, portanto, não veio negar a inimizade, mas sim manifestá-la em sua dimensão completa no momento em que a derrotou. A inimizade não é um fato, mas um mistério. É um sinal do reino das trevas, do inimigo de Deus por excelência. Desde o Éden a inimizade se contrapôs entre os filhos de Eva. Inimigo dos homens, inimigo das nossas almas, inimigo de Deus, não importa seu nome, com o que ou com quem se parece, estamos constantemente expostos ao seu ataque. Justamente causa desse poder de cisão é que Jesus deu aos seus o poder sobre toda potestade que vem do inimigo: Eis aí vos dei autoridade para pisardes serpentes e escorpiões e sobre todo o poder do inimigo, e nada, absolutamente, vos causará dano. (Lc 10.19) Esse poder vem do próprio mal que Jesus derrotou na cruz, quando se ofereceu voluntariamente aos seus golpes mais cruéis. Esse poder vem da morte pela morte, que derrubou o muro de inimizade que dividia a humanidade: Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos fez um; e, tendo derribado a parede da separação que estava no meio, a inimizade, aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade. (Ef 2.14ss)

Estamos todos à espera do dia em que Cristo porá todos os seus inimigos debaixo de seus pés, e o último deles é justamente a morte, o cristão combate, ao lado de Jesus, o velho inimigo do gênero humano: Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes. (Ef 6.12) É em torno dele que alguns homens se comportam como inimigos da cruz. O grande inimigo sabe que a cruz nos leva ao triunfo, e que fora dela não há reconciliação entre Deus e os homens. 

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O que é INIMIGO? II

Saul atacando Davi, Guercino, em 1600
A luta de Saul contra Davi na Bíblia é o relato mais pormenorizado de uma inimizade pessoal e unilateral, pois somente Saul é inimigo. Ele se propõe a matar Davi e, com isso, se coloca em rota de colisão com um desígnio divino. O que motiva o seu ódio é tão somente a inveja por Davi ter sido escolhido por Deus enquanto ele, Saul, fora rejeitado. Por sua vez, Davi evita ser contaminado por este ódio, uma atitude que Cristo incita todo cristão a imitá-la, quando não for possível superá-la. Muitos dos amigos de Deus que tiveram que viver, cada um em um grau de intensidade, um drama semelhante ao de Davi, demonstraram sinais de um refinamento moral consistente.


O chamado de Deus levou estas pessoas a se libertarem do egoísmo, da vingança e da retaliação, inserindo-se plenamente no projeto de Deus, sem, com isso se perderem por caminhos que levam ao masoquismo ou a perda da sua identidade.

Mesmo que erradamente julgasse a si mesma detentora de uma conduta moral elevado, Israel experimentou algo parecido. Das muitas guerras infligidas a outros no afã da conquista, com o passar do tempo, a imagem do inimigo de Israel foi se confundindo com a de um opressor, e neste caso não havia como alimentar os antigos sonhos de poder, senão os de sobrevivência. Foi aí que o povo aprendeu que antes de querer ver o justo fortalecido, ele quer libertá-lo. Na realidade, Israel não era vencido pelo opressor, mas sim vítima de si próprio: Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas. (Jr 2.13) Sua derrota sem demora chegará, e o inimigo não triunfará sem motivo. Ele age em nome e por vontade de Deus para ensinar o povo de dura servis: Agora, eu entregarei todas estas terras ao poder de Nabucodonosor, rei da Babilônia, meu servo; e também lhe dei os animais do campo para que o sirvam. (Jr 27.6)

Mesmo após ter experimentado fragorosas derrotas Israel ainda subsiste, pois está ligado à antiga promessa. Esta persistência do povo de Deus em continuar existindo, mesmo que a partir de um pequeno grupo, o chamado resto de Israel, assinala duas coisas importantes: a importância que Deus dá às suas promessas e a negligência humana em não cumprir a sua parte. Isto nos faz entender que o tempo da plenitude ainda não chegou.

No que se refere ao tempo, já não se podia mais retomar as maldições que os salmistas imprecavam contra os inimigos do povo, e já não se podia mais usá-las em interesses particulares. Nem mesmo a respeito dos mesmos povos sobre quem originalmente foram lançadas. Na história se via mais conflitos ideológicos do que propriamente de interesse. O inimigo já não pretendia mais destruir Israel como povo, e sim convertê-lo aos seus deuses e costumes. Quando os macabeus retomam a tradição da guerra santa, lutam muito mais pelas suas leis do que propriamente pelas suas vidas: E os ameaçaram dizendo: Se sairdes e obedecerdes ao rei, nós vos deixaremos vivos. Mas eles responderam: Não sairemos nem obedeceremos ao rei, profanado o sábado. (I Mc 2.33s) Embora o objetivo fosse permanecer vivo, o povo não se confundia com estas duas possibilidades. Com consciência clara optava pela conservação da lei e das tradições, porque sem elas também não mais existiriam como povo.

Já não se governavam mais pelo princípio jurídico de Talião, que na realidade era um freio à vingança desmedida. Já não se imaginava mais Israel sobrepujando e destruindo os seus inimigos. Através das experiências negativas do revide, o povo chegou à luz divina que orienta os corações ao amor. Já nasce a consciência de que para ser perdoado por Deus se faz necessário antes perdoar o inimigo: Se você não tiver motivo, não seja testemunha contra o seu vizinho, nem fale mal dele. Nunca diga: “Vou lhe pagar com a mesma moeda. Vou acertar as contas com ele!”  (Pv 24.28s)

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O que é INIMIGO? I

A expulsão de Agar, Giovanni Battista Tiepolo, em 1719
Não é curioso o fato de o homem bíblico estar sempre diante de um inimigo? Os textos já nem especulavam mais sobre que tipo de inimigo era esse, mas que ele estava lá, com certeza estava. Desde os tempos mais antigos a história da salvação vem sendo recheada de inimigos clássicos: A serpente é inimiga de Deus, Caim é inimigo de Abel, Ló de Abraão, Sara é inimiga de Agar, Jacó de Esaú, Israel de seu sogro, José de seus irmãos. Estes são alguns dos inimigos clássicos que encontramos lendo apenas e tão somente o livro do Gênesis. Quanto mais avançamos no tempo, tanto mais os inimigos se multiplicam: os salmistas e os profetas não fizeram outra coisa senão acumular inimigos: Digo a Deus, minha rocha: por que te olvidaste de mim? Por que hei de andar eu lamentando sob a opressão dos meus inimigos? Esmigalham-se-me os ossos, quando os meus adversários me insultam, dizendo e dizendo: O teu Deus, onde está? (Sl 42.9s)

Estes inimigos podem ser parentes ou mesmo amigos antigos, Jeremias e Jó que o digam. Mas isso não importa tanto. Importa sim que por trás de cada adversidade percebe-se sempre um inimigo. Isto virou um esquema. Para o salmista não lhe é bastante estar doente, ele também quase sempre sendo perseguido por algum inimigo. Contudo, a lei de Israel reconhece os direitos do inimigo, caso este seja da comunidade: Se encontrares desgarrado o boi do teu inimigo ou o seu jumento, lho reconduzirás. Se vires prostrado debaixo da sua carga o jumento daquele que te aborrece, não o abandonarás, mas ajudá-lo-ás a erguê-lo. (Ex 23.3s) Não poderia ser de outro modo, pois uma nação que se constrói a partir de tribos nômades de origens diferentes, a formação de inimizade entre grupos é mais que esperada.

A inimizade conheceu nuances. Todo o furor era pouco, quando se tratava de canaanitas e amalequitas: Enviou-te o Senhor a este caminho e disse: Vai, e destrói totalmente estes pecadores, os amalequitas, e peleja contra eles, até exterminá-los. (ISm 15.18) Contra os moabitas e amonitas era exigida uma permanente guerra fria: Nenhum amonita ou moabita entrará na assembleia do Senhor; nem ainda a sua décima geração entrará na assembleia do Senhor, eternamente. Não lhes procurarás nem paz nem bem em todos os teus dias, para sempre. (Dt 23.3 e 6) Por outro lado, era interessante também a complacência declarada com outros povos que historicamente não se mostraram amigos de Israel para merecerem esta deferência: Não aborrecerás o edomita, pois é teu irmão; nem aborrecerás o egípcio, pois estrangeiro foste na sua terra. (Dt 23.7) Isto é um sinal que em Israel ser estrangeiro não significava necessariamente ser inimigo.

Como se explica, na história sagrada da salvação, a persistência de um fato tão determinante? É bem verdade que este é um dado da história real: o pecado que se transformou em ódio, fazendo de Israel um símbolo de impiedade contra o mundo à sua volta. Imaginar vê-lo imune a isso tudo é querer ter a ilusão de que eles seriam formados de uma substância diferente do que o restante da humanidade do seu tempo. A Bíblia narra os desejos, esperanças e atitudes dos seus heróis descrevendo literalmente o nível de civilização em que eles se encontravam. Os canaanitas são inimigos e devem ser destruídos porque são idólatras, mas também porque ocupam o seu lugar na terra que lhes foi prometida: Os horeus também habitavam, outrora, em Seir; porém os filhos de Esaú os desapossaram, e os destruíram de diante de si, e habitaram no lugar deles, assim como Israel fez à terra da sua possessão, que o Senhor lhes tinha dado. (Dt 2.12) Não foi sem razão que este povo concebeu e propagou a ideia de um Deus que se faz também inimigo: Serei inimigo dos teus inimigos. (Ex 23.22) Um Deus que não somente luta contra os inimigos ao lado deles, mas que luta por eles, no lugar deles: Se vocês ouvirem a corneta tocando o alarme, reúnam-se em volta de mim. O nosso Deus lutará por nós. (Ne 4.20) (continua)


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O que é ADULTÉRIO?

Cristo e a adúltera, Bernardelli (1852-1931)
Por mais que o Decálogo e os profetas condenem de modo absoluto a infidelidade entre os dois cônjuges, o significado pleno da palavra adultério só será conhecido na revelação de Jesus Cristo. Listado juntamente com os mais graves delitos, o adultério é um ato que viola primordialmente o direito de posse que o marido ou seu noivo tem sobre a mulher.
A mulher, então, é vista mais como propriedade do homem do que propriamente como uma pessoa. Isto coloca sobre ela um peso infinitamente maior, seguido de penas mais rígidas. Este rigor da fidelidade da mulher era exigido desde antes da antiga aliança, fato que só encontraria justificativa na relação espiritual entre Deus, o esposo, e a sua esposa Israel.

Esta classificação inferior da mulher estava intrinsecamente ligada ao surgimento da poligamia, que por razões sectárias é atribuído a um descendente de Caim, que foi um homem reconhecidamente violento: Lameque tomou para si duas esposas: o nome de uma era Ada, a outra se chamava Zilá. (Gn 4.19) A poligamia seria tolerada por muito tempo, mesmo que a sabedoria dos notáveis a apontasse como um grave adultério, instruindo os homens a reservarem o seu amor à primeira esposa: Seja bendito o teu manancial, e alegra-te com a mulher da tua mocidade. (Pv 5.18) Mais enfáticos que estes foram os profetas que conclamavam o próprio Deus como testemunha de desta deslealdade: E perguntais: Por quê? Porque o Senhor foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a mulher da tua aliança. (Ml 2.14) Contudo, era sobre a frequência com que os homens de Israel visitavam as prostitutas, o que estranhamente não era considerado adultério, que recaía o maior juízo: Pois cova profunda é a prostituta, poço estreito, a alheia. Ela, como salteador, se põe a espreitar e multiplica entre os homens os infiéis. (Pv 23.27s)

Jesus se mostra misericordioso com a adúltera, mas condena o adultério em si, pois desvenda no casamento dimensões maiores do um simples acordo conjugal. Ele liga o homem à mulher de tal forma que praticamente inviabiliza qualquer possibilidade de divórcio: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne? De modo que já não são mais dois, porém uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem. (Mt 19.5s) Jesus dá ao matrimônio um valor extremo, pois considera adúltero o homem que, depois de ter se separado de uma mulher, volte a unir-se a ela. Na sua concepção de fidelidade conjugal, considera adultério o simples fato de olhar cobiçosamente a mulher ou o marido alheios: Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela. (Mt 5.28)

Paulo inclui o adultério na lista de pecados que exclui a pessoa do Reino: Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas. (ICo 6.9) Conclama para que todos busquem exclusivamente no amor a fonte da fidelidade:  Pois isto: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, e, se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Rm 19.9)

Na vida espiritual o vínculo que une o homem a Deus exige que este amor seja fiel, e tem como símbolo um casamento indissolúvel, sendo que qualquer infidelidade será considerada adultério e prostituição, pois o homem que se entrega à idolatria se assemelha à prostituta que anda atrás dos seus amantes. Pois sua mãe se prostituiu; aquela que os concebeu houve-se torpemente, porque diz: Irei atrás de meus amantes, que me dão o meu pão e a minha água, a minha lã e o meu linho, o meu óleo e as minhas bebidas. (Os 2.5) Jesus aplica esta mesma imagem também à falta de fé, pois chama aqueles que não produzem os frutos exigidos de geração de adúlteros. Por todas essas condenações fica luminosamente ressaltado que a fidelidade absoluta é resultado dos novos mandamentos impostos por Jesus aos seus seguidores: A isto ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Lc 10.27)

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Os Dez Mandamentos

Tábuas da lei, Jekuthiel Sofer, século XVIII
Os Dez mandamentos não são normas para constrangimento da humanidade em geral como muitos pensam e julgam. Eles são um meio alternativo de vida para um povo particular conhecer um Deus particular. Assim são os mandamentos, para produzir um povo que é um sinal, um símbolo, o povo que é testemunha de que Deus não abandonou o mundo à sua própria sorte. Estas dez palavras ou mandamentos são para aqueles que se reconhecem herdeiros da herança de Abraão, Isaque e Jacó. Por aqueles que
são reconhecidos por adorarem o Deus de Jesus Cristo. Estes mandamentos são a forma que conhecemos para louvar o Deus verdadeiro, verdadeiramente.


Vamos rapidamente recordar a história. Israel estava na escravidão no Egito e foi liderado por Moisés para a liberdade de uma terra grande e boa. Aqui temos um Deus que se intromete, que age, que cuida, de Moisés e de todo o povo. Mas porque Deus fez isso? Será que ele é contra a escravidão? Certamente ele é contra, mas não foi esse o motivo principal. Primeiramente foi pela confrontação com os deuses dos poderosos. Deus chamou libertou seu povo e o levou para o deserto para reensinar-lhe como é a vida longe da escravidão e longe da idolatria. A partir de uma sequência extraordinária de eventos o povo saiu do Egito e chegou até o monte Sinai, onde recebeu os Dez Mandamentos para viver uma vida alternativa, sem distinção de classes, sem superstições, sem grilhões e o mais importante, sem ter que se curvar diante de criaturas falsamente divinizadas. Como esse povo se converteria de uma religião que se anunciava pelo que é visível e imposta pelo poder, para um culto a um Deus invisível que convida para a liberdade em amor?

No deserto eles aprenderam que a partilha é mais importante que a prosperidade, que o cuidado com o irmão é mais significativo do que um sacrifício, que a palavra é mais forte e mais duradoura do que monumentos de pedra. Aprenderam também a ser um povo onde todos eram clérigos e todos eram pastores, foram para o deserto como um bando de escravos para saírem de lá uma nação de sacerdotes. Exatamente como, mais tarde, Pedro iria concluir na sua carta: Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. (IPe 2.9) Este sim é o motivo real pelo qual o povo foi liberto: para proclamar as virtudes daquele que os libertou das trevas.

Quando a Bíblia nos diz que somos chamados para sermos nação santa, quer dizer também que neste mundo somos forasteiros, somos gringos aqui nesta terra, porque a nossa nação é o Reino de Deus. Somos chamados para viver em obediência, coisa que os outros povos simplesmente desconhecem. Vivemos desta maneira para que quando eles ouvirem falar de nós simplesmente confirmem o que diz o Deuteronômio 4.6: Guardai-os, pois, e cumpri-os, porque isto será a vossa sabedoria e o vosso entendimento perante os olhos dos povos que, ouvindo todos estes estatutos, dirão: Certamente, este grande povo é gente sábia e inteligente.

Os reformadores protestantes ensinavam que uma função importante dessas dez palavras é a nos trazer a revelação. Aqui vem a graça. Na nossa tentativa de obedecer a essa lei, o que descobrimos o grau do nosso pecado. Quanto mais nos esforçamos para cumprir os Dez Mandamentos, mais conhecemos o tamanho do nosso fracasso. Sempre pensamos que os mandamentos serviam para nos salvar, mas é o contrario. Eles servem para nos conscientizar do nosso pecado, servem para nos fazer ver a nossa necessidade de perdão, e servem também para nos revelar o Deus que, apesar das nossas dúvidas, dos empecilhos que criamos, e das nossas revoltas internas e externas, nos quer perdoar, nos querer de volta e nos amar. Os Dez Mandamentos só vieram confirmar que nós somos salvos por meio da graça, e não pela obediência às leis.

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O que é DECÁLOGO? II

O chamado de Moisés, Sandro Botticelli, em 1482
Do ponto de vista histórico, não há dúvidas de que o decálogo é anterior à data em que recebeu a sua forma literária, tanto no Êxodo quanto no Deuteronômio. Alguns autores colocam a sua origem no tempo dos profetas, cuja pregação é um reflexo dele. Existem também teólogos que afirmam que a pregação profética pressupõe um decálogo, mas que não o criou, pois a reação de alguns profetas é tão firme que transparece por trás uma tradição conhecida e inquestionável, como se pode ver no confronto de Davi por Natã (II Sm 12.1-11) e de Elias contra os profetas de Baal. (I Rs 17) Não há como questionar que os profetas fazem referências a um catálogo de pecados conhecidos contra prescrições invioláveis: Embora eu lhe escreva a minha lei em dez mil preceitos, estes seriam tidos como coisa estranha. (Os 8.12)

Além disso, ainda é viva a lembrança de uma legislação no deserto, em duas tábuas de pedra: Apresentastes-me, vós, sacrifícios e ofertas de manjares no deserto por quarenta anos, ó casa de Israel? (Am 5.25) Também não há razões para se discordar da tradição que reconhece o decálogo na administração de Moisés. A proibição de adoração de imagens é um forte argumento desse pensamento, embora o fervor espiritual deste apelo não existisse nesse tempo. Muitos alegam, no entanto, que a proibição de pecados de foro íntimo e maus desejos seria inverossímil no princípio da Idade do Ferro. Falta ao texto original do decálogo alguma referência à instituição da vingança de sangue, que estava em voga em outros decálogos contemporâneos, como o famoso Código de Hamurabi. Todos esses argumentos não provam nada. Se quisermos fazer uma leitura honesta, seria preciso aceitar o decálogo como um testemunho inequívoco da tradição judaico-cristã.

É importante não perdermos de vista o fundo histórico do decálogo promulgado por Moisés. Existem, de fato, algumas semelhanças com o catálogo de pecados do Livro dos Mortos dos egípcios, como também com os textos mágicos da Assíria. Isto mostra que a maior parte dos mandamentos do decálogo de Israel já era conhecida antes mesmo de Moisés. Proibições contra roubos, assassinatos, falso testemunho, desprezo aos pais e ofensa aos deuses eram considerados moralmente errados por todos os povos da antiguidade, pois eram consideradas violações a uma lei natural e consensual. Digno de referência é que, em comparação com as prescrições ritualísticas de egípcios e babilônicos, povos bastante civilizados, o decálogo dos hebreus possui profundeza e radicalismos extraordinários. O Deus de Israel faz exigências ao seu povo que apelam para o que há de mais profundo na consciência do homem. Tal intervenção sobrenatural de Deus na vida privada e social do indivíduo é totalmente desconhecida por aqueles povos. Os textos pagãos além de serem moralmente inferiores e estão imbuídos de uma forma magia que pretende pressionar o povo através do medo, em vez de convidá-lo a ser fiel pela razão.

Por fim, a questão histórica é a credibilidade da tradição que atribui a Moisés o papel de mediador do decálogo. Ninguém melhor que ele, que foi educado com o melhor da cultura egípcia, ficando, por isso, seriamente abalado na sua juventude com a crise religiosa de Amenófis IV, que se autodenominou Acnaton. A providência de Deus se serviu muito bem destas circunstâncias para inculcar-lhe a base monoteísta e suas obrigações éticas. A intenção do autor sagrado é bem clara: a escrita gravada nas tábuas é do próprio Deus, mas a obra da sua divulgação e implementação é do seu servo Moisés. O dom é do Espírito de Deus, mas é destinado a toda a carne, tanto ao antigo quanto ao novo Israel, por isso esse dom foi frequentemente citado por Jesus e pelos apóstolos, que os coloca diretamente atrás de apenas dois mandamentos, os únicos que lhes são superiores: o do amor a Deus e do amor ao próximo.


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O que é DECÁLOGO?

Decalogo, Joos van Gent (1410-1480)
São assim chamadas as “dez palavras” que Moisés escreveu por ordem de Deus, segundo o Êxodo, ou que o próprio Deus escreveu, segundo o Deuteronômio, nas duas tábuas de pedra que continham as obrigações fundamentais da aliança. A respeito do decálogo podemos ponderar questões de ordem literária e histórica.

As questões de ordem literária podem ser vistas nas duas versões do decálogo citada acima. Na maior parte essas duas fórmulas se assemelham, são prescrições breves e compactas
colocadas na segunda pessoa do singular, que contém proibições de âmbito geral, fugindo assim do clássico direito casuístico. Porém, algumas diferenças podem ser notadas no estilo literário destas duas fórmulas. O Deuteronômio isola a esposa da relação dos demais bens do próximo, fazendo dela um objeto especial de proibição de cobiça: Não cobiçarás a mulher do teu próximo. Não desejarás a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo. (Dt 5.21) Já no Êxodo ela é citada como um deles: Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo. Isso mostra que aconteceu um evidente avanço do espírito humanitário e na valorização da mulher entre duas gerações de escritores. O mesmo espírito se manifesta na motivação do descanso do sábado, enquanto o Êxodo aborda o aspecto religioso da lei, pois é prescrito como imitação do descanso de Deus: Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro; porque, em seis dias, fez o Senhor os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou. Já o Deuteronômio se fixa no fundamento social da lei: Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor, teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu boi, nem o teu jumento, nem animal algum teu, nem o estrangeiro das tuas portas para dentro, para que o teu servo e a tua serva descansem como tu.

Do ponto de vista literário o número dez não é consenso, e ainda hoje debate-se esta diferença. Como o Deuteronômio distingue a mulher dos demais pertences, fazendo este mandamento ser um prescrição contra o adultério, e não contra o roubo, especula-se ser dois mandamentos distintos. Esta opinião é também reforçada na septuaginta, que coloca a cobiça da esposa do próximo antes da cobiça dos seus demais haveres. O Talmude e os pais apostólicos antes de Agostinho consideraram um só mandamento, e é a versão aceita na igreja grega e entre os calvinistas até hoje. Por isso, estas tradições dividem o mandamento de proibição e adoração de imagens em dois, restaurando assim o número dez no decálogo.

Temos que levar em conta que a adoração de ídolos coincidiu com a idolatria generalizada, onde a quebra do vínculo familiar era aceita como normal e até exaltada como forma de culto. Fica difícil, portanto, dirimir a questão de sobre qual das duas tradições, a que une a idolatria à veneração de imagens ou a que distingue as duas espécies de cobiça, corresponde mais fielmente ao conceito original do mandamento. Não vale o argumento de que cada uma das tábuas deve conter cinco mandamentos, e nem refutar que a metade deles diz respeito a Deus e aos pais, e a outra metade ao próximo. Podemos, sim, dizer que tanto Êxodo 20 quanto Deuteronômio 5 constituem duas variantes de um mesmo texto original, e que as diferenças entre as duas fórmulas provam que o decálogo deve ter raízes muito profundas na tradição do que poderíamos chamar de decálogo cúltico, que os exegetas de hoje tentam reconstruir a partir de textos como Êxodo 34.14-26. O decálogo trata de nos exprimir o mínimo de exigências que fundamentam a vida religiosa e moral do povo de Deus em qualquer tempo. (continua) 

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O que é ESCÂNDALO? II

Metamorfose de Narciso, Dali
Além de utilizar todas as formas possíveis para nos advertir que aceitemos o mistério da fé com todas as circunstâncias e situações, e para que não nos envergonhemos e nem nos escandalizemos com eles, a Bíblia insiste em nos colocar de prontidão quanto ao fato de nós mesmos virmos a
ser uma pedra de tropeço na vida de outra pessoa, o que significaria nos tornarmos motivo de escândalo. Isso simplesmente nos coloca entre dois abismos profundos. Se de um lado não podemos cair na tentação de nos escandalizarmos com o que na nossa fé o mundo considera ser escândalo, pois isso é o mesmo que renegar a fé, por outro lado, também não podemos dar, de forma alguma, motivos para que o mundo se escandalize conosco, o que redundaria também em negação da nossa fé.

Na realidade o que a Bíblia está querendo dizer é que comete escândalo quem leva o seu irmão para longe da fidelidade a Deus, quem abusa da fraqueza da fé do irmão para exercer sobre ele domínio de qualquer espécie ou quem se aproveita da inocência do irmão usufruir de benefícios ou levar vantagens. Deus abomina os que pelo seu poder afastaram seu povo dele: Abandonará a Israel por causa dos pecados que Jeroboão cometeu e pelos que fez Israel cometer. (IRs 14.16) Igualmente abomina quem tentou arrastar Israel à helenização: O helenismo chegava a tanto que, pela enorme sem-vergonhice dos ímpios, os sacerdotes já não tinham mais interesse no culto diante do altar de Deus. II Mb 4.13 São dignos de louvor aqueles que resistem ao escândalo para preservar a sua fidelidade a Deus: Por isso, assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel: Nunca faltará homem a Jonadabe, filho de Recabe, que esteja na minha presença. (Jr 35.19)

Jesus, embora tenha sido ele mesmo motivo de escândalo para muitos, se empenhou ao extremo para por fim ao escândalo da ruptura do homem com Deus, por isso é extremamente severo com os autores de escândalos: Qualquer, porém, que fizer tropeçar a um destes pequeninos que creem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e fosse afogado na profundeza do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é inevitável que venham escândalos, mas ai do homem pelo qual vem o escândalo! (Mt 18.6s) Contudo, ele sabia bem que esses escândalos são inevitáveis, falsos profetas, mestres sedutores e a antiga Jezabel, sempre os teríamos ativos entre nós.

Mas este escândalo pode vir também de um discípulo, por isso Jesus exige vigorosamente e sem contemplações a renúncia a tudo que possa vir a ser obstáculo à plenificação do Reino de Deus: Portanto, se a tua mão ou o teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. (Mt 18.8) Para o bem da verdade, só entendi este texto quando li um sermão de Martin Luther King, onde ele afirma que a perda de um bem ou uma mutilação é um preço pequeno a se pagar pela enorme graça de se viver no Reino. Que é melhor estar nele cego, manco ou estropiado, do que perfeitamente são e de posse de total integridade física, fora dele.

A exemplo de Jesus, Paulo não queria escandalizar sem motivo os moradores da terra. Ele nos adverte para que não escandalizemos as consciências fracas e pouco formadas. Adverte para que não façamos uso da liberdade cristã para defraudar a fé dos pequeninos, pois a fé verdadeira é a que sustenta e nunca a que abala a fé dos irmãos em Cristo: Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor fraternal. Por causa da tua comida, não faças perecer aquele a favor de quem Cristo morreu. Não seja, pois, vituperado o vosso bem. Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo. (Rm 14.15ss)

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O que é ESCÂNDALO? I

Cisnes refletem elefantes, Dali
Escandalizar significa, na Bíblia, fazer tropeçar ou ser motivo de queda de alguém. O escândalo é literalmente uma armadilha que se põe no caminho do adversário para fazê-lo cair, mas na realidade há muitas outras formas de fazer alguém cair, quer no sentido moral, quer no religioso. A tentação ou
provação são escândalos, mas sempre tendo como referência a fé em Deus. O Primeiro Testamento mostra que Deus pode ser um escândalo para Israel: Ele vos será santuário; mas será pedra de tropeço e rocha de ofensa às duas casas de Israel, laço e armadilha aos moradores de Jerusalém. (Is 8.14) Pela sua maneira de agir, Deus põe à prova a fé do seu povo. Da mesma forma Jesus apareceu aos homens como um sinal de contradição, pois foi enviado para a salvação de todos, sendo, na realidade, ocasião de “endurecimento” para muitos: Eis que este menino está destinado tanto para ruína como para levantamento de muitos em Israel e para ser alvo de contradição. (Lc 2.34)

Tanto na sua pessoa como na sua vida tudo o que Jesus faz é escândalo. Filho de um carpinteiro, da cidade marginal de Nazaré, identificou-se com o Messias, mas não assumiu o seu caráter vingador e morre nas mãos do poder opressor sem esboçar qualquer resistência. João destaca o que o caráter escandaloso do evangelho não pode ser compreendido, e sim aceito pela fé. Quem é seduzido a fazê-lo tropeça no mistério tríplice da Encarnação, da Redenção e da Ascensão. Logo ao se apresentar, Jesus intima os homens a optar por ele ou contra ele. A opção por ele leva ao regozijo, mas para os contra ele será motivo de escândalo. A igreja primitiva, dirigida pelos apóstolos, também contrapôs o oráculo de Isaías à vida e ao ministério de Jesus. Ele era a pedra de tropeço, mas ao mesmo tempo a pedra angular. Cristo é ao mesmo tempo fonte de vida e indício de morte: Porque nós somos para com Deus o bom perfume de Cristo, tanto nos que são salvos como nos que se perdem. Para com estes, cheiro de morte para morte; para com aqueles, aroma de vida para vida. Quem, porém, é suficiente para estas coisas? (IICo 2,15s)

Paulo teve que enfrentar esse escândalo tanto no mundo grego quanto no mundo judeu. Teve que experimentar esse escândalo antes da sua conversão. Desta batalha interior ele concluiu que a cruz de Cristo é escândalo para os judeus e loucura para os gregos. A cruz só pode ser vista como vitória do poder de Deus por aqueles que são salvos, porque para os que se perdem é somente escândalo e loucura. A sabedoria humana não tem como entender que aprouve Deus salvar o mundo através de um Messias humilhado, sofredor e crucificado. Somente o Espírito de Deus faz com que o homem consiga superar este escândalo da cruz: Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. ICo 2.14)

Contudo, o escândalo de Deus não se extingue na cruz. Por mais absurda que seja esta concepção, ela segue, ou melhor, ela é apresentada por outra forma de escândalo e loucura: a mensagem profética. Após receber com euforia o seu chamado, Isaías se assusta com a loucura de ter que pregar para quem não vai ouvir, entender e nem crer: Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. (Is 6.10) Mais tarde, avaliando o seu ministério profético, desabafa em tom de derrota: Quem acreditou na minha pregação? Quem não creu na mensagem profética, quem não creu no escândalo da cruz ainda lhe resta a chance de crer na loucura da pregação: Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. (ICo 1.21) (continua)

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